Sunday, January 30, 2005

SINCERAMENTE, NÃO SEI O QUE SIGNIFICA ISSO 3

E Deus continua, porque a eternidade não tem parada mesmo:

Porque eu sou complicadinho mesmo, sabe. Já tentei de tudo para descomplicar, tentei e tento dar milhões de avisos sem palavras, a voz oca, o rosto sem face da natureza, a ausência de sentido em tudo o que ela faz e que vocês vivem a dizer que sou eu. Tentei até mesmo extinguir qualquer lampejo de minha existência, para que vocês não matassem tanto uns aos outros para dizer o que sou ou deixaria de ser. Vocês inventam mil idiotices da própria cabeça e egoísmos seus, e jogam tudo na mesma vala sob o meu nome. E sei o quanto vocês temem esta minha invisibilidade, este meu silêncio colossal com ares de uma iminente explosão e destruição. Sou um vulcão prestes a explodir. Sou tudo o que é maior e mais forte do que vocês. Sou tudo o que vocês não podem controlar: o destino, a morte, o sofrimento inesperado ou até mesmo o amor. Temam e agradeçam. Ao temer, venham até mim e pensem que somos um só, pois sou tudo. E agradeçam, pois o acaso é um absurdo sem sentido.

Mas o homem carrega questões no lombo: Mas Senhor, onde você está quando um pobre e indefeso ser agoniza e sofre o absurdo da dor em que nenhuma explicação é capaz de dar conta? Se você pode tudo, se você é o Bem absoluto, por que o mal, Senhor? Por quê?

Deus: Há mais de quinhentos anos que venho dizendo isso: culpa é de vocês humanos. Eu dei o livre-arbítrio. Agora vocês é que se virem com a merda toda que têm aprontado.

Homem: Mas Senhor, a liberdade não explica tudo. O maremoto que dizimou centenas de milhares de vidas em poucos dias e ainda mata de fome e doença por sua destruição, não tem nada a ver com o que estamos fazendo. Ninguém foi lá e atiçou a baba seca da cólera do terremoto. E um pobre e indefeso animal que quebra a perna e agoniza de inanição no meio da floresta intacta? Que culpa temos nós nisso?

Deus: Deixei tudo muito bem escrito aí na Bíblia. Vocês me desobedeceram, me traíram, comeram do fruto proibido. Desejavam a liberdade e eu dei. Antes disso tudo não havia o Mal. Então eu resolvi tirar um bom proveito de sua desobediência. Ah, querem fazer o que dá na telha? Sim, pois não. Mas agora sejam responsáveis pelo destino do mundo. De um mundo que é uma versão violada do Paraíso. E violada por vocês mesmos. A partir desse nosso desacordo inicial, ficou assim estabelecido: eu não governo mais porra nenhuma. E não venham dizer que eu pari o mundo e sumi. Não, não, não. Eu dei a luz ao mundo, que era um Paraíso, por sinal. Aí vocês resolveram começar a fazer o que queriam. Vocês fugiram do meu controle. Agora, como bons filhos meus que são, vocês seguirão os passos do Pai. Um dia, sob o meu exemplo, vocês serão capazes de resgatar o Paraíso. Este é o destino de vocês, de serem deuses também.

Homem: E esse papo de juízo final? Esse negócio tá parecendo reality show. A gente desobedece, você nos dá as contas, para depois vir cobrar novamente? O quê? Nossa existência desde o Paraíso tem sido um teste? Você soltou a boiada para testá-la? Foi assim: sintam o gostinho da liberdade, e vejam que ela não vale a pena? Sintam o gostinho da liberdade (e uma liberdade bem vigiada, porque você vive com esses zóio grande aí, oh, olhando pra gente o tempo todo, marcando nossos pontos para o juízo final)... Então, sintam o gostinho da liberdade, para depois voltar a serem crianças por toda a eternidade, meus filhos obedientes. Pra quê a liberdade, se o nosso destino é obedecê-lo? Você deu a liberdade para que nós quebrássemos a cara, e aprendêssemos na pele que o destino de tudo não cabe a nós? E se hoje somos responsáveis por tudo, qual é a finalidade de você existir?

Deus: Você não sabe nada, meu jovem... (a continuar, se o leitor quiser...)

SINCERAMENTE, NÃO SEI O QUE SIGNIFICA ISSO 2

E Deus, esbravejando vapores eternos de colgate total, replica:

Prefiro mil vezes a morte do que perder a vida. Mas sou a eternidade em carne e osso. Sou o osso duro de roer de todos os mistérios da miserável razão humana. Sou nuvens em avalanche em estórias bíblicas de cinema. Em sânscrito, significo “céu iluminado”. Sou então um céu cortado fora à fora de luzes e trovões. Viram só? Posso ser muito violento. E que o homem não se meta comigo. Basta me amar.
E eu me afastei dos homens? Sou um pai que pariu o mundo e sumiu? Sumi para lhes dar liberdade? E libertar é abandonar?
Vocês são os responsáveis por essa bosta toda que está isso aí. E nem venham vocês, psicanalistas, dizer que sou histérico. Só porque posso desabar o céu na cabeça de vocês de vez em quando? Posso? Posso, mas não faço. Tenho todo o poder para não usar um grama dele sequer. Poder demais é para isso, para não ser usado: basta intimidar. A posse de um poder excessivo já é a sua utilização. Sejam então filhotes obedientes e entrem em harmonia comigo, me amem.
Não estou pedindo, estou mandando. A minha própria existência é uma ordem para que eu seja amado. Do contrário, vocês estão fritos. Não preciso dizer nada, pois é o que todas as religiões que mencionam meu nome já dizem: “Ame à Deus acima de tudo, ame à Deus”. Este é o pedido desesperado de todas elas. “Mas ame através de mim, através dessa religião aqui, ó”. É, e estão dizendo, sem perceber, que não há como me amar sem um atravessador. A relação comigo nunca é direta. Eu sou esse carinha que vive mandando recados. E meus garotinhos de recado, meus mensageiros, meus carteiros, meus pombo-correios, são os caras que mais tem moral na história da vidinha de vocês, na história desse planetinha aí, ó. Só que o maior problema é que eu digo uma coisa e eles sempre transmitem outra. Mas não há como ser de outro jeito. Vocês nunca irão entender o que eu tenho a dizer. Porque eu sou complicadinho mesmo, sabe. Já tentei de tudo para descomplicar...
(a continuar...)

Saturday, January 29, 2005

SINCERAMENTE, NÃO SEI O QUE SIGNIFICA ISSO

E disse, desiludido, um poeta, querendo dar uma de padre: Pelo temor, que é vizinho da dor dos mais fracos, para poder expelir bolhas de alegria por toda a eternidade do prazer de um beijo no ponto de fogo da zona atômica da paixão; estamos novamente aqui, senhores, a anunciar a bosta do sacramento entre dois seres iludidos pela conversa fiada da promessa de um amor infalível.
E do fundo do céu, do horizonte da praia da esperança, cheia de bobs na cabeça, com o feijão no fogo, Dona Zuleica argumentava: Não, meu filho, não pense deste modo. Assim seu karma será voltar-se para o mundo de sua própria miséria de otimismo a assumir o triste fim do amor que alimenta a sua existência.
E a própria consciência, às vezes em estado de sapo, por vezes em estado de salto mortal do espírito, dizia: Quero ser mais eu, mesmo sabendo que eu já sei que eu não sou eu, e que o eu perdeu-se no fundo do que ele mesmo escondeu. Assim vou para a distância da estrada infinita de meu próprio delírio e digo pra Deus, baixinho, como se fosse seu compadre de boteco: dá um time*, maninho, dá um time...
E Deus, esbravejando vapores eternos de colgate total, replica...
(a continuar...)
*time significa tempo, em inglês

Saturday, January 15, 2005

PEÃO SEM RODEIO

(3º lugar no Concurso Sesc-DF de contos de 2004)

