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Monday, August 06, 2018

Pensamento positivo é furada

Acho muito sofrido e cansativo esse negócio de pensamento positivo. Não tenho o menor saco pra esse tipo de coisa. Quando estou um pouco mais tenso ou com medo de alguma coisa, prefiro me distrair, tirando o foco daquilo que está me fazendo ter medo. Prefiro não pensar nada. E para isso acho que é muito mais eficaz cantar, tentar ler alguma coisa, ou até mesmo, para quem é religioso, acho bem mais razoável fazer alguma oração ou ficar repetindo um mantra.

No caso de algum tratamento que esteja sendo empreendido, seja lá de que natureza for, prefiro optar por uma boa estruturação de todas as etapas e procedimentos que compõem esse tratamento. Há tratamentos, para os mais diversos males, que são comprovadamente eficazes, e portanto dispensam o processo cansativo de ficar repetindo para si mesmo que as coisas vão dar certo.

Sempre que um trabalho é bem feito, que um treinamento é bem feito, não há a menor necessidade de ficar repetindo para si mesmo que as coisas vão dar certo. Elas simplesmente acontecem de maneira bem espontânea. 

Durante uma cobrança de pênaltis, por exemplo, aquele jogador que não treinou com a técnica adequada, ou não treinou suficientemente, pode até ficar pensando exaustiva e repetidamente que vai fazer o gol, ou que já fez o gol, antes mesmo de fazer qualquer coisa. E se ele não estiver bem treinado, não estiver treinando de forma adequada, vai correr para a bola, pensando que já fez o gol, ou que vai fazer o gol, e vai errar. 

Por outro lado, quem teve um treinamento adequado não vai pensar nada. Vai simplesmente fazer o que tem de ser feito, porque é assim que as coisas costumam ocorrer para as pessoas que têm uma vida saudável. Quem está vivendo de modo saudável não fica entre a vida e a morte, pensando obsessivamente se as coisas vão dar certo ou não. Simplesmente vai fazendo e vivendo, e as coisas vão acontecendo. 

Penso que se alguém está precisando muito de pensamentos positivos isso já é sinal de que muita coisa não está bem ou fora do lugar, ou de que o estresse e a ansiedade chegaram a um ponto intolerável. E, como psicólogo, penso que pensamentos positivos definitivamente não são uma perspectiva consistente de tratamento.

Monday, April 16, 2018

Emoções negativas e positivas

As emoções negativas são emoções geralmente desagradáveis, de urgência, que salvam a vida das pessoas: medo, raiva, nojo... 

É possível, por exemplo, enumerar uma quantidade muito maior de emoções negativas do que de positivas. Quando pensamos em emoções negativas, várias delas nos vêm à lembrança, porque de fato há um número maior mesmo de emoções negativas. Contudo, esse número maior não faz das emoções negativas, do sofrimento, o sustentáculo da existência dos seres vivos. 

Mesmo que as emoções positivas estejam reunidas somente no que chamamos de alegria, e mesmo que sua magnitude possivelmente seja menor que a das emoções negativas, a alegria mesmo assim continua sendo o arroz com feijão da vida. As negativas até socorrem, mas não sustentam.

Sunday, February 20, 2011

Otimismo e pessimismo


Concebo duas formas básicas de otimismo, uma em relação ao presente e outra em relação ao futuro: ver o lado bom das coisas (no presente) ou esperar que as coisas se encaminhem de modo favorável no futuro.

