Sunday, December 19, 2004

DO OUTRO LADO... (Remake)

- Filhooô...! Estão trazendo o seu cadáver - no brilhoso caixão, carregado por entregadores de gás. Onde colocamos? Vai ficar jogado aqui na sala?
- Deixe aí, mãe! Não podem saber que eu morri.
- Mas isso é dia de morrer, meu filho? Tem sábado, tem domingo... Vou te contar, com tanto tempo para pensar em morte, e você resolve me fazer isso exatamente hoje? Assim eu me desanimo...
- Ah, mãe. Calma, meu. É só hoje, vai... A gente só morre uma vez na vida! Fazer o quê? Chegou a minha hora.
- Só morre uma vez na vida, e eu ainda sou obrigada a carregar isso nas costas? Vou ter de conviver com isso, todo dia, a toda hora?
- Mãe, a vida é assim, ou melhor, a morte é assim. Um dia a gente está aqui, no outro já não está mais, sumiu...
Eleonora sai aflita, correndo em direção à rua. Abre o portão e olha para a esquina como se procurasse algo naquela distância cega, sem o saber. Observou e nada encontrou. A rua não tinha esquina, aliás, não tinha fim. O que havia, se algo realmente havia, era um imenso vazio que tomava tudo, engolindo seus pensamentos, siderando seu olhar na direção daquele nada. Ouvia ao longe, mas também bem dentro da cabeça, os passos de alguém que se aproximava. Um vulto vinha perfurando o escuro com o som dos seus cem mil passos a aumentar em volume e assombro. Era Elias, seu filho.
- Filho, filho. De onde você está vindo, meu filho? Mamãe sentiu tanto a sua falta...
- Vim de lá, daquele vazio, daquele escuro, está vendo? - sem interromper sua compassada caminhada. Para trás daquele escuro há um deserto imenso, sem tamanho, sem nome. Eu venho cruzando este deserto há anos e anos. Vejo um ponto, sempre. Ele não se apaga jamais. Um ponto, nada mais. E eu somente sei que caminho em sua direção.
- Há um ano você se foi e não voltou mais. Procurei por todos os cantos e não pude encontrá-lo. Revirei o seu quarto, suas roupas, seus retratos, fiquei horas perdida na lembrança do seu sorriso. Fiquei horas sem nada pensar ou sair do lugar. Absorta, com a alma desabrigada e nua. Indignada, indigente. Chorar já não mais trazia alívio. Onde está você agora, meu filho? Para onde foi? O que está fazendo? Por que caminha sem parar? Onde vai? Por que não volta? Por que me engana, ao se mostrar toda noite em meus sonhos, ao parecer que não morreu, que tudo fora somente um pesadelo? Chega sorrateiro, sorriso macio: “oi, mãe...”, trazendo um presentinho, uma flor, um abraço. E agora, será que é um sonho também? Já padeci uma eternidade inultimente na tentativa de dar conta desse vazio que você deixou aberto feito ferida no meu peito. Eu também morri, Elias. Eu também morri... Sua mãe é uma mulher para sempre mutilada.
Elias somente ouvia no seu ouvido de pedra e olhar quase derretido. Continuava andando, na sua marcha calada, na sua missão cega.
- Para onde você está indo, meu filho? Você está vivo? Você voltou? O que está acontecendo, me explique.
Seus passos tinham vida e rumo próprios, direção certa, a algum ponto que sua mãe não podia enxergar. Contudo, ela tacitamente parecia compreender o que ali se passava. O filho sempre fora mesmo muito determinado, dificilmente desviava-se de suas rotas, de suas metas.
- Por favor, me diz, meu filho, para onde você está indo? Fale com sua mãe.
Elias era o mesmo, sempre indo embora, sempre de passagem. Sua mãe falava, perguntava, e ele continuava indo embora.
- Estou indo para o vulcão de luz. Lá todos vivem de luz, alimentam-se de luz, brindam as luzes, seu sangue é de luz, os olhos emitem fachos de luz, as pessoas ouvem e cantam em luzes. Está vendo, lá, para além daquele morro, para além daquele além – apontando para uma nuvem preta onde não havia nada além do que um pouco de chuva.
- Ai, meu filho, vocês me inventam cada coisa. Sempre inventando de ir pra cada lugar que ninguém entende, falando de coisas que ninguém compreende. Vivem aí estudando para quê? Para complicar? Por que não procuram fazer algo mais simples. Não tinha outro meio pra você deixar sua mãe apurada, não? Mas ser mãe é isso, é padecer no paraíso. A gente luta tanto para educar os filhos, dar-lhes uma vida digna, para depois ficar ouvindo ingratidão. É, como dizia a sua avó: a gente cria os filhos para o mundo...
De repente, Elias pára e olha sua mãe nos olhos, de um modo como nunca antes o havia feito. E um olhar tão intenso, tão profundo, tão tudo, tão tão. Ela estava mais velha e ele ainda era aquele jovem que ficou, aquela figura que permanece, não se modifica com o tempo, ao dizer que o tempo, para os mortos, parou. Os mortos parecem vencer o tempo, estão além dele, não mudam, não envelhecem: os mortos não morrem... Vão para perto dos deuses e lá se eternizam.
Desprotegida, inconsolável, Eleonora olha o filho, a sua morte, como uma criança. Ele a abraça forte:
- Mãe, é assim mesmo, este é o segredo, a gente passa...
Continua andando, prossegue, e vai até que o escuro tranquilamente o engula. Eleonora, mesmo carregando o peso, agora sabe: a gente passa...