O iceberg da montanha do leite em pó na água do copo me esperava uma iniciativa. O pão confuso, deitado em duas fatias, pedia manteiga. A fome do fim da tarde fazia pressa em cada movimento, o estômago vociferava o apito da hora de comer. Ao fundo, lá no portão da frente, uma franzina palma seca se anunciava, meio que abafada pela música do toca-discos laser. Repetitiva, insistia na escuridão das 20 horas.
- Pronto.
- O dono da casa está? - mal se via o vulto preto por detrás daquela voz mole e escondida que muito se bate nas portas do por aí.
- Sou eu mesmo.
- Sabe o que é, você tem aí uma sacola para eu guardar meu cobertor? - em frase que acaba a pilha no final, emprestando palavras ao vento.
- Como? Eu não ouvi. O senhor poderia repetir?
- Você tem uma sacola pra eu carregar meu cobertor?
De perto, o vulto negro era um preto jovem, mulato de olhar tranquilo e ingênuo. Calças compridas, botas de pedreiro, uma velha e descorada camisa boiadeiro. Parecia um daqueles peões, campeões de rodeio em entrevista rápida para a televisão. Falava olhando ora pro chão, ora pra mim, tal qual gente simples da roça. Nem cheiro, nem olhar que exibisse pinga. Fala calma e sem rodeios daquele peão. Logo imaginei que andasse a pé e domasse a fome sempre a procura do teto de uma noite só.
- Espera só um momento que verei se tenho algo.
Ao procurar a sacola que faria mais rico o homem da roupa do corpo e do incômodo cobertor enrolado debaixo do braço, lembrava da cena crua a castigar a consciência. Mulato-peão-sem cavalo-a girar por aí, segurando criança o cobertor precioso, companheiro do frio e do calor, do pesadelo e da solidão. Talvez nele também abafasse seus medos. Homem só, noite seca, o vento prometendo frio. Seus dentes seriam cariados? Não sei, o sorriso de boca fechada do caipira, uma escuridão sem lampião e a lua esfumaçada pelos escapamentos insistentes do dia. Em setembro, o dia abandonado ao sol escaldante e a noite zunindo algum frio. E durante o dia? O que fazia com aquele cobertor, filho único nos braços? Gente em companhia de mochila nos ombros, nas costas, chapéu na cabeça, cigarro no bolso, filho nos braços, de mãos-dadas... mas com um cobertor na mão? Perplexo, divaguei. Na verdade o que aquele homem queria? Ele sonhava? Havia querer?
- Eu não entendi muito bem... - a sempre burra distância que nos separa do vulto da porta, por detrás das nossas grades, escondendo outros mundos. - Qualquer sacola serve? De plástico, de supermercado? Porque a mochila eu não tenho.
- Pode ser, pode ser. É só para guardar o cobertor.
- Já sei. Acho que tenho uma sacola grande de plástico, caberá o cobertor.
A melhor sacolinha moribunda que conseguia imaginar era aquela abandonada no canto mais empoeirado do quarto. Há muito não punha as mãos naquela bagunça. Tênis sem sola, cadernos usados, caixas de sapato e sacolas grandes de papelão. Essa de plástico, essa de papelão e ... divina descoberta! Uma mochila velha, marrom de poeira, praticamente inteira, esquecida e rejeitada naquele canto. Por que não? O homem do cobertor não merece aquela mochila velha, feia, quase-inteira e ainda em condições de uso? Mas, para onde iria o homem de mochila nas costas e sacola na mão?
- Por que você está carregando esse cobertor? - qualquer preconceito maior me chamaria de burro, respondendo o óbvio: não tem casa, mora na rua.
- Eu não sou daqui. Sou de Santos. Tô procurando emprego, mas não encontro nada, tá difícil, aqui tá muito difícil. Assim que der volto pra lá. No porto é fácil de encontrar serviço. Já chego e já arranjo.
- Que serviço você está procurando aqui na cidade?
- Trabalho como sevente de pedreiro, torneiro mecânico, mas tá muito difícil, o desemprego tá grande. Vou levantar uma laje aqui e aí eu volto pra Santos.
- E você está dormindo aonde?
- Onde dá, faz uma semana que estou aqui. Só não chover, tá bom.
- Você tá dormindo na rua?
- É... - responde meio hesitante.
- Se você arranja mais fácil um emprego no porto, por que ainda vai tentar trabalho aqui?
- Fazendo esse serviço aqui eu consigo o dinheiro da passagem.
- Você não tem o dinheiro para voltar?
- Não.
- Tentou pedir em alguma porta?
- Do jeito que a situação tá, não dá. Tá difícil, ninguém tem.
Humildemente relatava uma verdade estatística da qual era uma grande vítima. Porém, nem mesmo a verdade dos números era capaz de esconder a mentira de dezenas ou centenas de "não-tenhos", ideologicamente a negar o pedaço de pão duro aos nossos filhos vagabundos.
Ouvi algumas palavras de seu mundo arredio. Meu planeta mimado indignava-se com aquele peão sem rodeio, pião a girar sem futuro, de costas para a luz da lua. Rodava nos por aís, batendo palmas na pouca paciência sem memória de um mundo em só agora. Transmitido ao vivo para todo o Brasil, o cãopião só dava entrevistas algemado, à mercê de um carrasco ao microfone: "o que você acha que merece, Eudanel?". Após sonegar-se aos andaimes e ao salário-mínimo, o que você acha que merece, assassino?
Chamava-se Eudanel. E o nome estranho já não surpreende na estranheza daquelas vidas para as quais viramos o rosto, fugindo de alguma contaminação. Medo e fuga. Aquilo não existe, a miséria ao relento, o dente cariado, bichos em trapos a cambalear pela cidade lavada de sol e egoísmo, o rosto atacado de rugas chorando um pão-duro. Nosso olho não vê, não tem tempo. Façam silêncio, está na hora da novela, jornal nacional. Eles são menos, desimportantes, micro, microscópicos, bactérias. Lave as mãos, não se esqueça. Deixemos de lado, do lado de lá do portão, das câmeras... Dá logo o dinheiro! Não!! Não dê dinheiro, pode ser pra pinga. Tem que trabalhar, não vamos alimentar a vagabundice, a malandragem. E não vemos a bactéria no fundo da nossa retina míope, corroendo nosso globo ocular, globo solar, nossa luz a nos pedir esmolas.
Fuja, Eudanel-quase-nunca-Eudanel. Quem te chama pelo nome? "Vai trabalhá", vá passar frio em alguma marquise suja do centro da cidade. "Vai carpir, carregá saco". Afinal, "eu sô burro" mesmo, "se fodi na escola".
Os pais eram de Santos. Para o meu espanto, sabia ler, portava documentos e tinha o trocado do ônibus que o levaria até o centro da cidade para, na Prefeitura, contar o que queria, voltar para Santos.
- Se é isso o que você quer, espero que consiga. Boa sorte.
- Obrigado...
Minha fome reclamava a volta à cozinha. O iceberg de pó, intacto, ainda não 7havia derretido, leite em pó solúvel da melhor multinacional. O homem do cobertor me fazia bolhas no copo. Eu rezava por um estômago bem longe da consciência, que aquele leite não se revoltasse com alguma injustiça, seja meu sono guardado em outro mundo, seja a consciência também algo que o tempo consome. Estava Eudanel também com fome? Resposta sem rodeio, o frio pedindo o grito mais alto na noite de vento, o estômago pode esperar pra falar de comida. Ou havia acabado de comer, sobra fria, requentada, o luxo da esmola, resto de marmitex? Aquele vento balançava a realidade trazia poeira distante, a voz beduína no portão, pobres pedintes, refugiados do egoísmo, do desprezo moribundo. E vem sempre, voltam sempre os Eudaneis (que não voltam para Santos) com as palmas de sempre e os nomes de nunca.

Tuesday, January 11, 2005

DE DEUS EM QUANDO


As horas saltaram do relógio, todas em comboio ou esvoaçando, não me lembro.
Na caverna do quarto,
da minha alma,
do meu medo,
pude falar com com um raio de sol e uma cauda de nuvem, talvez fosse Deus...
Ele não falava nada, mas me deixava surdo
Ele não era nada e tão nada dizia tudo.
Ou melhor, ele era um pouco menos que nada
Estava lá, entre o nada e o lugar nenhum,
Abrangendo do silêncio à página em branco,
Tão sem, tão... tão, tão nem, tão não...
O proprio vão
O vão que carregamos sem o sabê-lo
E tão nada dizia tudo,
Tudo e mais um pouco
Deus estava lá, onde não se estava e estava dentro de mim.
Deus era esse nada,
essa morte que carregamos no lombo e que se curte por debaixo de nosso couro
Assim, entreguei-me a Deus
E do seu rosto eu via somente a lua e a lembrança do sorriso de minha mãe.
Corri para o fundo do quintal e olhei para a boca do escuro do olho de Deus
Eu estava dentro de Deus ou ele estava dentro de mim?
Eu era um sonho de Deus?
Deus não é ninguém, é esse ninguém que me persegue, que fala ao ouvido de todos os homens que todos morrerão,
Deus é sempre esse aviso.
Não, Deus é sempre um desvio para outro desvio,
Deus é desviado, o marginal em estado puro.
Ele vem agora me dizer que estou com sono, com fome, que devo dormir, que minha caligrafia é o rascunho do ruindade do mundo, vingada em meus garranchos arrependidos e heróicos
Mas eu desobedeço a Deus
Não entendo nem mesmo esse seu nome no plural.
São vários eus? Eus de mim? Como se o mundo fosse meu através de uma gramática egocêntrica voltada para as ressonâncias mais íntimas que até mesmo a pedra mais fria fosse capaz de despertar?
Quem é Deus?
Ele não é
Mas diz para que eu seja
Para que eu seja mais calmo agora
E eu teimo em desobedecê-lo.
Isso é ser humano, desobedecer a Deus
Na hora certa?
Sim, pois o destino sempre carrega um certa ironia. E a ironia do destino é trágica. O drama humano é a saga de teimar em desobedecer a Deus. O homem só faz aliança total com Deus quando morre.
Se Deus existisse, a vida seria uma fórmula numa lousa lá no céu. O que a vida não deixa de ser, um conceito divino. Mas se Deus não existisse, a vida seria uma ironia do destino. O que também não se pode negar.
É isso, essa vida é uma piada.
Tudo corria conforme as trilhas marcadas do tédio celeste até que de repente Deus resolveu inventar uma piada, eis o homem pintando na história. Mas, depois Deus percebe que havia semeado na verdade uma tragédia. As piadas são imortais, divinas. E a tragédia é exatamente aquilo que foge ao controle divino.
Será que Deus deseja tanta miséria e injustiça?
Não, Deus não deseja nada, pois nada lhe falta. Deus não fica furioso ou infeliz, não se rebaixa a isso. Assim, Deus não cobra, pode ficar tranqüilo.
Mas é que Deus nos deu de presente algo maravilhosamente sábio e assassino, o tempo. Mas o tempo também não está em lugar algum a não ser na cabeça de quem sabe que morre um dia.
O tempo é Deus ou o irmão dele?
O tempo é gente abraçando o vazio ou uma boa causa, no caso de quem sabe se aproveitar dele. E o tempo é causa de tudo.
Mas cansa querer falar disso como se fosse tarefa de casa, uma redação sobre Deus ou a geografia divina.
Nem mesmo andando por dois milhões de pais-nossos e aves-marias poderíamos encontrar a rua em que Deus mora ou número de seu telefone.
Falar de Deus é sempre engraçado. Ele nos enebria e nos faz sentir fora do corpo. Porque Deus está lá, no além, retumbando aqui dentro, no canto do vento, flutuando no mim e no amém.
É mesmo. Mesmo não sendo, assim o desejo e deliro e que assim seja, amém...

Monday, January 10, 2005

DEUS EM PROSA

Pensar, sentir, negar, amar e até odiar a deus; qualquer coisa que se relacione com ele (filosofia, espiritualidade), também me fascina muito. Gosto muito de filosofar sobre Deus, ou até mesmo tentar escrever uma poesia, ou uma carta infinita para ele. Às vezes penso em Deus e tenho vontade de começar uma carta para ele, sem fim. Porque mesmo o ateu, de vez em quando parece que também conversa com Deus (ele existindo ou não, se é que podemos falar nesses termos, em existência). Deus existe? Ou é algo um pouco além disso? Como se pudéssemos dizer que ele na verdade subsiste a tudo, que é o todo; logo absoluto, logo livre e necessário. Assim, Deus não poderia ser definido, mas é aquilo que define tudo: "incausado", causa de si mesmo, antes do mundo (ex-machina), anterior ao tempo (na eternidade não há tempo; a eternidade não é um tempo grande, infinito: seria outra dimensão, se é que assim podemos falar). Gente, resumindo: adoro pensar sobre esse cara, Deus; ou mesmo senti r que sinto sua presença, mesmo que isso seja mero en-tusiasmo. Traduzindo a palavra entusiasmo: somente ou o tudo de ter Deus dentro de si). Mesmo que tudo isso seja mera ilusão. A experiência de plenitude, seja ela na igreja, no terreiro, no amor, na brisa fresca da manhã com passarinhos cantando e o sol nascendo, ou mesmo na cama cm quem a gente ama: isso tudo para mim pode ser Deus, ou qualquer outro nome que vocês quiseram dar pra essa estória. Tudo isso nem pensa na verdade. A gente vive. São experiências totais, de plenitude.
Desculpem-me, devo ter escrito demais. Escrevi, há pouco tempo, uma poesia, em um momento em que me sentia perto de Deus, ou do amor, da paixão, não sei. Era um momento, para mim, em que minha alma sobrevoava uma grande imensidão de não sei o quê. Abaixo, cito alguns trechos da mesma:

"Sou também aquele que mira o absurdo e pode degustá-lo. Volto a voar por entre nuvens e horizontes de alegria estampados no sorriso de quem se colidiu com um caminhão de sentimentos e o terremoto que isso faz na alma. Jamais somos somente o que se fabrica nas vozes que comandam a orquestra da banalidade. Somos vulcão e a onda do mar de sensações que explode com qualquer exército de razão. Somos folha no vento soprando saudade na vila do desejo. Somos também uma coisa que respira poesia, e o parto de uma tempestade de belezas inauditas. Basta descobrir a criança que sorri por detrás do homem. Basta desenterrar canções que plantamos para colher um pouco de amor. (...) Deve-se olhar para o fundo da terra moída de nosso segredo e de nossa dor. Deixar que as mãos instalem o futuro de nosso sorriso. Peço demissão do mundo feito máquina de bajular a normalidade. E o dia começa em um sorriso de duas palavras e um coração povoado de vida."

