Ainda estava muito escuro. Eu e minha companheira estávamos de férias e esperávamos ansiosamente pelo sol no horizonte. Seriam as boas-vindas ao novo ano que começava. A praia estava repleta de pessoas, principalmente jovens. Estávamos observando a imensidão do céu estrelado. A cada olhar mais atento, era possível um espanto com o que existe acima de nós. Ao nosso lado um grupo de rapazes espantava-se com muita facilidade, estavam abismados com o tamanho do universo.
- Véio, olha aquela estrela, véio... Véééééio, vééééio do céu, olha ali, véééééééí...
Meu Deus, fiquei perplexo com a quantidade de vocativos do tipo “véio”. Retruquei para a minha companheira, imitando-os:
- Véio, véio, véio. Véios de todos os asilos do mundo, do novo e do velho mundo, véééééio, olha aquela estrela, véééééio.
Que infelicidade, eles perceberam minha zombaria. E um deles, “acidentalmente”, esbarrou em mim. Diga-se de passagem, eram todos musculosos e destemidos. Logo que esbarrou em mim, não hesitei:
- Feliz ano novo pra você, meu amigo, muita paz, muita paz – e dei-lhe um abraço forte, de macho, pois era isto o que queriam aparentar ser.
Para este que aparentava maior disposição para violência, eu desejei paz. Para outro, que estava bêbado, fiz votos de saúde: “muita saúde, muita saúde...”. Para o mais magricelinha: “muita fartura...”. Continuei minha zombaria, contudo num tom mais fraterno. Nem perceberam.
Mas o excesso de “véios” da juventude deixou-me intrigado. O fenômeno “véio” tomou conta de todo o Brasil. Trata-se dessa mania de tratamento que atualmente predomina entre os jovens brasileiros de um modo geral. Não se sabe como surgiu. Talvez num asilo? Não, velho, exatamente no meio da juventude, velho. Todos transformam-se em “velhos”. O véio está em todo lugar, não deve morrer tão cedo, véio.
Não podemos mais fugir do “velho”, ele chegou para ficar, para reinar, em toda boca jovem ou lugar. Mas o “velho” é coisa de jovem. E engraçado, um amigo meu, muito mais velho que a maioria, chamava a todos de “jovem”. É, o Brasil se prepara de verdade para ser, no futuro, um país de velhos, pois todos os jovens assim se evocam? Um jovem chamando o outro de véio está tentando se auto-afirmar, se sentir mais maduro? Fumar cigarros com pose de cinema já não é suficiente para tal intento? Ou esses jovens fumantes maduros sentiram em algum momento que faltava-lhes uma forma de tratamento à altura, e resolveram criar o “véio”?
O “véio” começou sua história como um simples nome ou vocativo, tal como “meu”, “bicho” ou “brother”. Contudo, velho, isto não foi suficiente. O uso da expressão tornou-se tão demasiadamente abusado que o “véio” virou vírgula, velho. Primeiramente podemos compreender é que onde estiver a palavra “véio”, o cérebro está em pausa, os neurônios estão pedindo um copo d’água para poder respirar melhor, velho. Como se nosso pensamento ou nossa fluência verbal precisasse de uma espécie de câmbio, o qual poderemos agora chamar de “sistema véio de engate verbal”. Sem este câmbio a conversa perde sua fluidez e podemos ser tomados por vazios ou silêncios constrangedores.
O “véio” está se proliferando, virou praga, véio. Velho, velho, velho, mil vezes os velhos do novo e do velho mundo, o “velho” só faz crescer. O “véio” é o mil utilidades lingüístico da moda. Os “véios” estão aí, devem demorar partir.