Saturday, December 18, 2004

DO OUTRO LADO...

- Filhooô...! Estão trazendo o seu cadáver - no brilhoso caixão, carregado por entregadores de gás. Onde colocamos? Vai ficar jogado aqui na sala?
- Deixe aí, mãe! Não podem saber que eu morri.
- Mas isso é dia de morrer, meu filho? Tem sábado, tem domingo... Vou te contar, com tanto tempo para pensar em morte, e você resolve me fazer isso exatamente hoje? Assim eu me desanimo...
- Ah, mãe. Calma, meu. É só hoje, vai... A gente só morre uma vez na vida! Fazer o quê? Chegou a minha hora.
- Só morre uma vez na vida, e eu ainda sou obrigada a carregar isso nas costas?

Uma lágrima...

Uma lágrima, lava quente, escorre, do canto do olho. Do canto de pedra do seu olhar de gelo sai um sopro de desprezo. Do outro lado do planeta de meu fracasso, sou um homem que ainda tem a coragem de sorrir para o sol que nasce no horizonte de minha loucura.

E invento mais um cachorro para ser o mestre de obras de minha alma...

Wednesday, December 15, 2004

Carta à Benedita

Benedita,

Seu nome ecoou por dias nos ceus do mundo que agora estavam totalmente
tomados pelos ventos. Sim, o mundo se transformara num enorme vento
depois da sua partida. Tudo era arrastado no interminavel rodamoinho de
roda-piao, lembrancas, flashs da infancia, reminescencias do tempo em
vento, vendavais de luz e folhas por sobre a minha saudade que gritava os
mares pelo penhasco em que vi seu rosto nas estrelas, todas cadentes,
todas a inventar mais misterio na minha cabeca ne-voada e revoada da
bagunca que voce deixou e foi embora como se houvesse fugido da explosao
de uma cidade que nunca existiu...

Sunday, December 12, 2004

MACARRONÊS

Não se podia acreditar que se era possível hospedar o mundo no segundo aposento mais fedido de nossa casa. Estava claro que mesmo com a dor apagada, na varanda de nossa cabeça as crianças estariam fazendo arte. Devia se ouvir música e fingir lucidez para atingir o ponto de fervura do fim de nosso instinto. Aquele, diário, pedindo urgência na libido-floresta de nosso corpo.
Água no fogo, aço a separá-los. Vida e morte no tempo da sobrevivência. Ainda poderia ser escrito o destino das últimas horas.
O vermelho seria esfaqueado, mais que esquartejado. Companheiro do que faz tempero. Vinha apimentar o que seria só trigo e água. O branco pedindo o vermelho. Defunto de um Deus, faria vulcão no erro cometido para mostrar a própria lei das compensações. Deus não mataria a festa do tempo embaralhado de nossa cabeça. Agir rápido. Agir duas vezes antes de pensar. Adulterar a loucura. Transar a lucidez.
Bolhas e fumaça na primeira entrada de nosso sucesso no futuro. Mexendo e misturando o que há de se quebrar para que entre o mar. Havia leite morno a correr pelo túnel de nosso corpo. Nadaria naquele leite com café barrento ou cascata. Foi chegando na carne o aviso da tempestade que vinha. Esqueça. O vermelho está sendo esfaqueado. E, redundante, derrete aos nossos olhos. Ferve, e até espero ser doce. Quem sabe?
Bom, está tudo tão fácil. Um feliz final será certo. Vejamos... Tudo de quente é o que ofereço na solidão de meu único e solitário morador na alma. Sem exagero, traio a insanidade e vou de encontro ao que me oferecem de alimento.
Está pronta a macarronada de domingo!

XUXA



Xuxa já nos chama a atenção pelo nome. Se pudéssemos estranhá-lo como se o ouvíssemos pela primeira vez, sem saber o que denominava, poderíamos muito bem tomá-lo como esdrúxulo ou até mesmo obsceno. Em certo país daqui da América do Sul foi confundido com algo chulo, o órgão genital feminino. O verbo xuxar, em nossa língua, remete a significados parecidos com o cutucar, o atiçar.