Também tenho uma poesia que escrevi somente sobre Deus (De Deus em quando). Só eu e ele: "o Deus". Esta expressão eu ouvi dizer que saiu da boca de uma criança pequena, muito aflita e chorando pela mãe que acabara sofrer um acidente na sua frente: "Minha mãe... minha mãe (...) Cadê o Deus, cadê o Deus? Por que ele não tá aqui pra ajudá minha mãe?"

Sunday, January 09, 2005

ATRÁS DO MURO DO COLÉGIO

Donizette era feio e forte. E cheio de conversa. De conversas de roça. Donizette era aluno da caixa: precisava de ajuda da escola, não tinha dinheiro nem para comprar o jaleco da escola. Seu almoço era a merenda da escola. E Donizette ia pra escola à cavalo.
Um dia todos estavam eufóricos. Uns diziam que Donizette tinha algo absurdo para mostrar. Outros queriam saber. E todos planejavam encontrar-se no matinho, atrás do muro da escola, para ver o que Donizette tinha.
A professora sentiu a euforia e resolveu investigar. Chegando no matinho, viu que todos estavam em volta de Donizette e que ele fazia algo com o cavalo. “Donizette!!!”, gritou a professora, desesperada. Não pensou duas vezes. Pegou Donizette pela orelha e em dois minutos ele já estava sofrendo um intenso inquérito na diretoria. Nenhuma criança compreendeu o porque de tanto desespero. Afinal, era tão divertido e engraçado ver Donizette pegar no pinto do cavalo e fazer ele esguichar aquele mijo branco: era simplesmente um espetáculo da natureza.
Donizette foi advertido pela diretora. Aliás, recebeu um sermão muito severo. Foram repetidas várias vezes que aquilo não era certo, que era feio, que não deveria fazer novamente. E qual seria o problema? Feiúra não era problema para Donizette, era um meio de vida, a sua condição, da qual todas as crianças se riam. E Donizette não se importava muito em ser feio. Ele era muito esperto, muito engraçado e muito carismático. A feiúra até ajudava. Todos adoravam suas caretas e bocas, e imitações. Todos adoravam Donizette, o menino pobre e feio e engraçado, que ia de cavalo pra escola.
E Donizette então deu um tempo com alguns de seus espetáculos. Parou de exibir as peripécias que fazia com seu cavalo. Deixou ele em casa por uns dias e passou a vir para a escola de bicicleta. Mas outras capetices não deixava de fazer. Um dia um amigo o chamou para comprar um salgadinho na cantina. Havia muita gente espremida, uma fila enorme. Seu amigo estava na sua frente e, à frente de seu amigo, uma menina linda, de uns 14 anos, que tinha a bunda dos sonhos de Donizette. E ele não pensa duas vezes: enfia deliciosamente a mão em sua bunda e escapa sorrateiro no meio da multidão. Quando olha pra trás, ela já está lascando tapas na cara de seu amigo. Essa vou contar para os meus netos, pensou ele.
Contudo, o negócio de ir de bicicleta não durou muito não. Depois de uma semana, Donizette já estava lá de novo com o cavalo. E novamente a arte atrás do muro do escola, no matinho, rolava como queriam os deuses. Mas não deu certo, Donizette é pego mais uma vez. Os sermões dobram ao quadrado e as ameças também. “Se isso ocorrer mais uma vez, mais uma única vez, Donizette, você será expulso do colégio. Você está ouvindo o que estou dizendo? Olha pra mim quando falo com você, seu piralho!”, bradou a diretora.
Um pouco envergonhado com aquela humilhação toda, Donizette fica um mês de molho, tentando bancar o bom mocinho. Mas a coisa ia apertando, Donizette tinha uma dificuldade enorme em não fazer os amigos rirem, em ficar quietinho, sem aprontar. E Donizette era viciado em seu cavalo, viciado principalmente naquela brincadeira do pinto, a qual executava como se fosse um mágico de circo. Como ficar longe dos palcos, não é Donizette?
Agora, com mais segurança e cuidado, os espetáculos atrás do muro da escola estão de volta. Sempre havia um colega que ficava vigiando e dava um assovio alto ao sinal de qualquer aproximação de professor ou funcionário da escola. Até que um dia, depois de perceberem que algo estranho ainda parecia ocorrer atrás do muro da escola, duas professoras resolvem montar uma arapuca. Dão a volta pela rua de cima da escola e contornam o muro. Não deu outra, Donizette é novamente pego em flagrante. Desta vez, além de tremendos puxões de orelha, ele toma tapas na cabeça. E as professoras ficam histéricas, tentam inutilmente esconder o pinto do cavalo com um pano, ou cobrir os olhos das outras crianças.
Não houve jeito, Donizette termina por ser expulso da escola. Seu pai fica desesperado, chora. Vai um dia até a escola para falar com a diretora, mas ela nem o recebe. Passa dias desiludido com a vida e com este mundo injusto. E não havia outra escola para Donizette. Outra escola, somente fora da cidade, e eles não tinham dinheiro para as passagens de ônibus.
Um dia o pai de Donizette aparece na escola. A diretora novamente não quer falar com ele. Ele carrega uma caixa de papel, e deixa com uma funcionária para que seja entregue à diretora.
A diretora chega, logo após o almoço. Vê a linda caixa colorida sobre a mesa, com seu nome por fora. Parecia um presente. Abre e toma um enorme susto. Não há como segurar o vômito, ela acabara de almoçar. O pai de Donizette havia cometido a loucura de cortar o pinto do cavalo e mandá-lo de presente para a professora.
O pai de Donizette passa um mês na prisão. E Donizette tem novamente a chance de voltar a estudar na mesma escola, onde era o rei da garotada. Não havia mais perigo de ser expulso, pois não tinha mais o seu amado cavalo. Ele havia sido atropelado na estrada, por uma enorme jamanta, há um quilômetro de casa, logo depois de ter fugido sem rumo; depois de ter ficado uns três dias, amuado, sem comer ou beber qualquer coisa. E Donizette ou o pai diziam: “Ele tá muito triste, muito triste. Tadinho do bichincho.”

Saturday, January 08, 2005

O PARTO DE UMA TEMPESTADE

Sou agora um eterno raio de esquecimento para morar em minha própria agonia, a qual o passado trabalha arduamente para enterrar. Mas sou também aquele que mira o absurdo e pode degustá-lo. E durmo feliz no ponto de luz de seus olhos com sabor de estrela cadente e sonho. Adentro o buraco que se cravou em meu peito para habitar o gozo do abismo de uma palavra doce e apaixonada. Volto a voar por entre nuvens e horizontes de alegria estampados no sorriso de quem se colidiu com um caminhão de sentimentos e o terremoto que isso faz na alma. Jamais somos somente o que se fabrica nas vozes que comandam a orquestra da banalidade. Somos vulcão e a onda do mar de sensações que explode com qualquer exército de razão. Somos folha no vento soprando saudade na vila do desejo. Somos também uma coisa que respira poesia, e o parto de uma tempestade de belezas inauditas. Basta descobrir a criança que sorri por detrás do homem. Basta desenterrar canções que plantamos para colher um pouco de amor. Deve-se olhar para o fundo da terra moída de nosso segredo e de nossa dor. Deixar que as mãos instalem o futuro de nosso sorriso. Peço demissão do mundo feito máquina de bajular a normalidade. E o dia começa em seu sorriso de duas palavras e um coração povoado de vida.

FASES DA VIDA

(Texto que escrevi para o convite dos formandos do curso de Psicologia da Unip de 2004)

Primeiro o homem é lançado, jogado no mundo, dizem os existencialistas. Isto, embora em outro contexto, também é dito pela Biologia Evolutiva: o homem é a espécie de mamíferos que possui o nascimento mais precoce. Nascemos antes da hora. O bebê humano é o mais despreparado e frágil da natureza. E novamente a impressão que se tem é a de que somos jogados no mundo. Então não há nada mais existencial do que o desamparo de um recém-nascido? Sim e não. Sim porque sendo jogado no vazio de um mundo em que tudo lhe é estranho, e estando a experienciar tudo pela primeira vez, vive o drama existencial da ausência completa de referências, um mundo todo a ser construído. E não, porque não tem o poder de responder por nada, o mundo é anterior à sua frágil e indefesa existência.

Depois, na adolescência, o ser humano começa a perceber que o mundo de seus pais não é o mundo em si. Percebe que podem e existem vários outros mundos possíveis. Assim começa uma vida marcada por conflitos. Se não houve conflito e sonho (senão utopia), não houve adolescência e talvez hoje sejamos na verdade somente crianças crescidas. Típica falta de identidade do adolescente, seu comportamento de rebanho é justamente o que mais caracteriza a sua busca por uma identidade. Rejeita de onde veio e não questiona para onde vai.