Não se sabe exatamente a origem desta expressão tão plural, tão pública. Sabemos que o “bicho” é nascido em tempos “hippies” em que o desejo de voltar a viver numa condição mais próxima da natureza era eminente no imaginário da contracultura. Todos queriam se afastar da nojeira da guerra do Vietnã e da explosão das ditaduras pela América Latina, ou do espírito neo-liberal que já acenava no horizonte. “Todos”, quer dizer, os engajados no movimento de contracultura. A expressão “meu” vem na contramão da contracultura e abraça o “status quo”, o sistema constituído, o frenético produtivismo capitalista, vide paulistano vendido.
Mas o “velho”, velho, de onde surgiu, velho? Talvez seja melhor que o “né”. Eu, particularmente, para falar a verdade, velho, não gosto. Acho que está havendo um abuso, tornando-se enjoativo e débil. O “véio” parece que aparece para preencher o vazio de uma debilidade mental da atual juventude. Há um uso e abuso do “velho” em função da idéia em desuso, do pensamento obtuso, da falta de fuso, de “véios” vazios e confusos. O “véio” tornou-se nauseante, sem futuro e sem passado, sem fronteira e sem respaldo
Mas o “véio” é muito diferente do “né”. Prefiro o último. Este não vê cara, nem coração, porque não é um nome. O “né” só está pedindo uma confirmação do outro. Também preenche um vazio mental momentâneo. Só que o “né” não virou somente uma moda, não ficou na boca de todos e nem construiu uma corporação de usuários, restritos a uma faixa etária ou grupo sócio-econômico. O “né” é universal, sua extensão é enorme. Isso faz até com que perca muito de seu valor, pois todo mundo fala, não invoca nenhum senso de propriedade: “Ah, esse é do meu grupo, esse é só nosso”, não, o “né” é de todo mundo, não há uma cerca que possa privatizá-lo. Quem quer se diferenciar não pode usar o “né”.
O “né” sofre todo tipo de preconceito. Todos estão sujeitos a ele, nas mais variadas situações. Dependendo da ocasião, pode ser fatal. Imaginem uma entrevista com o presidente da república em que o “né” aja como um invasor e conquistador implacável, destruindo a pontuação, entremeando-se a cada pausa. Um abuso de “né” é geralmente insuportável e repulsivo. É uma doença. Muitos de nós insistimos em apresentá-lo até mesmo ao se falar em outra língua: “I was in the beach. Then, there were some guys, né...”. Não percebemos, ele é um invasor, uma bactéria que quer contaminar cada final de idéia, frase ou pensamento. O “né” é uma praga, um vício que não vê raça, credo ou classe social. Cuidado, que ele pode pegar você!
O “né” é um marginal lingüístico muito feio, que eu adoro, pois é meu vício, né. Ou melhor, minha relação com o né é ambivalente: não gosto, mas não consigo me desfazer dele. Quero exterminá-lo da minha cabeça e da minha boca. Que desapareça, que não sobre dele nenhum mínimo e microscópico vestígio: eu odeio você, “néééé”! Principalmente quando vejo-me ao seu lado, abusando de sua utilização. Que deprimente, que desqualificante. É preciso tomar uma decisão política para a extinção de “nés” e “véios”. Quem sabe criar o “N.A.” (“Nés Anônimos”) ou “V.A.” (“Véios Anônimos”).
Voltemos ao “véio”. Sua utilização abusada e banalizada também pode doer nos ouvidos. O “véio” é muito diferente do “né”. O primeiro é corporativista, a marca de pertencimento a determinado grupo. O segundo é um vira-lata, um vírus que pode atacar a qualquer hora e lugar. O primeiro é privado, o segundo é universal. O “véio” é fetiche, temporário, o “né” é universal e atemporal. O “véio” é um irritante grito de liberdade dos jovens no ouvido dos velhos. O “véio” é a negação dos velhos e da velhice, quer impor novos costumes e nova gramática. O “né” já se impôs há muito nos subterrâneos de nossa fala e pensamento e insisti em subexistir eternamente...
Por outro lado, véio, não exageremos, pode ser que não seja tão grave assim, né.