Este otimismo no presente me parece o mais saudável, se for associado à ação. Trata-se de focalizar o que é bom, aprazível, dedicando-se a isso, investindo aí. E mesmo assim não deixar de saber sobre o lado ruim, sobre o que não funciona. Informar-se o máximo sobre ele, e tentar compreendê-lo: seu contexto, suas causas, suas funções e o que o faz existir, o que o mantém existindo. Eis uma forma de otimismo que julgo saudável: o otimismo lúcido, o qual não nega a realidade, não nega que existem falhas, defeitos. Diz respeito a estimular, reforçar o que é bom, e não afetar ou inflamar o que é nefasto.
O otimismo em relação ao futuro, porém, não se sustenta em uma situação específica: se as probabilidades do evento desejado, favorável, forem minoritárias. Esperar por desfechos comprovadamente improváveis e que não dependem de nossas próprias ações é tolice, perda de tempo ou sofrimento extremo, o qual impossibilita a sensatez.
Mas se a probabilidade é favorável, por que não ser otimista?
Tanto o otimismo quanto o pessimismo, em relação ao futuro, guardam porém uma série de contradições. Há, desde a Antiguidade, quem defenda o pessimismo, pois com ele se evita o pior, as surpresas desagradáveis. As surpresas, quando acometem os pessimistas, são sempre agradáveis, pois esperam sempre o pior. Com os otimistas ocorre o contrário. Neste sentido, pessimistas costumam se alegrar com o inesperado e os otimistas costumam se frustar. Haveria então menos tolerância à frustração no campo do otimismo.
Mas não vejo muito sentido em ser pessimista em relação ao presente. Relembremos a estória dos dois filhos, o pessimista e o otimista. Ambos ganham seus presentes de natal. O primeiro ganha uma bicicleta e enfatiza somente o que pode acontecer de ruim: “Isso é triste, ganhar uma bicicleta. Posso cair e me machucar. Posso ser atropelado. Posso sofrer um assalto e ser morto...”. E sua lista de possibilidades ruins seria enorme. O filho otimista, por sua vez, ganha um saco de esterco: “Que maravilha, se ganhei um saco de esterco é porque ganhei um cavalo.” 
Assim ambos se equivocam e denunciam a patologia de seus extremos. O pessimista não sairá de casa. Apresentará todo um repertório depressivo: deixa de agir, focalizando sempre nas falhas e possibilidades mórbidas, mesmo que remotas. E o otimista padece de negar a realidade mais clara e concreta, o que é absolutamente óbvio.
E esta estória é engraçada, porque dá pra ficar com raiva do pessimista, de seu enjoamento, de seus caprichos, de seu ímpeto destrutivo. Gente assim parece que gosta de destruir, de hostilizar. Costuma-se concebê-los como desmancha-prazeres. Oferecemos presentes e sorrisos, e eles nos devolvem caras feias, agressividade e mau humor. Costumam não ser alegres e não valorizar isso. Seu gozo se dá na destruição. Assim é que muitas vezes se sentem realizados.
Em relação ao filho otimista, meu sentimento é de que é um louco completo, pois não está somente lucubrando sobre possibilidades. Falta-lhe lucidez, está negando o que é absurdamente óbvio. É possível inclusive desconfiar de sua inteligência.
Como eu já disse em outro momento: “Tanto uma quanto a outra disposição de espírito possuem virtudes e deficiências. Há negação da realidade no otimismo, fantasia, pensamento mágico, infantilismo. No pessimismo: obsessão, autodestruição, perfeccionismo, preciosismo. O otimismo é ingênuo, bobo, flácido. O pessimismo é arrogante, duro, ácido”.
Os otimistas, em seu orgulho, se acham os sujeitos mais felizes e tranquilos do planeta, e lutam para manter essa imagem intacta. Os pessimistas se orgulham em pensar que são mais realistas ou que percebem o que os outros não percebem: vêem pequenos defeitos, falhas, julgam que têm o olhar aguçado, e temem ser confundidos com pessoas carentes de inteligência. Sentem admiração por espetáculos de hostilidade e destruição por meio de críticas mordazes.
Em sua fantasia inconsciente, os otimistas desejam santificação: “como são pacíficos, ponderados, equilibrados, tranquilos, alto astral”. Os pessimistas desejam aplausos para sua mordacidade. Entram no campo do debate de ideias para destruir o outro e suas ilusões. Que as ilusões sejam reduzidas a pó.
Tanto o otimismo quanto o pessimismo, porém, se não levarem à ação, são nefastos. É conhecido o provérbio: o pessimista reclama da falta de vento, o otimista espera que ele mude, e o realista ajusta as velas. O primeiro hostiliza, o segundo reza e o terceiro age.









Wednesday, October 14, 2009

“É psicológico”?