E o adulto? Seria uma forma resolvida, uma forma estabilizada, ou papéis sociais já bem cristalizados, a adaptação social? Aquele que aprendeu onde e quando mentir? Ou aquele que pode encarnar o mínimo necessário do dinamismo da vida? Ou seja: amadureceu. Mas o que é amadurecer? Saber onde, quando e como as coisas devem ser ditas e feitas? Equivocar-se menos? Então somente fazer o que deve ser feito? Não, para ser adulto não é preciso renunciar à nossa humanidade, à nossa liberdade, à nossa criatividade, à alegria da criança que carregamos dentro de nós. Ou ser adulto está mais relacionado às responsabilidades? Ser responsável por si mesmo e pelos outros. Aliás, parece inclusive que passamos boa parte de nossa vida lutando para sermos adultos. Adulto (com “A” maiúsculo): um ideal inatingível. Tolo de quem pensa que o alcançou.

E os velhos? Não falemos nada, é mais valioso escutá-os. São as testemunhas vivas do que jamais poderemos verificar.

Friday, January 07, 2005

ENSINO SUPERIOR 2

Durante uma aula no curso de Psicologia, uma aluna fez uma pergunta difícil de ser compreendidda e que escapava completamente ao tema.
“Professor, quando o bebê fica irritado com o peito, na hora de mamar, o que isto significa, qual é o diagnóstico?”
Todos os presentes em sala olharam atônitos para a senhora, sem compreender o que perguntara e como havia conseguido o disparate de fugir tão completamente ao assunto da aula: fobias. Também, confuso, e naquela altura do campeonato, tendo que correr com o programa e sem tempo para perguntas insólitas, respondi:
“Veja bem, este bebê é um mau-caráter. É isto, é um bebê canalha.”
Ela foi direto falar com a coordenadora do curso.

ENSINO SUPERIOR 1

Henrique, um professor de sociologia, amigo meu, estava muito contente com a aula que ministrava sobre Max Weber, pois os alunos demonstravam estar muito interessados e envolvidos com o assunto. Um aluno levanta a mão, com a expressão grave de quem faria uma pergunta profunda:
“Professor...”
“Sim, diga.”- responde o professor, incentivando a participação deste aluno tão compenetrado.
“Professor... ah... dia doze, dia dos namorados, vai haver aula?”
Henrique fica, por cerca de alguns segundos, simples e literalmente boquiaberto, paralisado, como se tivesse tomado um choque, olhando fixamente e assustado para o aluno. Fecha a boca, olha para a turma e volta a falar de Max Weber, como se aquela questão absurda não houvesse sido pronunciada pela boca daquele aluno.

O INFINITO, O ACASO E O ABSOLUTO

Nascemos para o infinito. Vivemos no acaso. E morremos para o absoluto. Ao nascermos o mundo é experienciado como sendo sem bordas, sem fronteiras, sem limites: o espantoso mundo da criança. Por mais que determinemos o que será o destino de nossa vida, o acaso é sempre vencedor, pode sempre dizer a última palavra. Prevemos alguma ou muita coisa, mas a margem de erro não morre nunca. A morte é o absoluto, algo que de tão imponderável e inefável, não tem relação com nada.

Aos educadores

(Texto que escrevi para a colação de grau de alunos de licenciatura da Unip em dezembro de 2003)


O mundo cão do desemprego está latindo lá fora. Daqui sabemos do seu cheiro. Sabemos de desafios que nos esperam. Lá fora, ou melhor, em todo canto, o mercado está no cio, e a tudo devora. Como conciliar amor e dinheiro? Como estimular o espírito crítico de nossos jovens se há sempre o mercado em nossos calcanhares pondo tudo à venda. Ideologias são descartadas, utopias de fraternidade cedem lugar ao produtivismo. Como amenizar desigualdades sociais? Querem o consenso em torno do produtivismo. Ou seja, vamos aumentar o PIB, o produto interno bruto. Às vezes é tão bruto o mundo do trabalho, da caça pelo emprego, pelo sucesso, pela fama sem rumo, pelo “quero mais é salvar o meu”, “pelo sai da frente que quero passar”. Tão bruto que um só planeta não agüenta. Aumentar o PIB... Sim, vamos aumentar o PIB global! Mas quantos planetas Terra precisaremos para isso?

Bom, não me alongarei muito sobre este papo de PIB. Mas é que o Deus-mercado está aí, uivando freneticamente seu cio, mudando tudo e a todos. A minha questão é: onde fica a educação? Estaremos preparando-nos e preparando nossos jovens somente para responder ao mercado? E a formação crítica, o que é isto? É discordar de tudo, é ver gratuitamente defeito em tudo? É ser cri-cri? Não, isto não é ser crítico. Krisis, em grego, significa análise detalhada. Ser crítico é ter a capacidade de conduzir uma reflexão aos seu limites, às suas diversas dimensões possíveis e tangenciar o impossível do pensamento, onde o pensamento ainda não chegou. Qualquer perspectiva educacional, se puder estimular o espírito crítico, estará cumprindo uma parte imensa de uma educação que não somente atue para adestrar e adaptar as pessoas a uma sociedade injusta. Se a busca de uma sociedade mais justa é um valor inquestionável; e se esta busca não é somente a retórica vazia de um discurso demagógico que se construiu na fachada de nosso sonho de nação; a formação de cidadãos críticos é um dever também inquestionável.

<>Há amor em nossos corações. Quem pensa em educar, tem amor no coração, senão nem pensaria nesta tarefa impossível. Sim, existem amores de toda a natureza, inclusive amores loucos e doentios. E é por isso que a educação não termina nem começa na figura do mestre, do professor, pois este deve constantemente também estar educando-se. Nós professores também nos educamos ao educar o outro. Por isso se diz que aprendemos muito com nossos alunos.

Segundo Freud (não me pergunte por quê), a educação é uma tarefa impossível. Impossível, mas para a qual não temos como virar as costas. A perfeição, sim, é impossível. A educação, jamais. Mesmo que impossível, é um dever, uma meta da qual não há como fugir. Talvez boa parte das grandes obras humanas sejam fruto de mirar o impossível e lutar por conquistá-lo. A educação, como um ideal, não se furtaria a isto.

Comte-Sponville cita o pensamento cartesiano: julgar bem para fazer bem. Julgar bem é a parte contemplativa. Fazer bem, a prática. Há quem seja mais dotado para a contemplação e quem seja mais dotado para a prática. O primeiro terá de aprender a querer, a agir. O segundo terá de aprender a ver, a contemplar, a analisar. Há atualmente um imaginário dominante que privilegia a prática em detrimento da crítica. É mais importante fazer do que pensar. Como se o pensamento jamais pudesse basear a ação.

A prática sem crítica, sem teoria, sem consciência da finalidade da ação que se realiza é somente um automatismo, uma prática alienada. Todo processo educativo deve ser desalienante. O que digo aqui não é somente uma conversa fiada para marxista ouvir, não. A alienação está presente em diversos níveis: tanto no nível social como no nível psíquico. Não ter a posse de si mesmo é estar alienado. Quando uma pessoa faz algo não sabendo porque fez, não reconhecendo-se no que faz, há alienação. Dar um chute no cachorro no final do dia porque se está com raiva do chefe e não saber que assim o fez porque tinha raiva do chefe, é praticar um ato alienado. Nossa função, tanto como educadores quanto como psicológos é também em boa medida, desalienar, fazer com que as pessoas se reconheçam mais em suas ações, que tenham a posse de si mesmas.

Talvez todo empreendimento humano tenha como meta ideal não simplesmente a felicidade, mas sim a sabedoria tal como ela pôde ser definida em nossa história ocidental. Sabedoria: o máximo de felicidade no máximo de lucidez. Mas qual seria o problema de ser feliz sem lucidez? Qualquer felicidade já não seria suficiente para aniquilar qualquer condição que se lhe imponha? Se a felicidade fosse um bem absoluto, a educação teria que deixar de sê-lo. Se a educação é um bem absoluto, a felicidade deve estar condicionada a ela. A educação visa o bem comum. Quando pensamos em termos de espécie humana, a educação é o que vem primeiro. Pois ela é o caminho que inventamos para a felicidade.

Wednesday, January 05, 2005

ESTÓRIAS DE VÔ TENOR 4

Meu irmão, como tenente da marinha, ficou durante um ano morando na Amazônia, dentro de um navio hospital.
“Ele está bem lá...” disse meu avô a meu pai, referindo-se ao meu irmão.
“Por que, pai?” - perguntou meu pai, sem saber sobre o que meu avô repentinamente começava a falar.
“Porque ele está lá, feliz, na companhia do pai.”
“Não, pai, o pai dele sou eu” – responde meu pai, filho de meu avô.
“É, mas ele está bem lá...”
“Por quê?”
“Está lá, feliz, na companhia do avô”.

ESTÓRIAS DE VÔ TENOR 3

Certo dia, sentado ao sol e olhando fixamente para o céu, meu avô exclama, atônito: “Nossa, o sol nunca vai se por, nunca mais. Agora será tudo eternamente sol...”

ESTÓRIAS DE VÔ TENOR 2

Em uma tarde de verão, chego à sua casa e ele pergunta:
-Você veio de trem?
-Não, vô, eu vim de carro.
Os trens haviam sido extintos há mais de 60 anos.
Depois de alguns minutos, pergunta novamente:
-Cadê o menino?
-Qual menino, vô?
-O seu filho.
Eu tinha somente quinze anos de idade.

ESTÓRIAS DO VÔ TENOR 1

Meu avô, quando já estava bem velhinho, fazia algumas confusões. Sentado em um banco de praça com minha avó, olhando fixamente para ela, pergunta:
- Você mora aqui perto?
- Sim - responde ela.
- Tem filhos?
- Sim.
- Quantos?
- Seis. Dois meninos e quatro meninas.
- Ah... E... você é casada? - curioso, mas meio sem jeito.
- Não, sou viúva.