- Véio, olha aquela estrela, véio... Véééééio, vééééio do céu, olha ali, véééééééí...
Meu Deus, fiquei perplexo com a quantidade de vocativos do tipo “véio”. Retruquei para a minha companheira, imitando-os:
- Véio, véio, véio. Véios de todos os asilos do mundo, do novo e do velho mundo, véééééio, olha aquela estrela, véééééio.
Que infelicidade, eles perceberam minha zombaria. E um deles, “acidentalmente”, esbarrou em mim. Diga-se de passagem, eram todos musculosos e destemidos. Logo que esbarrou em mim, não hesitei:
- Feliz ano novo pra você, meu amigo, muita paz, muita paz – e dei-lhe um abraço forte, de macho, pois era isto o que queriam aparentar ser.
Para este que aparentava maior disposição para violência, eu desejei paz. Para outro, que estava bêbado, fiz votos de saúde: “muita saúde, muita saúde...”. Para o mais magricelinha: “muita fartura...”. Continuei minha zombaria, contudo num tom mais fraterno. Nem perceberam.
Mas o excesso de “véios” da juventude deixou-me intrigado. O fenômeno “véio” tomou conta de todo o Brasil. Trata-se dessa mania de tratamento que atualmente predomina entre os jovens brasileiros de um modo geral. Não se sabe como surgiu. Talvez num asilo? Não, velho, exatamente no meio da juventude, velho. Todos transformam-se em “velhos”. O véio está em todo lugar, não deve morrer tão cedo, véio.
Não podemos mais fugir do “velho”, ele chegou para ficar, para reinar, em toda boca jovem ou lugar. Mas o “velho” é coisa de jovem. E engraçado, um amigo meu, muito mais velho que a maioria, chamava a todos de “jovem”. É, o Brasil se prepara de verdade para ser, no futuro, um país de velhos, pois todos os jovens assim se evocam? Um jovem chamando o outro de véio está tentando se auto-afirmar, se sentir mais maduro? Fumar cigarros com pose de cinema já não é suficiente para tal intento? Ou esses jovens fumantes maduros sentiram em algum momento que faltava-lhes uma forma de tratamento à altura, e resolveram criar o “véio”?
O “véio” começou sua história como um simples nome ou vocativo, tal como “meu”, “bicho” ou “brother”. Contudo, velho, isto não foi suficiente. O uso da expressão tornou-se tão demasiadamente abusado que o “véio” virou vírgula, velho. Primeiramente podemos compreender é que onde estiver a palavra “véio”, o cérebro está em pausa, os neurônios estão pedindo um copo d’água para poder respirar melhor, velho. Como se nosso pensamento ou nossa fluência verbal precisasse de uma espécie de câmbio, o qual poderemos agora chamar de “sistema véio de engate verbal”. Sem este câmbio a conversa perde sua fluidez e podemos ser tomados por vazios ou silêncios constrangedores.
O “véio” está se proliferando, virou praga, véio. Velho, velho, velho, mil vezes os velhos do novo e do velho mundo, o “velho” só faz crescer. O “véio” é o mil utilidades lingüístico da moda. Os “véios” estão aí, devem demorar partir.
Não se sabe exatamente a origem desta expressão tão plural, tão pública. Sabemos que o “bicho” é nascido em tempos “hippies” em que o desejo de voltar a viver numa condição mais próxima da natureza era eminente no imaginário da contracultura. Todos queriam se afastar da nojeira da guerra do Vietnã e da explosão das ditaduras pela América Latina, ou do espírito neo-liberal que já acenava no horizonte. “Todos”, quer dizer, os engajados no movimento de contracultura. A expressão “meu” vem na contramão da contracultura e abraça o “status quo”, o sistema constituído, o frenético produtivismo capitalista, vide paulistano vendido.