Por mais que a Xuxa batalhe infinitamente para se livrar do seu ranço sexual histórico latente no imaginário mítico, do qual ela se deseja rainha casta, é uma tarefa árdua despir-se do olhar do telespectador inconscientemente sempre sedento para que sua volúpia seja escancarada. Xuxa, então, busca seu refúgio nas crianças. É a nossa babá sonhada, loira, gostosa. Desenvolveram essa idéia de babá via satélite, babá show, big production, babá rainha, deusa. Xuxa é o sonho máximo de uma babá para o Brasil. É como se tivéssemos seqüestrado uma sueca padrão, bonita, bem-educada (pero no mucho), bem nutrida, e ela nos servisse de babá e polução noturna. Como se fosse possível nos vingarmos da opressão histórica simbolizada na peituda loira americana que agora é nossa babá, troca nossas fraldas, nos materna. Como se fosse possível mamar nas tetas da Suécia, viver eternamente do leite e do prazer americano. Veja bem, não é um paternalismo, é uma maternagem, são nossos mulatinhos mamando nos seus peitos, uma ama seca ao avesso.
Sabemos muito bem que este é o sonho que nos alimenta, que lhe produz sucesso, audiência. Xuxa é um sonho de consumo produzido para não ser consumido. Ficamos somente com o cheiro de devaneio moribundo de podermos explorar, com gosto e todo proveito, o que nos oprime. No máximo satisfazemos seus apelos mais irracionais, o da loira subjugada em seu desejo sexual por um negro, senhor das complexas cifras de tudo aquilo que pode resumir-se a simplesmente se fazer sexo puro. Uma loira seduzida e sodomizada por um negro, é a rendição da retilínea e higiênica lógica ocidental ao mais concreto e carnal. É o progressismo cego se rendendo à volúpia cega, ao ócio. É paradoxal. Pode ser a exportação de uma idéia de miscigenação. Ou, tradicionalmente, podemos aí vislumbrar novamente a exploração sexual histórica de uma classe oprimida, os negros. Contudo, por ora, deixe que nos deliciemos em poder comer a Xuxa, reavivar um pouco o sonho de sermos antropofágicos.
E a Xuxa entra poderosa, abrindo a manhã, toda cor-de-rosa. Isso é coisa lá do meu tempo, quando a Xuxa ainda mimava nossas crianças em seus programas matinais. Hoje a coisa mudou um pouco de figura. Contudo, a marca registrada de Xuxa e que lhe conferiu toda a popularidade que tem é, como sabemos, a relação com as crianças, ou com os “baixinhos”, como ela prefere chamar. E é desse lado essencial de Xuxa que estou falando aqui.
Muitas mães de crianças também tinham uma identificação fora do comum com Xuxa. Sinto isso, por vezes, como a sexualidade contida da dona de casa prestes a explodir. O melhor lugar para se construir uma bomba de sexo dentro de casa, passando só de camisola do quarto para a sala, logo de manhã, antes do café; ou de shortinho, esparramada no sofá, assistindo TV. Somente estas imagens já podem nos sugerir o quanto a intimidade doméstica é um estado à parte, um poder paralelo que esconde e protege uma sexualidade pulsante, prestes a sair nua para a rua. E é neste cenário que se encontra a dona de casa, pedindo para ser ao menos invadida.
Donas de casa se excitam em levantar o cartaz: “Xuxa, te amo !”. essa donas de casa são as mães das crianças-bonecas que rebolam-se libidinosamente no programa da Xuxa. Todas amam a rainha. É chique a Xuxa. Era chique o seu café da manhã ao vivo. Com Xuxa vivemos eternamente um clima úmido, de água na boca. Xuxa troca nossas fraldas mas nos mantém molhadinhos. Precisamos estar molhadinhos para nunca devorá-la. Xuxa também é Piu-piu. Dentro de seu vídeo-gaiolinha ela não tem (aparentemente) sexo, nem idade e nem maldade.
Apesar do Piu-piu possuir uma identidade múltipla, indefinível (é um “várias caras”) e ser possivelmente o personagem mais diabólico jamais visto na TV, é sempre tomado como herói da doçura, o mártir dos tempos de pelúcia de um mundo ingênuo e puro. Mas é um pecado comparar Xuxa com o Piu-piu. O personagem Xuxa não foi desenhado para, no final, mostrar suas maldades. Xuxa é um personagem arquitetado para reinar inocente para sempre, como as crianças.
O problema é que o personagem Xuxa se entremeia com a ficção e extrapola o vídeo para canonizar-se como um patrimônio da boa vontade, idoneidade e caridade nacional. À Xuxa é advogado o posto de madame de uma ficção matutina (hoje vespertina-dominical) para buscar uma solução afogada de dramas compadecidos pelos alienígenas encarnados na pele enrugada e áspera do povo faminto e carente. Xuxa quer reinar loira, poderosa, chique, generosa e casta por entre as tristezas de um Brasil favelado ou no conforto de sua mansão solitária.
E as crianças no seu programa. Outro dia está lá o trio-mirim – bem mirim mesmo, três crianças de cinco a seis anos de idade. Eram perfeitos. Uma loirinha, uma moreninha e uma pretinho. Bem pequeninos, maravilhosos na sua inocência, na sua performance inacreditável. Aliás, muito bem treinados, ensaiados. Rebolado, coreografia e frases bem diplomáticos. “Xuxa, adoramos o seu público, estávamos com saudades de vir aqui...”, “Xuxa, a gente ama a Sacha, a gente tava louco para ver vocês...”.
É lindo observar crianças em desempenho excepcional. O problema é a manipulação, cumprir todos os rígidos “scripts” que os adultos lhes imputam. Despertam uma emoção muito similar a de animais em números de circo. A precocidade passa a caminhar junto com o sonho egoísta de um adulto a se desejar metamorfoseado num sonho que é instalado na vida da criança. Projetamos tudo o que podemos nas crianças, dos sonhos às frustrações e erros. E Xuxa, sem o saber, encarnou muito bem essa projeção, pois teve um papel educativo relevante na geração que a idolatrou. A negação de nossas identidades originais e de nossas raízes também se compreende através, por exemplo, do sucesso que a nossa rica e loira Xuxa obteve.