Tuesday, January 04, 2005

VÉIO, VÉI, OU VELHO MESMO, NÉ

Ainda estava muito escuro. Eu e minha companheira estávamos de férias e esperávamos ansiosamente pelo sol no horizonte. Seriam as boas-vindas ao novo ano que começava. A praia estava repleta de pessoas, principalmente jovens. Estávamos observando a imensidão do céu estrelado. A cada olhar mais atento, era possível um espanto com o que existe acima de nós. Ao nosso lado um grupo de rapazes espantava-se com muita facilidade, estavam abismados com o tamanho do universo.
- Véio, olha aquela estrela, véio... Véééééio, vééééio do céu, olha ali, véééééééí...
Meu Deus, fiquei perplexo com a quantidade de vocativos do tipo “véio”. Retruquei para a minha companheira, imitando-os:
- Véio, véio, véio. Véios de todos os asilos do mundo, do novo e do velho mundo, véééééio, olha aquela estrela, véééééio.
Que infelicidade, eles perceberam minha zombaria. E um deles, “acidentalmente”, esbarrou em mim. Diga-se de passagem, eram todos musculosos e destemidos. Logo que esbarrou em mim, não hesitei:
- Feliz ano novo pra você, meu amigo, muita paz, muita paz – e dei-lhe um abraço forte, de macho, pois era isto o que queriam aparentar ser.
Para este que aparentava maior disposição para violência, eu desejei paz. Para outro, que estava bêbado, fiz votos de saúde: “muita saúde, muita saúde...”. Para o mais magricelinha: “muita fartura...”. Continuei minha zombaria, contudo num tom mais fraterno. Nem perceberam.
Mas o excesso de “véios” da juventude deixou-me intrigado. O fenômeno “véio” tomou conta de todo o Brasil. Trata-se dessa mania de tratamento que atualmente predomina entre os jovens brasileiros de um modo geral. Não se sabe como surgiu. Talvez num asilo? Não, velho, exatamente no meio da juventude, velho. Todos transformam-se em “velhos”. O véio está em todo lugar, não deve morrer tão cedo, véio.
Não podemos mais fugir do “velho”, ele chegou para ficar, para reinar, em toda boca jovem ou lugar. Mas o “velho” é coisa de jovem. E engraçado, um amigo meu, muito mais velho que a maioria, chamava a todos de “jovem”. É, o Brasil se prepara de verdade para ser, no futuro, um país de velhos, pois todos os jovens assim se evocam? Um jovem chamando o outro de véio está tentando se auto-afirmar, se sentir mais maduro? Fumar cigarros com pose de cinema já não é suficiente para tal intento? Ou esses jovens fumantes maduros sentiram em algum momento que faltava-lhes uma forma de tratamento à altura, e resolveram criar o “véio”?
O “véio” começou sua história como um simples nome ou vocativo, tal como “meu”, “bicho” ou “brother”. Contudo, velho, isto não foi suficiente. O uso da expressão tornou-se tão demasiadamente abusado que o “véio” virou vírgula, velho. Primeiramente podemos compreender é que onde estiver a palavra “véio”, o cérebro está em pausa, os neurônios estão pedindo um copo d’água para poder respirar melhor, velho. Como se nosso pensamento ou nossa fluência verbal precisasse de uma espécie de câmbio, o qual poderemos agora chamar de “sistema véio de engate verbal”. Sem este câmbio a conversa perde sua fluidez e podemos ser tomados por vazios ou silêncios constrangedores.
O “véio” está se proliferando, virou praga, véio. Velho, velho, velho, mil vezes os velhos do novo e do velho mundo, o “velho” só faz crescer. O “véio” é o mil utilidades lingüístico da moda. Os “véios” estão aí, devem demorar partir.
Não se sabe exatamente a origem desta expressão tão plural, tão pública. Sabemos que o “bicho” é nascido em tempos “hippies” em que o desejo de voltar a viver numa condição mais próxima da natureza era eminente no imaginário da contracultura. Todos queriam se afastar da nojeira da guerra do Vietnã e da explosão das ditaduras pela América Latina, ou do espírito neo-liberal que já acenava no horizonte. “Todos”, quer dizer, os engajados no movimento de contracultura. A expressão “meu” vem na contramão da contracultura e abraça o “status quo”, o sistema constituído, o frenético produtivismo capitalista, vide paulistano vendido.
Mas o “velho”, velho, de onde surgiu, velho? Talvez seja melhor que o “né”. Eu, particularmente, para falar a verdade, velho, não gosto. Acho que está havendo um abuso, tornando-se enjoativo e débil. O “véio” parece que aparece para preencher o vazio de uma debilidade mental da atual juventude. Há um uso e abuso do “velho” em função da idéia em desuso, do pensamento obtuso, da falta de fuso, de “véios” vazios e confusos. O “véio” tornou-se nauseante, sem futuro e sem passado, sem fronteira e sem respaldo
Mas o “véio” é muito diferente do “né”. Prefiro o último. Este não vê cara, nem coração, porque não é um nome. O “né” só está pedindo uma confirmação do outro. Também preenche um vazio mental momentâneo. Só que o “né” não virou somente uma moda, não ficou na boca de todos e nem construiu uma corporação de usuários, restritos a uma faixa etária ou grupo sócio-econômico. O “né” é universal, sua extensão é enorme. Isso faz até com que perca muito de seu valor, pois todo mundo fala, não invoca nenhum senso de propriedade: “Ah, esse é do meu grupo, esse é só nosso”, não, o “né” é de todo mundo, não há uma cerca que possa privatizá-lo. Quem quer se diferenciar não pode usar o “né”.
O “né” sofre todo tipo de preconceito. Todos estão sujeitos a ele, nas mais variadas situações. Dependendo da ocasião, pode ser fatal. Imaginem uma entrevista com o presidente da república em que o “né” aja como um invasor e conquistador implacável, destruindo a pontuação, entremeando-se a cada pausa. Um abuso de “né” é geralmente insuportável e repulsivo. É uma doença. Muitos de nós insistimos em apresentá-lo até mesmo ao se falar em outra língua: “I was in the beach. Then, there were some guys, né...”. Não percebemos, ele é um invasor, uma bactéria que quer contaminar cada final de idéia, frase ou pensamento. O “né” é uma praga, um vício que não vê raça, credo ou classe social. Cuidado, que ele pode pegar você!
O “né” é um marginal lingüístico muito feio, que eu adoro, pois é meu vício, né. Ou melhor, minha relação com o né é ambivalente: não gosto, mas não consigo me desfazer dele. Quero exterminá-lo da minha cabeça e da minha boca. Que desapareça, que não sobre dele nenhum mínimo e microscópico vestígio: eu odeio você, “néééé”! Principalmente quando vejo-me ao seu lado, abusando de sua utilização. Que deprimente, que desqualificante. É preciso tomar uma decisão política para a extinção de “nés” e “véios”. Quem sabe criar o “N.A.” (“Nés Anônimos”) ou “V.A.” (“Véios Anônimos”).
Voltemos ao “véio”. Sua utilização abusada e banalizada também pode doer nos ouvidos. O “véio” é muito diferente do “né”. O primeiro é corporativista, a marca de pertencimento a determinado grupo. O segundo é um vira-lata, um vírus que pode atacar a qualquer hora e lugar. O primeiro é privado, o segundo é universal. O “véio” é fetiche, temporário, o “né” é universal e atemporal. O “véio” é um irritante grito de liberdade dos jovens no ouvido dos velhos. O “véio” é a negação dos velhos e da velhice, quer impor novos costumes e nova gramática. O “né” já se impôs há muito nos subterrâneos de nossa fala e pensamento e insisti em subexistir eternamente...
Por outro lado, véio, não exageremos, pode ser que não seja tão grave assim, né.

ARDOR-ESSÊNCIA ("volúpia de jazigo instantâneo" - versão II versada de lindeza do paraíso espontâneo)

(Classificado para a antologia do Concurso Escriba de Poesias de 1998. Concurso com 1950 trabalhos inscritos e todos os estados do Brasil representados)


Pés e perna em brilho,

descobertos à intimidade doméstica.

Pele exposta, cabelos longos,

suave sua massagem encobre erógenas curvas.

Pudico ambiente aberto

à fugaz e inocente presa

corre...

passeia à imaginação

pelo quarto:

pernas

ancas

ventre

descansa o sexo em beijo ao lençol.

Suspensos mamilos,

espreguiça na cama o corpo livre

excitação desespera-se por romper à rua,

ânsia pressa exibir-se

pele sem peça

pés

à

ca- be-

-ça.

Puro sexo o

cheiro andar coxas e nádegas.

Firme,

exposto à pouca roupa, o verde fruto róseo,

em doce acidez, cativa ao pé

dos pés à cabeça.

Seios à frente,

amistosa recepção.

No sorriso um arriscado convite.

Perigosa a obscura aventura,

nas pernas o tremor entrega.

Hesita gagueja engasga seco disfarça

o sorriso amarelo se esforça para a visão enxergar melhor.

Turvas atitudes,

comportamento

indeciso

ao

provável

prazer.

Desespera-se,

goela adentro o desafio.

Inchada, a imaginação corre ao banheiro:

porta fechada,

teto rodando,

rápida mão...

Até às paredes espirra a adolescência!

Monday, January 03, 2005

Sua nudez em pão de cada dia


Zuleica, desligada, mesa posta, já comida, sua nudez em pão de cada dia. Nas havaianas, um belo pé sem chulé. Corre linda, sala vazia, o quintal lavado, a louça brilha. Riso fácil, coxas largas, o tesão escondido do pedaço.
João no portão, vindo do trabalho, e Zuleica uma bela e rebolante bunda que passa.
- Oi Jão, tudo bão? - passinho rápido, sorriso farto. Olhar pra João, tesão, olhar pro chão. E foge a sádica.
Gostosa, sempre decotada, pelada, na cama, chuveiro, mercearia, quitanda, no padeiro. Vai pela calçada, são anos os seus passos.Cabelinho curto, rosto redondo, é a nossa simpática vizinha do lado...
O totó vem latindo excitado, e a Zuleica inclina-se, lambidas, lambidas, ela não nega o afago. Êta totó felizardo! Mas não entra não, pernão. Vamos fingir de olhar as crianças brincando de esconde-esconde na rua. No bate-cara, a gente se olha. O molequinho correndo, aproveito, corro com ele e paro o olho em você, que parava em mim, quando o pirralho ainda saia do pique.
Hora boa, às cinco da tarde bate forte no João.
Corre pro portão! Cadê Zuleica?
Lá está!
Mas disfarce...
Varra a calçada, lave a bicicleta, vá comprar leite no bar da esquina!
Ela olha tudo. Será que sabe? Perigo, João!
Dá até vergonha de falar oi. Mas bem que pulava o muro! Falta é coragem, ser muito louco, suicida.
Então vamos, canalha! Arrisque, pule!
E depois das seis, quando ela já entrou para fazer a janta, João resolve pular até o banheiro. Porta fechada, derramado no chão frio, maníaco a esfolar o sexo entre a privada e a pia:
 Zuleica na cama, de pernas abertas, no chuveiro brincando com o esguicho, azulejo molhado, na sala, arrancando a roupa, pulando numa perna só, imitando sapo, a perereca ligada. João por cima, de lado, atrás, por baixo, todo um peso em pele, o teto envesgando, ofegante, relincha, apita, morde o pé do sofá, esperneia. E Zuleica espirra alto, farta, vai longe o pingo que alcança o olho.
João acaba morto, fica rendido: o suor das costas no piso frígido do banheiro. Fim da batalha. Vai abrindo os olhos devagar, e logo reconhece, no lodo preto do chuveiro e no cheiro típico de banheiro, a sua realidade.

