Tuesday, October 06, 2020

Quando um paciente roubou meu celular

 Há cerca de 4 anos um paciente roubou meu celular. Eu estava com um pequeno grupo, em uma sala do CAPS. Ele fazia parte desse pequeno grupo, e era o único ali que tinha passagens pela polícia, por roubo. Dando falta do celular, minutos depois voltei à sala, correndo, na qual não havia mais ninguém. E o celular simplesmente havia desaparecido. Peguei o celular de um colega, e liguei para meu próprio número.

Ele mesmo, esse paciente, que tem uma voz e um jeito de falar inconfundíveis, atendeu. Vou aqui chamá-lo de Josimar (nome fictício):

- Josimar, você está com meu celular. Volte aqui para o CAPS! Traga ele de volta pra mim, por favor!

- Perdeu, playboy! Perdeu! - e desligou na minha cara.

Não consegui recuperar meu celular, porque dali do CAPS ele foi diretamente a algum local, para vendê-lo a um receptador.

Também não acionei polícia. Tentei somente conversar com sua mãe e seu tutor, que era um vizinho dele.

Sua mãe, por telefone, lamentou o fato, e disse que fez o que pôde, tentando conversar com ele, mas ele jamais admitiu que cometeu tal delito. 

Seu tutor, um senhor entre 50 e 60 anos de idade, foi com ele até o CAPS, para que pudéssemos fazê-lo se convencer de que seu ato não poderia se repetir, e que era algo condenável.

Josimar, mesmo após ter atendido a ligação telefônica, jamais confessou que cometeu tal crime.

Ele frequentava o CAPS porque a justiça assim o obrigava. O juiz havia definido que ele somente se manteria em liberdade se não houvesse reincidência de seus crimes (no caso, roubo), e que ele obrigatoriamente frequentasse um CAPS.

Josimar tem retardo mental. Nasceu em um estado do Nordeste, e veio para Brasília quando tinha nove anos de idade. Uma das versões sobre sua história, registrada em seu prontuário, era a de que ele teria caído de uma rede, e batido fortemente com a cabeça no chão, quando tinha somente alguns meses de idade. As lesões cerebrais produzidas por esse acidente teriam resultado posteriormente no sério comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo.

Do que eu conseguia me lembrar, após leituras de seu prontuário, era que ele havia sido pego pela polícia em alguma tentativa de roubo, na qual vinha sendo repetidamente instrumentalizado por seus irmãos, já que era inimputável.

Colocavam um deficiente mental para roubar para que assim não fossem penalizados. A culpa recairia sempre sobre o deficiente. 

Josimar, contudo, deixou de frequentar o CAPS nos últimos 3 anos. Porque reincidiu e acabou novamente sendo preso. Ficou três anos em reclusão em um manicômio judicial.

Há poucos dias ele reapareceu no CAPS em companhia de um irmão. Havia sido solto, e agora devia obrigatoriamente voltar a frequentar nosso serviço.

Para minha surpresa Josimar não tinha vários irmãos. Tinha somente aquele irmão, com quem estava agora diante de mim, em uma avaliação para sua reinserção no CAPS. 

Ele é 15 anos mais velho que esse irmão, que não tem retardo mental, e também ficou preso por cerca de três anos, por ter sido condenado por furto ou roubo.

Seu irmão, Rodrigo (nome fictício), tem 34 anos, tem três filhas e uma neta, de 5 meses de idade. Acho que Rodrigo é o avô mais jovem que já vi nessa vida.

Entrevistei-os do modo mais completo possível, inclusive em relação aos fatores sócio-financeiros.

Josimar é analfabeto e o irmão estudou somente até a quinta série. Sua filha, de 17 anos, ainda cursa a sexta série do ensino fundamental. Ainda conseguem pagar água e luz. Mas ninguém na casa tem telefone celular, e também não há telefone fixo. Nunca tiveram carteira assinada, e têm dificuldades inclusive para ter comida em casa. 

- Lá em casa é eu, minha mãe, Josimar, minha filha e minha neta. (...) Levantamos de manhã bem cedo, e viemos para cá, a pé. Não tem nada de comida lá. Nem pão, café, nem açúcar. (...) Pra comer tamo saindo de casa. Cada dia a gente vai na casa de uma pessoa diferente. Ontem almoçamos na casa da madrinha de minha filha.

No final do atendimento Rodrigo me interpelou:

- Desculpa o incômodo aí, mas será que você não teria aí uns R$10 pra emprestar pra gente, pra nós passar na padaria e comprar uns pão, pra levar pro café da manhã?

- Rodrigo, eu não tenho dinheiro na carteira. Tenho somente o cartão. Vou com vocês até a padaria. Pode ser?

- Sim!

Saí com os dois, e caminhamos uns 200 ou 300 metros, até a padaria mais próxima.

Chegando lá pediram pães com mortadela e um refrigerante de 2 litros. Estavam loucos para saborear pães com mortadela com refrigerante, de café da manhã. Comprei-lhes açúcar, pó de café, margarina e leite. 

Agradeceram-me, animados, contentes, como se tivessem descoberto um novo parça.

Despedi-me deles rapidamente, para voltar logo ao trabalho. No meio do caminho senti o sol brilhando como se não fosse real, como se eu fosse capaz de ver cada um dos raios a penetrar no mundo das coisas e de seres que sofrem, como se tudo aquilo fosse um cenário calculadamente armado de modo excessivamente luminoso naquela manhã. Por alguns instantes parecia que eu havia feito uso de alguma substância anestésica e alucinógena

Foi um sentimento breve de estar fora de mim, e de ser tomado pela sensação, emotiva, de que tudo podia com muita facilidade ser completamente diferente e muito melhor para muito mais pessoas.

Mas isso durou somente alguns segundos. Metros depois o sol voltou impiedosamente a rachar na cabeça.