Thursday, December 09, 2004

COMO UM RIO

(Antologia do Concurso de Poesias do Sesc-DF de 2003)

sigo cego

direto

passo lento

rumo incerto

cego sumo

sigo surdo

correndo o mundo

pelado

sem rumo

cego

surdo

ou mundo

olho atento

o passo

nem rápido

nem lento

certo sinto

andando torto

o caminho reto

infinito

vivo ou vivido

não controlo a vida

que me vem

como um rio

INTESTINO BÃO

Puuurururururmmmmzzzzzzzzzuuuziiimmm...pruuuuuummm...tglof-blof glof-blof-blo-fuiiiiimmm-bló-bló-bló-bló-glofplofplofplofplofplofplofplofplofplofplof plofplofplof plof plóó óóóóóóóóóó-ruuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmzzzzzzzzzzz...
Descarga... A Deca que engula... Tchau! Desapareça pelos canos, pois os meus têm mania de rejeitar, enjoar-se e brigar logo com o que comi. É muito duro ver os intestinos soltando mole. Merda mole em privada dura no que bate só se suja. Do banheiro saio despedaçado, sem a menor consistência fecal, dolorosamente assumindo o papel de cagão sem problema. Mas ninguém me disse que eu deveria cagar mole, que seria a minha missão aqui na Terra. Será? Nem gosto de imaginar os movimento peristálticos que cercam tal possibilidade. O tiro pode sair pela cu-latra (do dito cu-jo (já sujo) direto para latrina), rasgando molhado-marrom, feroz, gástrico, a melhor cueca que encontrar pela frente, seja ela de listrinhas ou não.
Será mesmo um karma? Êpa, mas "carma" aí, assim já está apelando. Antes de nascer, teria eu sido encarregado de vir como o divino mensageiro das fezes e levar a todos os homens a sublime sabedoria da mensagem das mensagens, a mensagem fecal? Essa argumentação fatalista de realmente forte poder persuasivo, eu até aceito. Mas precisava ser premiado com a frequente fragmentação fecal sem firmeza que já tosse logo de manhã, latindo sua revolta intestinal até para o vizinho? Senhor...! Senhor estômago: por favor, você que é mais equilibrado, converse com esses dois aí de baixo (grosso e delgado), diga que eles precisam trabalhar para o bem-estar geral, pensar também no coletivo. Tratar com mais carinho e educação qualquer elemento novo que chega, seja ele tomate, laranja, chocolate, abacate, couve, feijão, banana, vinho, leite, cerveja, café ou biscoitinhos de maizena, etc, etc, etc; não importando a cor, credo, raça ou orientação sexual. Chega de segregacionismos, sectarismos, goiabismos, nazismos, bananismos ou quaisquer ismos que cismam tanto com as diferenças. Paz e amor! Que role a suruba geral, não podemos mais nos submeter aos autoritarismos do sistema, do sistema digestivo tirânico e esquizóide que aborta, assassina fezes ainda pequenas, em pleno estágio embrionário. Porém Sr.Estômago, seja delicado. Passe aquela energia gracinha pra esses caras, bolas na frente e pênis erguido, porque a gente não tem ejaculação nenhuma a dever pra ninguém, fora uma brochada ou outra, é claro. Esses dois sujeitos, o grosso e o delgado, tinham que firmar o corpo e se conscientizar de que não é possível alguém só fazer merda na vida e, se for, que pelo menos tenha consistência e não se espedace a qualquer hora, em qualquer privadinha, mato ou cueca que encontrar pela frente, por mais fedidinha ou trapeada que essa última esteja.
A aventura neo-fecal (tão em moda) que se discorre, ou melhor, que escorre pelo texto, acaba em pura merda. Desfecho melhor de toda essa problemática dor de barriga, somente junto ao vaso sanitário para que se possa dejecturar na prática, diria-se aliás, apocalíptica da diarréia ao vivo. Contudo, reiterando, o desenvolvimento insustentável e explosivo da mentalidade neo-toroço deve ser contido, não pode se aproveitar da fragilidade e inocência dos intestinos mais fracos e oprimidos. Porém, resta-nos o lema de nossa luta e a esperança de um intestino melhor. Obrigado... Muito obrigado... E que os vasos sanitários dêem o veredito final!

Wednesday, December 08, 2004

GIRA SOL QUE GIRA

(Antologia do Concurso Nacional de Poesias "Regina Lima")
Esta poesia eu fiz para minha mãe. Ela estava cursando o supletivo e precisava de uma poesia para a semana do girassol, em sua escola. Escrevi pensando em algo bem simples e o efeito foi muito melhor do que eu imaginava. É com muito carinho que eu dedico esta poesia a ela.

gira sol
vira ao sol
o sol que pira
mira a pino
a luz em pira
a flor respira
vida sina
soa em lira
vira em vida
ao sol sorrindo

o sol em cima
a sina
a vida ensina
em sol que gira a vida

dia findo
pinga a noite
a-deus morrido
luz partida
a vida é pira
na morte ex-pira.