Sunday, January 02, 2005

Papel higiênico com "florzinhas"

Momento 1: É interessante, está escrito na embalagem: “perfumado e com florzinhas”. O sujeito acaba de destruir a ordem olfativa matinal, em toda a pirotecnia possível do espetáculo também sonoro a se lambuzar nessa trivialidade cotidiana que a sociedade moderna transforma em fatalidade constrangedora: o ato de defecar.
Momento 2: Momento de limpar-se, e bem. As florzinhas perfumadas farão a massagem de limpezas e um perfume que ali deveria impregnar-se para disfarçar a guerra que ali se fez no fim do mundo, ou melhor, no fim do corpo, seu porco.
Momento flor: Do alto da vida prática e da lógica é mesmo de se indagar: qual, afinal de contas seria a função de florzinhas estampadas, em baixo relevo, no verso de um papel higiênico? Por que escolheram exatamente as flores? Por que as flores são exigidas e representadas em tantos lugares, de diversas naturezas: em funerais, casamentos, inaugurações, recepções, seu valor de decoração, sua beleza enaltecida e inquestionável como presente, de namorados ou não, etc? Aparentemente, o máximo do disparate é que as flores venham a comparecer singelamente no momento em que alguém acaba de defecar e precisa limpar-se. Que diferença fariam as flores estampadas na superfície de um infeliz papel que irá se casar com fezes? Digo infeliz, porque feliz somos nós, que deles fazemos bom e variado uso. Desculpem-me, não quero parecer escatológico, mas é que as flores são tantas coisas. Embora esta constatação nos surpreenda, não seria para tanto. A relação que temos com as flores é tão forte que o fato delas extrapolarem e atingirem lugares remotos e perdidos em nossos costumes e tabus morais geralmente não oferece espanto.
As flores são confortantes e estimulantes, em diversos sentidos. As flores aspiram resumir o símbolo todo da sexualidade e da beleza. Tão femininas, tão cores, cheiros e belas. São podiam ser as flores para amenizar a terrível hostilidade moral de uma cagada e a lambuzeira decorrente. Cagar sempre como um ato transgressivo e o florear como ato confraterno, suavizando também a hostilidade da cópula escancaradamente obscena, explícita, em close de zoom. Sim, as flores para conter a morte e a pornografia, as flores são tão sublimes, as fragrâncias, então, tão suaves... E essas reticências caem tão bem com flores, elas somente nos sugerem. Sugerem o coito, os estridentes e frenéticos gemidos do caule e pétalas eretos - visão vegetalizada dos órgãos sexuais a se abrir despudoramente para o mundo todo, como se dissessem: “Eu estou aqui. Vejam, hipócritas, o quanto me amam! Vejam mortais, o quanto sou, o quanto eu posso. Eu transcendo o sexo e a morte. Eu faço amor com a morte. Eu sou o sexo puro brotando da terra, diante dos seus olhos em transe. Sou uma obscenidade divina...”
E as reticências continuam... As flores não exclamam, seu grito é uma visão do caule e pétalas eretos, desafiando a gravidade, a moral e os bons costumes, sem que nínguem, é claro, perceba a sua bela e majestosa revolução silenciosa. As flores são mentirosas. Mas são mentirosas porque são senhoras de uma verdade muito sutil. A sua sutileza é de poder gritar dentro da alma. Quem já recebeu flores sabe muito bem do que estou falando.
E as mulheres...? Mulheres adoram flores. Uma das formas da natureza mais belamente representadas da sexualidade são as flores, e estão aí, à nossa vista, em qualquer jardim. Contemplar uma flor é ter visões de prazeres que se anunciam. Ver uma flor é também saber inocentemente as formas de um gemido de prazer. As flores são absurdamente femininas. Não decidem nunca, não existe matar ou morrer, as flores são teimosas, devem sutilmente resistir. Os homens desejam flores porque desejam mulheres. As mulheres desejam flores porque desejam eternidade... Mas as flores não gritam. E eu aqui inultilmente tentando gritar por elas, dizer o que são ou seriam. Contudo, falar de flores é também falar de mulheres, e falar de mulheres é também possui-las de alguma forma ou, melhor ainda, se me permitem, ser possuído por elas. As mulheres são possuídas pelas flores dadas pelos homens que são possuídos pelas mulheres que possuem os homens que deram as flores que possuem o sexo e a morte, o meio e o fim, para inventar um outro começo, amanhã, talvez...
E ficam as reticências, para sempre... As flores, elas não morrem...

A CRÍTICA DA BUNDA PURA

(Publicado no "Caros Umbigos", em 2000)

“As emissões do falo, as convulsões da vulva e
as explosões do cu nos apagam o riso da cara”
Octávio Paz

Muito já foi dito sobre a bunda. Mas a verdade é que a bunda não se cala. Tem muito a dizer ainda dentro de toda a sua mitologia para continuar falando para os homens de seus mistérios surdos.
Ela está bem no centro do corpo, abrigando e protegendo o que dizem ser o centro de massa do corpo, aquele sujeito escondido, taciturno, arcabouço de tabus históricos, o cu. A bunda abriga e protege o cu e até mesmo a vulva ou parte dela. A bunda é a moldura do cu. Moldura esta que guarda tudo o que ela pode mostrar sem escancarar. É uma fenda onde transita um buraco negro aleatório. Bingo!! O cu não existe e a bunda está ali para disfarçá-lo, mascarar, fazer-lhe mote? A bunda é uma melodia que acompanha a volição sem palavra, às vezes ruidosa, da porta para o intestino? E se o cu tem vontade, a bunda não, mas está sempre sorrindo.
Composta por duas esferas que se enfrentam e se abrem nas extremidades. Onde se enfrentam, constituem sua tensão indissolúvel, o cu e aquelas suas fissuras com cara dura de dor. Embora não seja dor, mas somente o que permanece naturalmente trancado. O cu é uma coisa para ser destrancada, um olho adormecido, ou um olho ao avesso. Mas eu quero é falar da bunda. Esse nome de origem africana que os brasileiros eternizaram. Só isso já é o suficiente para imaginarmos o quanto a nossa bunda tem mais samba, requebra e brinca com a gravidade, tanto a física quanto a moral.
E a bunda parece o infinito. Duas esferas que se encontram, beijam-se, se espalham e depois se esparramam para o infinito. Falo mesmo é daquele símbolo do infinito, o oito deitado, que seria também a representação do universo, do um-inverso. Você pega uma esfera e a corta ao meio, girando as duas metades e fazendo com que as suas duas faces opostas se beijem. Assim está desenhado o oito deitado, a representação do universo (um-inverso), a fotografia de uma eterna explosão. É muito engraçado, nós vivemos no universo, nos somos o universo, em constante explosão. Estamos explodindo, é essa a nossa realidade material mais básica: a evolução material com dispersão. E onde entra a bunda nisso tudo? Ela não entra, simplesmente explode perante os nossos olhos. Uma explosão do corpo, em carne. Assim como o coração está sempre a explodir dentro da gente (esta bombinha que nos alimenta), a bunda também, só que do corpo pra fora, para aparecer, exibidinha... Explosões do coração: contidas que vem e vão, pulsações. Só que a explosão quer nos enganar, dizer que extrapolou. E nós acreditamos, principalmente se a bunda flutua, não respeitando a gravidade. Isso, estou falando de bundas voadoras, e que explodem em saladas de peles. E quanto mais bunda, maior o seu tamanho, maior o seu mistério, pois mais gravidade deve ser desafiada.
Aí começam a esboçar-se todos os devaneios e delírios possíveis em torno das esferas gluteanas. Qual seria a bunda perfeita? Seria a bunda clássica, gestáltica? Muitos tendem nesta direção. Aliás, é o gosto médio que, segundo seu veredito, prega uma certa beleza ideal à qual a boa forma de uma bunda aspiraria. Pois são duas esferas, e a esfera já é um signo da boa forma. E num certo ponto essas esferas se encontram, se roçam, oscilam uma sobre a outra, testemunhando o jogo das nádegas. Este é o ponto da fenda, do que também denomina-se por rego. Esta brecha nos deixa sempre no limiar de sentir que por ali se pode espreitar, e isto seduz, pois que é entreaberto, nem aberto, nem fechado, cavernoso. A bunda é assim, vai se fechando devagarinho e esconde um vale. Isto sem dizer da mitologia do que é ou seria um vale: local fértil, de onde brota vida, com um rio no meio. Vales são sempre coisas vivas. E nossos vales sempre guardam segredos, porque guardam riquezas, reservas, recantos de intimidade. Outra associação é a de que a bunda tenha semelhança com os seios. As nádegas são duas mamas surdas, sem mamilos. Tanto os seios como a bunda guardam o seu fetiche. Os seios trazem a memória primeva de alimento, conforto, um prazer oral. A bunda carrega uma memória ancestral que não esconde o fato de que os machos geralmente agarram-se às ancas da fêmea para o ato sexual. Desse modo, uma penetração contempla sempre esta região de contato extremamente erógena que é a fenda, o beijo entre uma nádega e outra.
Mas o negócio é que as nádegas não decidem nunca se são dois membros, como as pernas, ou se são tronco. São uma transição. E são exatamente nas regiões de transição onde as pessoas costumam se perder. Sem uma definição, a fixidez necessária de um conceito ou estereótipo, qualquer ser humano se vê frente a um certo colapso cognitivo. Sim, a bunda deve continuar mostrando que ela é mais irracional do que nunca. Mas a bunda pode continuar pacificamente sendo o que é, simplesmente bunda. Falar da bunda pode parecer desonesto, é como se falássemos de alguém pelas costas. Deixar de falar, porém, é ver que o rabo do diabo inevitavelmente escapa das calças.