A causalidade e seus dilemas. A expressão “é psicológico”, “é emocional” ou “é psicossomático” está na boca do povo. Médicos costumam utilizá-la com frequência. É fato comum: você vai ao médico e ele pede uma série de exames. Não conseguindo encontrar evidências fisiológicas ou orgânicas relacionadas aos males que você apresenta, não hesita, solta logo seu veredicto sagrado: “seu problema é de origem psicológica”.
Alguns encaminham o paciente para um psiquiatra. Outros recomendam psicoterapia. E esses pacientes aparecem em nossos consultórios. E, não muito raro, têm expectativas médicas e até mecânicas em relação à solução de seus problemas. Geralmente esperam que a solução virá de um conserto aqui e outro ali, ou de um medicamento que logo apagará tudo o que lhe tem feito padecer. Pode-se dizer que, nesses casos, muitas vezes o médico passa a batata quente para as mãos do psicólogo. Pois o paciente chega até nós bastante ansioso em relação à solução imediata de problemas que nem mesmo se tem certeza sobre sua possível causalidade.
Dizer ao paciente que é psicológico possui talvez alguns sentidos que seria interessante tratar aqui. O que um médico está fazendo quando enuncia isso a seu paciente? Está de fato apontando a causa dos problemas desse paciente e lhe indicando o melhor caminho ou tratamento a ser seguido?
Na minha concepção não está apontando causa nenhuma. O enunciado “é psicológico” é muito vago para poder ser considerado científico. Se tivéssemos que tornar esta comunicação mais precisa, seria mais interessante comunicar ao paciente que ele deveria procurar profissionais de outras áreas, psiquiatras e psicólogos, por exemplo, para continuar a investigação das possíveis causas de seu problema de saúde.
Não deixo de me lembrar de algumas considerações acerca desse tipo de interações com médicos. Em um determinado episódio da série de televisão “House, M.D.”, o protagonista diz mais ou menos assim: “Quando um médico diz que seu problema é psicológico é porque ele é burro e não descobriu as causas”. Apesar de ofensiva, esta fala chama a atenção para um fato: o que muitos médicos estão fazendo quando emitem esse enunciado tão genérico a seus pacientes? Estão, muitos deles, tentando esconder de seu paciente sua incapacidade ou limites para saber o que está acontecendo? Não são capazes de dizer: “sinto muito, mas não sei o que você tem”? Por que tudo, no meio médico, tem de terminar com uma espécie de veredicto, com um diagnóstico categórico?
Outra passagem da qual me recordo é de Susan Sontag, em seu livro “A doença como metáfora”. Ela diz que se ouvir de seu médico que seu problema é psicológico, se isto ocorrer, peça seu dinheiro de volta.
E há como ter esta segurança toda, enunciando que o problema é “psicológico”? Tem como simplesmente transferir o problema para psicólogos e psiquiatras? Penso que não é tão simples assim. Alguns médicos, nessas situações, estão mais tentando se livrar do problema e de assumir seus limites do que trabalhando para de fato tentar descobrir o que está acontecendo. Assumir seus limites e deixar claro que estão compartilhando a investigação com outros profissionais talvez seja uma devolutiva mais profissional.
Neste mesmo livro, Sontag deixa claro os equívocos históricos que já ocorreram em função dessa atribuição espúria de causalidade. Os exemplos mais notórios são a tuberculose e as úlceras estomacais, sendo que o segundo exemplo é bem recente – só para não nos esquecermos desse tipo de equívoco. No caso da tuberculose, antes da descoberta de sua verdadeira causa, a bacterial, eram atribuídas a ela, também, causas psicológicas. No caso das úlceras estomacais, é bem mais fácil de se compreender o cenário, pois o papel etiológico significativo de um agente microbiano (a Helicobacter pylori) rendeu até mesmo um Prêmio Nobel de Medicina em 2005.
Ou seja, há evidências, na história, da repetição do misticismo de que esta ou aquela doença é “psicológica”. É muito mais fácil atribuir uma causalidade vaga do que investigar de fato o que pode estar acontecendo, com abertura para todas as possibilidades factíveis.
Não estou também, por outro lado, querendo apagar os componentes comportamentais ou interacionais de nossa saúde. Se há a possibilidade desses componentes estarem exercendo sua influência de modo mais determinante, eles devem ser investigados com mais precisão. Há um argumento de Skinner que talvez ajude a compreender essa questão da causalidade. Em seu livro “Ciência e comportamento humano”, mais especificamente no capítulo 3, ele defende que toda causa é sempre externa e que a atribuição de causas internas a nossos comportamentos não teria qualquer função explicativa.
Se um sujeito, por exemplo, está bebendo água com uma frequência alta e perguntarmos o por quê desse comportamento, geralmente teremos a seguinte resposta: bebe água porque está com sede. E assim acabamos ficando reféns de uma explicação circular: bebe água porque tem sede, logo tem sede porque bebe água. E isso não nos leva a lugar algum, a qualquer possibilidade concreta ou precisa de resolução do problema. Se, por outro lado, pensarmos em possíveis causas concretas, teremos algo mais palpável, mais razoável como hipóteses. O sujeito bebe muita água pois pode estar com uma dieta muito salgada; pode estar transpirando bastante, devido a altas temperaturas; pode estar com alguma disfunção orgânica, tal como diabetes, por exemplo. Enfim, essas são hipóteses mais precisas e menos vagas. E isto é investigar, de fato.
Quando alguém diz que é “psicológico”, podemos logo então perguntar: psicológico como, de que maneira? O que este sujeito faz para que assim o seja? Qual é precisamente sua participação? Que tipos de interações ou comportamentos, especificamente, podem ser determinantes?
E até que ponto dizer que é psicológico também pode piorar a situação, em vez de ajudar? Sim, pode haver casos em que a pessoa, ao ouvir um enunciado vago desses, venha a se sentir culpada por coisas que nem mesmo lhe dizem respeito. Para tornar isso mais claro, vamos a um exemplo bem prático. Uma conhecida minha padeceu durante meses de coceiras nas costas. Foi de médico em médico, fez diversos exames, e ouvia sempre o quê? “Isso é psicológico...”. Um belo dia, ela teve uma idéia muito simples: trocaria de marca de sabonete. Assim o fez e as coceiras desapareceram, por completo. E aí me pergunto: onde esses médicos vão colocar essa conversa banal e reducionista de que “é psicológico” depois de uma dessas?
E vamos supor que ela começasse a se sentir responsável por seus sintomas de um modo bastante difuso e comum: “ah, tenho coceiras nas costas, pois sou uma pessoa que carrega rancores, que não sabe perdoar, de ruindade mesmo...”. Enfim, com todo um desfile de superstições modernas, psicologizantes. Sim, pois todo o desespero em atribuir sentidos ou causas, gerando equívocos, é superstição.
É mais fácil nomear logo, encontrar uma pseudocausa para nossos problemas do que a investigação e ponderação razoável sobre o que de fato pode estar acontecendo. E assim também talvez não seja muito difícil desembocarmos em lugares comuns os quais afirmam uma série de outras besteiras atuais, tais como a força do pensamento positivo, por exemplo. Tudo pode, dessa maneira, terminar em algumas idéias pobres e comuns de que tudo depende de nossas crenças, do poder de nossa mente para mudar o que se encontra em nossa volta e por aí vai. Ou seja, se é psicológico, a responsabilidade é inteiramente sua. Logo, além de doente, você ainda terá motivos, obtusos, de sobra, para se sentir também culpado. Um fardo e uma ilusão a mais, e muita investigação a menos.