HORÁRIO NOBRE

- Publicado na Poetas de Gaveta (Revista de Arte da USP, em 1995)

PRIMEIRO CAPÍTULO

- Fábio, eu te amo.
- Elisa, eu te amo. Eu sempre te amei, desde a primeira vez em que te vi, sabia? É, eu acabava de sair do escritório, seu olhar não negava.
- Mas Fábio, eu preciso te falar uma coisa...
- O quê?
- Eu não posso mais ficar com você.
“Pooooooooooooommmmmmmmmmm!!!!”
E desaba um acorde de perplexidade no meio da cena, no meio dos dois, tal como um raio. Fábio desfigura-se aos poucos, desviando o olhar já pesado por todo o corpo, adiantando os movimentos de um bêbado, com a ajuda da guaraná do copo disfarçada de Balantines.
- Mas isso não é possível. Me diz que não é verdade, Elisa. Pelo amor de Deus, me diz que não é verdade, Elisa, me diz...- desvanecendo-se em choro, pedaço por pedaço. E a cada pedaço que desmoronava, Elisa, fria como um sapo, se afastava em direção à porta de saída.
- Não, Elisa, não. Não, não, nããããããão... Elis...
“Chora, Walter, chora, menino, agora... O Walter esqueceu-se do colírio ou do Fábio?”
Preocupava-se alguém na direção. Elisa (Jacira Dolores) fecha a porta com tudo. Escorrem as lágrimas, é Walter Silva, chorão desde pequeno, desenhando o pobre personagem Fábio.
- Corta!

SEGUNDO E ÚLTIMO CAPÍTULO

Cena externa. A limusine, filmada de baixo, em perspectiva, pára solene.
- Obrigado, James - aprecia os arranha-céus. O seu é o maior, todinho de vidro espelhado, todinho dele, o escritório na cobertura com vista para o mar.
- Bom dia, Dr. Fábio.
- Bom dia, Dr. Fábio.
- Bom dia, Dr. Fábio.
- Bom dia, Dr. Fábio.
- Bom dia, Dr. Fábio.
- Senhorita Shirley, a qualquer telefonema ou cliente, hoje eu não estou para ninguém. Não gostaria de ser importunado. Diga que tiver de sair às pressas para uma reunião em Nova York.
Já sem o paletó, afrouxando a gravata em pressa de sufocado.
- E a reunião marcada com o Grupo Avelar Empreendimentos, Dr. Fábio?
- Desmarque.
- Mas Dr. Fábio...
- Senhorita Shirley, isso é uma ordem.
Revólver 45 brilhando o cromado no vidro infinito da mesa. O Scotch (guaraná, só para lembrar) no gargalho e uma carta exasperada se arrastando tremida na embriaguez: “Último Adeus”.
- Corta!

“A SEGUIR, AS CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO”

Último Adeus

Seja agora a partida, as útimas linhas de meu contorno em espiral rumo ao vazio da eterna questão. Havendo o adeus pronto, esperando o momento do fim da curva das palavras e o jogo das imagens. Façam do corpo o que de divino se exigir. Voltar para o mundo sem rosto, o reino das coisas, começo de nós. Ou jamais enterrado, cada mínima parte seja um utensílio. A vertebra um belo quadro algo primitivo alçado em alguma parede, assim seria lembrado pelos que não me quisessem enterrar. Ou seja meu coração em outro o relógio correto do que em mim ainda insiste em sambar ou assustar por aí. Os olhos pedindo outro mundo, sendo a dádiva do que tão longe em mim não pude vi-ver. Ninguém no fundo de seu último osso deseja de todo morrer. Haveria outro lugar onde as coisas sabem viver? Então, mato a questão.

UMA LÁGRIMA NO CANTO DO OLHO

O ônibus pára bruscamente. Em frente ao pronto-socorro, a porta se abre para o escuro da rua. Entra uma mulher e, logo à frente, meio atropelado pela pressa da mãe, pela pressa do mundo, um garotinho de 2 ou 3 anos de idade. O ônibus balança muito e ele se segura firme, como quem fosse lançado em alto-mar, caso se distraísse um pouquinho sequer. O balanço do ônibus sabotava o sossego daquela criança. Mas ele era muito pequeno para remoer sobre perseguições do destino. Seu rostinho se vira em minha direção. Há uma lágrima presa, que escorreu do canto de seu olho. E o pronto-socorro ao fundo. Ele não fala nada: um filhote mudo, de olhos ao mesmo tempo assustados e tristes. E uma lágrima: havia chorado. Tinha a expressão tão perdida, tão “não sei o que estou fazendo aqui”, tão “vamos pra casa”, ou tão “eu não quero”, “isso dói”, com choro de terror, pânico. Aquele seu olhar pós-tortura morava em lugar nenhum. Todo o seu corpinho era uma expressão de derrota para todo o resto do mundo, muito maior do que ele. E uma derrota sem lamento. O terror já havia passado. Agora restava aquele corpinho pequeno e sem forças, todas consumidas na luta mortal que travara contra uma avalanche de invasões ao seu pequeno recanto de paz, guardado novamente na pequena lágrima no canto do olho.