PORNOGRAFIA

(Publicado no "Modus Vivendi", em 1999)

Alexandra saboreava a rosca, ou melhor, a bengala. Boca sugadora desentupidora de pinto. Vai e vem, vai e vem, uma massagem, os dentes na pele salivando trilhos, fazendo aragem. Aquilo era uma fruta doce e madura, chupada de nunca matar a fome. A língua lambendo o fogo, a cabeça salivando, deixando Verusa, que observava, contrair a espinha desde o começo dos tempos, lá, no furo de nossa proteção corporal, dando asas para o estremecimento. Sua greta falava de lareira num dia de inverno papainoelzado de chocolate quente e Tv. Pra você vê, quanto pavê... A greta aberta, a linguinha de dragão dizendo vulcão por entre o dedos de Sílvia.
Vai, num gemido vem. Vai, vem. Vai e vem, um trem de luz na boca do túnel gritando um amém. Ohmm.... Som de universo chorando na boca largada de gozo, entortada, o riso, o dorso. Odor de "quero beijo", "quero quindim morrendo na boca", "quero serpente furando com força". A música e o vai e vem. Também um cavalo montando uma louca de urro e berro. Deusa pedindo o espaço sideral dos olhos fincandos no céu, perdidos num ser que lhe entra e sai. Movimento frénetico, gritos tão gratos:
- Yes, yeeeeeessss...
- Sssssssssss...
- Óóóóóóóóó... Óóóóóóóóó...
Música minimal animal pré-tonal, peritonal pelvical anal, um jogo de gozo-fogo tão mau. Afinal, para Alexandra era ali mesmo, diante das câmeras. E Hércules manejava a arma, engatilhando e enfiando a faca: vai e vem. Partida de tênis ad infinitum. Cagada na contramão. Motor do corpo dizendo para a câmera a máquina dos prazeres sem satisfação para a moral da boa vizinhaça. Sem consequências o hábito arbítrio de mostrar-se ponta a ponta, desnudados em pelo. Contorcendo-se, vitrine dos prazeres.
O olho da câmera, somente mais um companheiro, aquele que registra tudo o que vê e conta pra todo mundo, sai para vida dos olhos famintos dos eternos prazeres por procuração. Olhos de olhar o deserto arrumado na casa das fomes de pedir saladas de peles retorcidas nos lençóis da esperança prometida num instinto esquecido. Sonhos de escalar corpos, vidas de sodomizar vultos, sombras de falos falantes, cavidades obscuras de cheiros e harmonias de tempestivas mucosas flamejantes, cuspidoras de beijos e melodias peristálticas. Tradições ejaculatórias da divina vulva eternizada no arcabouço das ereções indubitáveis do jorrar vulcão das vermelhas entranhas que explodem por entre as pernas escancaradas da memória do primeiro dia de vida. Volta-vira-mundo de retorno ao voltar de sempre querer estar dentro de uma mulher. O vai e volta, um entra e sai, goza e cai, mata e vai, é mãe, é filha, é pai. Os olhos nossos de cada dia afogados no inferno de belezas mecanizadas na estripulia mistura de orgãos que se entresaem e pedaços de pessoas estraçalhadas pelo olhar consumante-consumidor, filho do próprio olhar basculatório-total da TV que vê tudo e traz para que a gente também veja. Mandamentos insones de ver-comer, engolir a fagulha dos corpos e almas ausentes dessa casca mal vestida de trajarmos todos os sóis pra depois engolir lua cheia, virar zangão, alucinar sereias, borbulhar sabão e... morrer na areia:
- Óóóóóóóóó... Óóóóóóóóó...
- Yes, yeeeeeessss...

UMA CARICATURA DO JEITÃO ACADÊMICO

(Publicado no "Modus Vivendi", em 1999)

No reino dos discursos lógicos geralmente afirma-se o lado pejorativo da representação caricata, tratando-a meramente como simplória e digna de reavaliação, correção. No reino do humor, a caricatura já pode emergir como um modelo de representação para qualquer experiência que busque o riso ou a descoberta de um traço significativo, uma analogia, antes cegamente ignorados. O texto que aqui se inicia almeja tratar das caricaturas do dito jeitão acadêmico, não furtando-se do risco mesmo de parecer caricato, pois, à prova dos nove, que lhe reste pelo menos um pouco de graça e beleza.
Para começar, eu diria que não é fácil entender o mundo acadêmico. Às vezes dá a impressão de ser somente um mundinho, ensimesmado, tratado sempre como se fosse algo fora do resto da humanidade a qual ele constantemente disseca ou dilacera nas suas disjunções analíticas de querer a tudo isolar para poder observar melhor. As lentes míopes e eurocêntricas do mundo acadêmico das ciências humanas, desesperademente ancoradas em autores e escolas de pensamento, produzem diversas impressões, dentre as quais, a de um grande circo romano, onde homens se degladiam para afirmar a sua tradição monovalente. Digo sim tradição, pois escolas se formam e sedimentam-se em suas práticas e teorias, construídas conforme um inaudito esboço prévio de toda uma visão da história e da vida humana. A tradição funciona para ser perpetuada independemente das novas que possam vir a surgir e colocar em xeque suas ideologias. Ela entroniza entidades e dogmas vitalícios que possuem sua adequação e correção coroados por mandamentos superiores, sagrados e divinos. Existem portanto tabus, núcleos bíblicos sagrados, isolados de qualquer possibilidade de alcance do nosso pobre questionamento mundano, ou melhor dizendo, terceiro-mundano - pois as especiarias teóricas não são produzidas, inventadas ou deliradas aqui, nos “pobres trópicos”: o sol na cachola dilui demais as idéias, não há consistência que aguente, vira tudo uma confusão, um suruba incontrolável, e aí quem cria essas idéias sem pai, filhas de um sopão do calor de quebra-coco?
A tradição, como eu dizia, é portanto a parideira da fórmula mágica: “em ciência nada se cria, tudo se copia”. De certo modo ainda impera em nossa vida acadêmica o peso histórico do Antigo Regime. A academia tem como merenda as modernidades e pós-modernidades e continua a arrotar a estrela maior da tradição. Não existe mesmo o tão sonhado estado de direito epistemológico, ou a cidadania epistemológica, essas miragens absurdas, pois eles sem dúvida só se efetivariam sob a utopia de um anarquismo metodológico, o qual, de longe, nega uma enormidade de procedimentos e práticas que se primam pela tradição. A academia preza por uniformidades que se trilham, queiramos ou não, por uma série de ideais voltados para a desejada apreensão e controle lógico dos seus objetos de estudo. Desse modo, os policiamentos discursivos adquirem contornos por vezes obsessivos e caricatos. Qualquer estilização que minimamente escape ao sacerdócio da divinizada forma enaltecida por determinada linha de pesquisa é logo amputada ou reprimida. Isso vem a se concretizar em um certo nível de controle dos discursos que aborta qualquer estilização ou desvio que possa anunciar-se como fruto de um não-saber, o qual talvez até venha a se mostrar como fecundo para aquele momento de desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Ou seja, o erro, como em nosso sistema educacional como um todo, é execrado, estirpado segundo os ditames e ditados das cartilhas da correção e do entronado estilo redundante-prosaico, purista. A cara feia e amarrada do purismo é eleita em função da tolerância zero ao erro. E o quanto se aprende com um erro já é muito bem aceito no imaginário acadêmico, no entanto a academia não permite-se como sujeito de errância. Prefere não correr o risco de perder um pouco o controle das variáveis e da linguagem-uniforme.
Cada corporação ideológica veste-se com sua linguagem específica e sua marca registrada, não permitindo qualquer espécie de orgia teórica, pois esta extrapola o ideal de completude visado pela lógica dual das desejadas e clássicas simetrias entre objeto e teoria, entre linguagem e mundo. As corporações, as patrulhas acadêmicas são clássicas no seu sentido mais obtuso, pois sonham e creêm piamente na perfeição das simetrias, na perfeita adequação entre o mundo e o que podem dizer, expressar dele. Isso tudo sem aperceber-se de que aí só se trata de uma questão de olhar, de beleza, de gosto, e não de verdade. Seu classicismo tacanho rodeia seus objetos no mesmo automatismo repetitivo do papagaio que mimetiza com perfeição mas não pode interpretar o que ouve com vistas à integração e associação com elementos naturalmente díspares da sua cotidiana e pequena existência.
Claro, não podemos negar, o realismo, o clássico, eles também podem revelar muito, pois são ótimos e fiéis escrivãos de fatos; fotografam e dão as provas do crime adequadamente, corretos com o que foi de fato, e foto, e em foco. No entanto o problema recai é na questão da interpretação, pois “as histórias baseadas em fatos reais” levam ao extremo a sua vitória tecnológica de querer também se afirmar como as rainhas das ciências do espírito, esbanjando descritivismos, “apresentações” (ao invés de somente representar), “imagens claras e transparentes dos objetos”, que não seriam nada se não houvesse alguém para dizer, nomear o que são, interpretá-las e inviesá-las.
Bom, como este artigo não é sério, mas somente uma caricatura. Como esta história não é baseada em fatos literalmente reais... O que visei aqui, no fundo, foi somente sugerir um pouco do quanto o espírito racional humano funciona segundo princípios de separação e exclusão, o quanto os estereótipos são fundamentais enquanto reguladores dessa mesma razão (como já nos dizia Kant); e o quanto a voracidade de veracidade contida nas profundezas de nossos impulsos categóricos e teóricos restringem a produção de conhecimento em ciências humanas, a qual possue tanto saber como sabor. Ou seja, produzir conhecimento, é produzir tanto verdade quanto beleza, é imergir tanto no mundo que informa quanto no mundo das formas.