Mas o “velho”, velho, de onde surgiu, velho? Talvez seja melhor que o “né”. Eu, particularmente, para falar a verdade, velho, não gosto. Acho que está havendo um abuso, tornando-se enjoativo e débil. O “véio” parece que aparece para preencher o vazio de uma debilidade mental da atual juventude. Há um uso e abuso do “velho” em função da idéia em desuso, do pensamento obtuso, da falta de fuso, de “véios” vazios e confusos. O “véio” tornou-se nauseante, sem futuro e sem passado, sem fronteira e sem respaldo
Mas o “véio” é muito diferente do “né”. Prefiro o último. Este não vê cara, nem coração, porque não é um nome. O “né” só está pedindo uma confirmação do outro. Também preenche um vazio mental momentâneo. Só que o “né” não virou somente uma moda, não ficou na boca de todos e nem construiu uma corporação de usuários, restritos a uma faixa etária ou grupo sócio-econômico. O “né” é universal, sua extensão é enorme. Isso faz até com que perca muito de seu valor, pois todo mundo fala, não invoca nenhum senso de propriedade: “Ah, esse é do meu grupo, esse é só nosso”, não, o “né” é de todo mundo, não há uma cerca que possa privatizá-lo. Quem quer se diferenciar não pode usar o “né”.
O “né” sofre todo tipo de preconceito. Todos estão sujeitos a ele, nas mais variadas situações. Dependendo da ocasião, pode ser fatal. Imaginem uma entrevista com o presidente da república em que o “né” aja como um invasor e conquistador implacável, destruindo a pontuação, entremeando-se a cada pausa. Um abuso de “né” é geralmente insuportável e repulsivo. É uma doença. Muitos de nós insistimos em apresentá-lo até mesmo ao se falar em outra língua: “I was in the beach. Then, there were some guys, né...”. Não percebemos, ele é um invasor, uma bactéria que quer contaminar cada final de idéia, frase ou pensamento. O “né” é uma praga, um vício que não vê raça, credo ou classe social. Cuidado, que ele pode pegar você!
O “né” é um marginal lingüístico muito feio, que eu adoro, pois é meu vício, né. Ou melhor, minha relação com o né é ambivalente: não gosto, mas não consigo me desfazer dele. Quero exterminá-lo da minha cabeça e da minha boca. Que desapareça, que não sobre dele nenhum mínimo e microscópico vestígio: eu odeio você, “néééé”! Principalmente quando vejo-me ao seu lado, abusando de sua utilização. Que deprimente, que desqualificante. É preciso tomar uma decisão política para a extinção de “nés” e “véios”. Quem sabe criar o “N.A.” (“Nés Anônimos”) ou “V.A.” (“Véios Anônimos”).
Voltemos ao “véio”. Sua utilização abusada e banalizada também pode doer nos ouvidos. O “véio” é muito diferente do “né”. O primeiro é corporativista, a marca de pertencimento a determinado grupo. O segundo é um vira-lata, um vírus que pode atacar a qualquer hora e lugar. O primeiro é privado, o segundo é universal. O “véio” é fetiche, temporário, o “né” é universal e atemporal. O “véio” é um irritante grito de liberdade dos jovens no ouvido dos velhos. O “véio” é a negação dos velhos e da velhice, quer impor novos costumes e nova gramática. O “né” já se impôs há muito nos subterrâneos de nossa fala e pensamento e insisti em subexistir eternamente...
Por outro lado, véio, não exageremos, pode ser que não seja tão grave assim, né.
1 comment:
O "véio", tenho quase certeza, vem de um sentimento tipo "amigo velho de guerra", algo assim. Primeiro um jeito de evocar amizade próxima e, no fim das contas, qualquer um. Tipo a gente chamava de brother qualquer criatura que encontrávamos por aí, só para fazer uma entrada mais simpática. Agora... ver hordas de jovens chamando uns aos outros de véio nos faz lembrar de que estamos ficando velhos, pois não? :-D
Neuza Paranhos
Mina de Letras
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