DERRADEIRO

(2º lugar no Concurso de Contos e Poemas da Casa da Cultura de Ribeirão Preto de 1996)

Precisava escrever
mais três pedaços de ressentimentos.
Está faltando comida
naquela parte de fora,
filha do frio.
Existe um homem a mandar no tempo,
pedindo as contas
do que não pode ser atrasado
ou gasto
com uma distração esquecida
de si mesma.
Na hora em que a vida impede o que não é,
dizendo pra todo mundo
do coração certo,
da alma sem fuga para o rumo do sorriso.
De-mo-ro...
Hoje,
mais velho,
espero a tudo,
falando para as crianças
do vôo da bola vagorosa
de algum dia
em que brincar não tinha perigo.
Corriam as lembranças a se mentir na tontura
do tanto que já fora
e do muito menos que ainda serei.
Não falo do tempo dos anos
e sim do tempo dos ollhos.
Zombava alguém lá trás
do meu jeito torto,
da minha gargalhada solitária.
Corria pro mato
procurando o céu mais azul,
uma nuvem voava por sobre a minha tristeza.
Encontrava uma estrela da tarde
piscando,
seduzindo,
na ilusão de algo profundo,
a sugar as lágrimas
espremidas no peito doído,
prometendo-se um sorriso àqueles que sentem fome.
Descobri o quanto pode esse mar de escrever,
desenhar um sonho
na estrela da cabeça,
sem a ameaça de carrascos à beira do ouvido,
sujando as cores
do que pensamos
a cada esquina de sol nascendo.

Sunday, December 05, 2004

GARIMPO

(Antologia do Concurso Nacional de Poesias "Regina Lima")

O pensamento corre na lama
do ponto de alguma ventania
de palavras a se conquistar no instante
de momentos secos de...
poesia
e s p a l h a d o s pelos arredores da morta rotina
a tragar toda a flor que me brotava no longe do quando tinha a lembrança
de nossa existência medíocre,
perdida no todo dia pago na eterna parcela de um carnê
a nos prometer alguma visão de felicidade,
trancada no possível de somente aquela minoria sempre a mesma da história abandonada na esquina de nossos deveres esperando ser cumpridos.

Atropela-se o tempo de vadiagens que nos erram na perfeição
do cenário construído para abrigar nossa condição miserável de consciência.
Escrevo a curva que o corpo executa
na busca do garimpo mais
fundo de nós mesmos
no tanto de tentar esconder o poço escuro em nossa sombra
a nos pedir o erro e o absurdo.
Falo,
e a cada palavra também engano o martelo que tenho no peito
a me dizer todo dia de um mesmo sol que nasce em cada pensamento já estéril, rumando na direção do que aplaudimos enquanto inquestionável.
Grosseira a alegria de um livro escrito por sobre toda a sorte de perguntas infantis
a atropelar o mais calado sujeito que tem como vício o simples ato de obedecer. Venho, finjo-me o dicionário de meu ócio,
enterro o que não me justifica,
puxando quem lê para o horizonte descampado da minha loucura
a embelezar o mapa já velho das minhas verdades.

UM FORA SEM UM PORRE

Eu estava lá, fazendo a melhor jogada, querendo o gol. Dizendo pra mim mesmo que o estádio do povo faminto de meu desejo estava cheio e que o meu olhar era um pedido para que ela corresse sorrindo em minha direção para termos aquele abraço do filme de uma historia real. Que nada, fui caçado no descampado de meu medo, de saber do meu tamanho irrisório frente ao infinito do que ela queria. Não, eu não queria arriscar a pincelada de meu riso incompreendido e solitário, de todo o meu mundo engasgado e paralítico, para uma direção onde o telefone só dava ocupado, onde alguém iria pensar que sou uma besta humana. Depois de todo fora, a mulher deve pensar que aquele sujeito não sabia onde estava, não tinha respeito, nem noção de como abordar uma mulher, ou mesmo qualquer outra pessoa; um pretensioso infeliz e desinteressante, insignificante, que apela, que tem a idéia mais pobre do mundo, abordar uma pessoa completamente desconhecida acreditando que dali brotará a troca profunda de intimidades.
Depois de dias de caminhada por sobre os minutos que arrancava de meu coração para planejar a viagem de alguns passos e palavras que me levariam até ela, consegui chegar ao pé de seu ouvido. Desprendi um jato de vapores de álcool e insanidade bem na sua orelha. Ela esquentou, e fugiu. Teve de negar a minha existência naquele instante. Melhor que ali eu não tivesse mesmo existido. Um instante de minha vida que devia ter sido escrito a lápis. Assim podemos todos apagar, inclusive ela. Seu esquecimento seria o meu perdão. Alias, o esquecimento é a única forma sincera e legitima de perdão. E não me venham com estorinhas de que se perdoa sem se ter esquecido. Quem perdoou mas não esqueceu, não perdoou. Tem o perdão somente como o titulo de sua fraqueza. A amnésia é o melhor amigo do perdão.
Bêbado nojento, ela deve ter pensado. Melhor que nem pensasse, melhor que não houvesse conceito para o meu equivoco. Melhor se depois daquilo fóssemos todos animais e não houvesse como o mundo inteiro saber que fui a maior anta do universo por aqueles parcos segundos. Contudo, o problema, de fato, é que eu estava pouco bêbado. Ou melhor, eu disse que estava bêbado somente para dar mais uma desculpa para o meu fracasso. Nessas horas é sempre melhor estar bêbado do que não estar. A bebida é a melhor desculpa. Eu não estava ali, era outro, era meu corpo e sua fome, como uma maquina de desejo. Meu olho brilhava porque não era eu, era uma força noturna alem do juízo. Era o espírito de fome e caça de toda a historia da vida na Terra. Eram todos os animais querendo saciar-se dentro do meu olho. Eu tinha toda uma alcatéia de lobos que queria saltar de meu peito. Bem no meio do bar, apos um trovão, eu rasgaria a blusa e mostraria o sinal do super-herói no peito. Aquela mulher ia ficar de joelhos, babando admirada. Mas que não babasse muito: eu não queria perder o tesão. Seria agora minha tiete, minha admiradora número um. Teria uma camiseta com meu retrato e bandeirinha na mão, gritando histericamente meu nome. É por isso que eu sonhava em fazer o gol.