Saturday, January 01, 2005

CASÓRIO

“Ó Senhor, não me repreendas na tua ira, nem me castigues no teu furor. Porque as tuas flechas se cravaram em mim, e a tua mão sobre mim desceu. Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há paz em meus ossos, por causa do meu pecado. Pois já as minhas iniquidades ultrapassam a minha cabeça; como fardos pesados são demais para as minha forças.” (Salmo 38, Bíblia Sagrada)
Rezando por dentro, estavam todos mendigando pra Deus. A mão que pede e agradece em dobro. De Deus recebe, com Deus paga. Alguns sacrifícios no ar, prescritos no caminhar do culto. Nas bocas, as palavras ajoelhadas no escuro de cada sofrimento. Ali, no casamento que aproxima o maior momento da vida do que se nasceu sonhando pra esse dia jurado num juramento sagrado. Sagrada a atmosfera impenetrável da fé insana. A lucidez rodopiando, uma vida inteira em busca de alguma vida eterna.
Entram os pombos, estão noivos. Esperando Deus aprovar, regrar e vigiar o que será tão íntimo.
- Jesus veio? - pergunta algum herege, do canto sujo em que se esqueceu.
- Jesus veio? - insiste no pecado do que não se ouve eco.
O coro entoa. Vozes rachando, que Deus não esteja somente no trovão. Que Deus fale, vibre em cada fiel. Estremeça o templo, faça grande ser maior, cabeça a se curvar ao relâmpago, sua voz virar trovão. “Eu sou Deus”, gritou o céu. Correram nuvens em avalanche. O vento levou toda uma cidade, populações pulverizadas. Eu sou Deus!! “(...) e o sol tornou-se negro como um saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue (...) E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos de seus lugares” (Apocalipse, cap. 6). Deus estava lá em cima, bem no alto, do alto do trono. Suas barbas escorriam sobre o planeta. A simples igreja, ali, no interior, já não era tão simples. Era todo um mundo compacto, vertido para outro mundo do qual não contemos as chaves, os segredos. Um mundo em plena pane, a queda livre de toda a razão. As cabeças de todos os fiéis rumando à loucura prescrita pelo sacerdote que também já não responde por si. Kamikases em direção ao absoluto pelo qual rezamos todos os dias. O absurdo. Não existe chão, não há limites. O vento da escuridão no rosto, somente uma luz no fim de um túnel sem fim. Uma velocidade cada vez maior, sem destino, ou melhor, rumo ao crescimento da seita, exércitos recrutados na visita da miséria, crises econômicas, vidas vazias, sem sentido. O templo aberto ao transe coletivo, as cabeças escancaradas a esse vendaval fazia sentido. O mundo estava de pernas para o ar, orbitando no vácuo dos sonhos de cada um. O orgasmo cósmico. O sangue entorpecido de fé. Paredes desmoronando, o chão longe dos pés. O corpo entregue. Em seus braços posso morrer tranquilo, meu Deus. Existe a dor, porém à sombra de sua asa não me vejo o filhote perdido, doente, rastro de tristezas, mancando moribundo pelos cantos mais sujos do mundo. Assim urrava o Salmo 38, salpicado de fins de mundo, a cada passo do casamento. O Salmo 38 era o pilar da fé, do temor a Deus; o pilar de todos os templos já construídos, pedaços de grandes momentos da história e a história de cada um.
Porém era somente um casamento. Mergulhado, olhos zumbi, cabeça navegando aos sete ventos em cima do Salmo 38. Era somente um casamento. O pastor pedia a atenção dos presentes. Sua voz, muito experiente, era imã a puxar os ouvidos. Trazia lento e feroz, docilmente feroz, os portos dormentes de nossas escutas para as margens imensas que se prometiam em suas palavras. Escalando, escalando uma montanha de pensamentos em cenário de papel, para que aplaudíssemos perante o veredito sagrado das páginas bíblicas. “Eu sou Deus!”, esse grito de trovão era o terremoto ao fundo do discurso orquestrado na casa da minha espera. Aquele filme invadia cada milímetro do que me permitia enquanto um santo, ali, abraçado a Deus, um amigo que era o próprio ambiente que nos circundava. Estávamos embebidos de seu corpo, jazíamos no conforto de sua respiração. Virava os olhos o tremor de raio que percorria a minha alma. “Eu sou Deus!”. Não temer a morte, não temer a dor. Ser pensamento, metáfora dos impossíveis que não ousamos encarar, o infinito encarnado em olhos, boca e voz.
Absorto na imensidão do que não sei se ainda era fé. Fui tragado para o mundo de alguns instantes do que é só espírito e não necessariamente belo, porém também feio, momento inumano das loucuras que se nos costuram por dentro, esquecendo lá fora um corpo povoado de enormes asas para que pudesse voar pelo escuro, como inseto que busca a lua.
Porém, não esqueci, era somente um casamento. Havia teias de aranha por cima dos lustres, meus sapatos apertavam os pés, o calor estava insuportável. Jesus não dizia nada em alguns pedaços descascados das paredes. A musa do coro tinha os dentes tortos. O templo era pequeno demais. Deus não havia ficado para o final da cerimônia. E o pastor finalizava, rouco:
- Então... eu os declaro marido e mulher.

HORÓSCOPO

(Publicado no "Caros Umbigos", em 2000)

Áries
Você pode tomar todos os socos no olho do mundo, desde que seja pelo bem da humanidade e de toda a torcida do coríntians. Tomar porrada como se toma um cafezinho pode lhe trazer alguns hematomas sem perspectiva de retorno a um dia em que podia sorrir de boca aberta.

Touro
Será necessário que você supere esse seu cagaço quando se depara com o pitbull da decisão correndo na sua direção. Pare de jogar com as pessoas como se fossem meros bonequinhos de totó. Na esfera do amor, você está se perdendo a cada dia que passa, correndo o risco de entrar num beijo sem saída, daquela viúva negra que te fisgou.

Gêmeos
As briguinhas de comadre em que você se meteu precisam dar um basta. De tanto ficar na janela da vida observando a cachorrada no cio, você ficou com os cotovelos calejados e com as axilas em carne viva. Olhando para o fundo do copo de cerveja da sua atual miséria interior, mire adiante, atropele a miopia, para poder se deleitar com os quindins do futuro próximo.

Câncer
Ficar se autoflatulando por achar que perdeu a vergonha na cara seria uma contribuição a mais no infinito de dramas de virgens indecisas. Não é mais necessário nenhuma ejaculação contida e postergada no dilema de dona maria na hora da novela. É o momento para agir como um tanque de guerra de suas próprias intuições e instintos sexuais. Mas, por favor, não dê muita bandeira.

Leão
Por mais que os outros tenham sido fominhas, isso é preferível a se sentir um péba que só marca gol contra. Isso só serviu para que você percebesse o quanto o gol é grande e quantas milhares de pernas abertas existem por aí à sua espera.

Virgem
Esse bando de formigas que lhe ataca por dentro das calças é indestrutível na medida em que é você que as alimenta com os seus olhos insones e famintos por decotes cotidianos. Veja tudo isto como uma masturbação rotineira e necessária, mas que não deve atacar o primeiro peão, pai de família, margarida ou baiana de acarajé que passa.

Libra
Num primeiro momento, como bom caramujo, será melhor recolher-se para a sua casca e partir para o apelo de uma autofecundação. Em função deste encalhamento ancestral, espere a tormenta do desespero de ser tia passar, para depois poder mostrar estes dentes de sabre às beatas que cheiram bacalhau. Pois não fique na ilusão de que encontramos amores em qualquer esquina como numa propaganda de chocolate prestígio.

Escorpião
Você não nasceu para cantar hino nacional toda sexta-feira de manhã. Se isso o incomoda, mire-se em outros exemplos que não sejam o Sylvester Stallone ou a Aracy de Almeida. É importante que você seja quem você é, esse ser descabelado e com mau-hálito, e que encontre outros seres descabelados e com mau-hálito, sem invasão de grupos especiais da swat e da colgate do comando de caça aos cagados.

Sagitário

A vingança é um prato que se serve frio e com muita pimenta mexicana. Mas melhor que tudo isto é um pensamento de casa na praia com Brook Shields nos braços. Não há nenhum valor nessa sua mania de querer botar veneno na comida do gato de sua vizinha gostosa e inteligente. Eleve a sua mira, panela velha é que faz comida boa: há sempre um(a) coroa dando mole e você não vê, preocupado(a) se o feijão está queimando.

Capricórnio
Para dominar o mundo você precisa traçar um percurso um pouco complicado para o estado de debilidade mental em que se encontra. Nunca se esqueça disso: às vezes, o calor de uma transa somente pode estar sinalizando algum defeito no aparelho de ar condicionado. E o vizinho a querer consertá-lo pode também não ser o Paulo Zulu e sim o Pedro Di Lara.

Aquário
Imaginar elefantes bailarinos que ultrapassam os limites da gravidade e do pudor é o que você faz como bom sonhador. O mundo só quer saber da Sheila Carvalho e você possui o grande mérito de saber navegar por entre as caras de bunda (cheias de celulite) que a vida lhe entrega de mão fechada, num cruzado de esquerda.

Peixes
Antes de reprimir a obscenidade do próximo, lembre-se do seu tempo de bicha louca mal comida. Talvez seja necessário assumir essas gorduras localizadas dessa sua marginalidade originária. Embora a aerodinâmica não favoreça, está na hora de saltar para o abismo pensando que é um pára-quedas. Do contrário, suas emoções não passaram de devaneios de um viciado em novelas.

A VERDADE É O TÉDIO DA IMAGINAÇÃO

O texto abaixo é de Guilherme de Almeida, de 1925. Este texto serviu como mote para uma série de reflexões que realizei em meu mestrado (“O poético e a clínica: da verdade à ambigüidade”). Apareceu em boa parte da dissertação. Fabuloso...

Prefácio à “Narciso” (Guilherme de Almeida, 1925/1952)

Se um homem conseguisse escrever o que sente, perderia a faculdade de pensar.
É para não dizer o que sente que o homem pensa.
Uma criatura sincera dá a impressão de que está dizendo o que sente.
Sinceridade é falta de espírito.
A arte é puramente espiritual. Ela não diz verdades: diz mentiras belas. Não adianta nada dizer verdades: quem ouve fica apenas sabendo. Não é preciso que alguém “fique sabendo”; é preciso que todos “fiquem imaginando”.
A verdade é o tédio da imaginação.
Saber é um horror. Uma coisa só é bela enquanto não é sabida: o céu, a alma... Não há sugestões possíveis no binômio de Newton.
Se a natureza fosse bela, a arte não teria razão de ser.
A natureza é o que há de mais verdadeiro; a arte é o que há de mais falso. Mas entre uma incomodativa aurora boreal e o cenário do Príncipe Igor, um homem decente não hesita: vai direto ao cenário de Bakst.
Porque é preciso que exista a verdade e que exista a beleza: se não, não poderia haver homens de mau gosto e homens de bom gosto.
Uma coisa só tem razão de ser enquanto encerra uma intenção de beleza. A verdade não tem intenções.
É muito mais belo acreditar numa mentira do que numa verdade.
Para que a verdade fosse bela, foi preciso pô-la dentro de uma linda mentira: a cisterna da lenda.
Em rigor, não há verdade nem mentira: há pessoas que acreditam e pessoas que não acreditam. A gente só tem necessidade de acreditar nas coisas incríveis. Ninguém tem vontade de que “aconteça” um romance de Zola.; todos têm vontade de que aconteça um conto de Perrault.
Por isso é que há deístas. Deus é perfeitamente inverossímil. Os ateus são homens que com certeza já viram Deus.
A arte é assim: a arte é como Deus. Todos os homens, querendo assemelhar-se a Deus, criam ou destróem. É o que justifica haver artistas e haver críticos. Aqueles criam sugerindo; estes destróem explicando.
Quando um artista não é compreendido, naturalmente é porque um crítico já tentou explicá-lo.
Explicar é completar. Somente as coisas incompletas é que são perfeitas, porque não satisfazem. Uma grande obra de arte é sempre incompleta: tem a perfeição de não satisfazer, isto é, de não cansar nunca.
Mas não há nada mais inútil do que discutir arte. Só se discutem convicções. Em arte não há convicções. O fato de ter um homem uma convicção prova, quando muito, que ele foi inferior a quem o convenceu.
O artista é um ser absolutamente superior.