Friday, December 03, 2004

GARGALO COMPADRE

Prosas molhadas, chorosas, feitas a soluços de esquina na vida bêbada de bares. Rola uma conversa de fim de mundo. Garganta abaixo, o fogo da pinga apaga o último choro seco do peito.
- Só sei que nada sei. Diga aí, Mané? Não é isso? Quem é que sabe das coisas? Todo mundo acha que sabe. Ninguém sabe nada. As pessoas vivem se escondendo atrás de palavras. Eu não acredito mais nas pessoas... - tenta dizer João, esgoelando palavras derramadas de mágoa.
- Ê, Jão. Você e suas filosofadas alcóolicas. Pensa até em merda de formiga - replica Manoel, meio debochante.
- É, Mané. E você nem sabe por que estava com aquele chulé horrível ontem à noite. Tome mais umas, amigo. Depois saberá o por quê do seu bafo, caso estiver em condições para tal - desferindo o troco sem piedade. - "Só sei que nada sei". Essa frase é de Sócrates, que malandro... Só sei que em nada creio? Em mim sim, por que não? Às vezes, quem sabe?
- Jão, você não sabe nada, cara. Engula logo esse copo, a cerveja está chocando - rouba o copo de João e festeja de virada.
- Até você me reprimindo, compadre?
- Brincadeira, Jão. Pode falar, amigo. Cada curvinha que o álcool faz no meu cérebro, pode crer que ele te acompanha. Na virada das nossas incertezas mais embriagadas de solidão, suplicamos um gargalo compadre, aquele que durma a nossa criança com fome. Porém, companheiro, antes que tal calamidade ocorra, pode esquentar a minha orelha.
Fritam-se alguns vazios instantes. João converte sedento o copo cheio, beduíno que ressuscita nos primeiros goles de vida.
- Eu queria morar no Everest - altivo, com o olhar no horizonte, trombando com as pingas da prateleira à frente de seus olhos.
- Everest? Você já está alto, hein, malandro? - fitando as mesmas pingas.
- É Mané, ninguém nunca vai compreender o que a gente sente - amacetando cabisbaixo o cigarro triste do chão.
- Por quê?
- Porque a gente tá bêbado, cara. O direito à loucura ainda não foi aceito pela ONU. Fujamos enquanto é tempo. O Everest é longe, mas não faz mal, a gente pode até pensar que ele morre sozinho.
- Você está começando a apelar, Jão. Caia na farra, fedentino. Fique tranquilo, o dia em que começar a chover prá cima, estaremos todos lá... - sugere Manoel, paquerando as pingas do horizonte.
- Lá aonde?
- No céu, é claro. Saboreando as lindezas de um paraíso espontâneo. Sem etanol, fimose ou qualquer espécie de...
- De...
- Entidade viciante!
- Caro telespectador, leitor, herói que nos ouve... - interpela João, em plantão noticiário, indicando estado de sítio, situação de risco à sanidade mental e à ordem das coisas. Porém sua voz morre no final da frase e João amolece desmaiado das pernas. Recosta no balcão, meio que apaga. Manoel escora aflito.
- Jão, acorde! O que foi, compadre? Não sabe beber?
- Não... No exato momento em que eu falava, me veio a receita de um bolinho que eu não gosto. E aí apagou-se tudo.
- Isso é fígado judiado. Uma náusea, tontura e um daqueles "tuiiiiiimmms..." na cabeça - teoriza o velho Mané, tentando utilizar da fisiologia com o amigo.
João recompõe-se, como que tendo uma visão. Parecia estar vendo Deus em carne e osso. Fermentava-lhe algum "insight".
- Foi censura. Essa receita de bolo provavelmente foi enviada por algum militar interessado em matar-me!
- Nos subterrâneos de minha ignorância, pelo que eu saiba, no período da repressão utilizavam receitas de bolo para encobrir alguma salgada empadinha jornalística, indigesta ao paladar reacionário. Porém, explique-me : como você seria morto?
- Não me pergunte isso...
- Por quê?
- Porque eu não sei responder, bicho...
Grave silêncio. Pensamentos esvoaçavam duas cabeças, ventando forte nos varais da alma. Uma chuva que não vinha. Tempo escuro, fora de órbita. Goles perdidos, olhares rasgados de vazio em lágrima presa.
- Não sei mais nada, Mané. Na verdade não existem receitas nas páginas de nossos velhos jornais já carcomidos pelo tempo. O fundo nos revela uma verdade fundamental, porém reprimida.
- Acho que tem um judeu que já disse isso...
- É. Tal judiado que ele era.
- Não fale assim, Jão. Você não conheceu pessoalmente o rapaz...
Sono em pé. Escorrem alguns segundos. João desperta uma pergunta atônita:
- Mas afinal, de quem estamos falando?
- Não sei porque... Vibrou em meus parafusos a suspeita de que algum judeu já possa ter dito isso. Mas não me lembro, não tenho a menor idéia de quem seja. Buscarei saber. Na bebedeira que vem, dou-lhe uma resposta.

Aos poucos instalava-se um silêncio berçário. O discurso indireto invadia duas crianças, chuviscando lembranças abandonadas ao vento árido de perdas passadas e prenhes.
Bêbados não pensam. Bêbados perdem, a começar pela razão e o rumo de casa. "Lar dor cela lar" *, disse o poeta, fugindo para o Everest com uma garrafa de vodka debaixo do braço. "Receitando" talvez um garrancho de despedida:
"Um corpo de angústia. Meia vida sem céu estrelado. Pedaços de boas lembranças, amargas de saudade. Não se mexe nas raspas secas do fundo. Tudo o que me resta é uma sobra fria. Corri meu choro orvalhado de fuga numa manhã escura, rodeada de luto e liberdade..."
Pelas ruas agora repousava mais um fim de madrugada, uma cantoria rouca, mal acabada, tocada aos tropeços, de quarteirão em quarteirão. A cada passo trocado, cambaleavam amores distantes, mutilados pelo tempo. Choros, há muito calados, imploravam o grito que fora abafado. O bêbado, tal qual o mendigo atrás do pedaço de pão, rumina suas misérias, um hálito pesado.
João errante, errava de casa. Envesgado o caminho, batia de porta em porta, pedia sobras de vida. Passeava suas dores, viajava nos desertos do espírito. Sabia beber, sabia continuar. Embora continuasse perdido, esperava sempre que o seu sol nascesse, nem que fosse para correr insanamente até o horizonte, e pescá-lo atrás das montanhas. E tantas eram elas. Tantos eram os vales profundos do conflito humano, onde se cozinha a paciência e se inventa a criação. Adeus, João. Força, amigo. Por detrás de uma montanha, sempre encontramos outra. Porém, no alto de cada uma delas, um novo horizonte se propõe ao infinito do sonho de se estar vivo.

* Em referência ao verso "Lar dor cela", do conterrâneo amigo Valnei Andrade.

Thursday, December 02, 2004

CRÍTICO CLITÓRIS

No centro do nada
perto do abismo
feito um bico e uma bica
onde tudo e mais um pouco de mistério espera
paira caminha roda mundo e fica
dentro dos vestidos
dos cheiros
e gemidos das mulheres
em vazante volúpia
nas calcinhas nas alcovas nas cartas nos contos de fadas
um pouco mais embaixo

na boca onde sonho e encaixo o queixo
a língua no buraco
no racho em riacho onde caço
fumegante pântano de carne
saliva salgado o mar de Sílvia
sua tia seu delírio secreto e malvado sua prima
nua inteira de fogo na vitrina
corra vire olhe no espelho um ponto vermelho
que cospe fogo atiçado e duro nervo
Nervo de fogo que secreta um grito um beijo
uma surra de prazer
por detrás do olho
dos lábios de molho
de línguas para lamber o mundo em portas de peles
arrombadas atacadas
por um escuro
que vive e habita o fundo
sem escudo sem mapa sem muro e sem rumo

clitóris
eis o nome do bicho
de biologia que indica qualifica e não domestica
de um brilho que pulsa vermelho
do seu grito de fome e vida crítica
do seu jeito de terra
suga engole come
empresta gozo e vida
tira toma de volta e enterra
único diminuto resistente resoluto
escondido extremo sacrificado membro
temido encarcerado explosivo crítico
disfarçado cínico evasivo dissimulado clínico
estudado analisado mentiroso
mapeado e místico
a voz do gozo
teso preso perdido
membro mutilado
sedento e ferido
verme voraz
sem face e sem dorso

bem pouco que é tudo
faz do prazer um fantasma
um vulto
ronda assombra
penetra secreta
e arromba
respira gozo e tumulto

clitóris
me some o seu nome
sua casa seu endereço
quando me engole e me come
sem fim nem começo
clitóris
te peço te empresto
prazer
e te cresço
te quero
te esmero
te conquisto
e te esqueço

Wednesday, December 01, 2004

Para um amigo

Voce sabe da chave dita nas cartas em sol nascente do horizonte poetico.
Encontrou aquela viela perdida nos meandros insanos das redes umbilicais.
Pode assim respirar a aura intima dos momentos fugazes de conversar
visceralmente com as pessoas.