Thursday, September 18, 2008

O pensamento positivo cronifica as obsessões

Obsessões são idéias fixas, geralmente desagradáveis, carregadas de ansiedade, das quais o sujeito não consegue se livrar. Muitos obsessivos se queixam que são escravizados por determinados pensamentos ruins, dos quais não conseguem se livrar. Geralmente recorrem a alguma compulsão, algum comportamento ritual repetitivo e aparentemente desprovido de utilidade objetiva para desfazer a obsessão.
É mais ou menos assim: o pensamento ruim (o pensamento “negativo”) surge e o obsessivo somente consegue se apaziguar e sentir-se menos ansioso com um ritual que o neutraliza. O jogador na hora do pênalti, por exemplo. Ele está morrendo de medo de errar. E o que faz para neutralizar esse medo ou as obsessões, os “pensamentos ruins”, de que irá errar? Ele pode, por exemplo, recorrer ao pensamento positivo: “vou acertar, vou acertar”. Atua como uma espécie de oração.
Neste contexto, de ansiedade extrema, já instalada, o chamado pensamento positivo, ajuda. Ele tem a função de neutralizar as obsessões, os pensamentos ruins, e acalmar o sujeito. E o que fica claro é o seguinte: se não houver medo, não há necessidade de pensamento positivo. Onde há medo, há pensamento positivo. E onde há pensamento positivo, há medo. Sem medo, ele perde o sentido.
Porém, quero focar em outro detalhe. As compulsões (e o pensamento positivo é uma delas) neutralizam as obsessões e acalmam o obsessivo. Porém, este efeito é paliativo. Os estudos nesta área são conclusivos: a neutralização reforça a obsessão. Resolve momentaneamente, mas acaba por fim cronificando a obsessão. A melhor alternativa é o enfrentamento, a exposição sistemática. Ou seja, é mais eficaz e efetivo acabar com o medo.
Para o exemplo do pênalti eu diria o seguinte. É mais efetivo o jogador se preparar para perder o medo de perder um pênalti. Aprender a perder, então, é fundamental. Obsessivos são, de modo geral, fóbicos ou perfeccionistas. Morrem de medo de algumas coisas: contaminação, medo de perder, de errar, de morrer, medo de ter medo e vários outros milhares de medos dos quais sua vida é constituída.
Atendi a dois casos em que os pacientes tinham um medo absurdo do diabo. A imagem do demônio em suas mentes ou a idéia de que teriam vendido a alma para ele, ou que ele lhes faria algum mal, era algo do qual não conseguiam se livrar. Este tipo de obsessão gerava muita ansiedade e acabava sendo incapacitante. Recorriam aos mais diversos rituais: orar indefinidamente, fazer repetidos e inúmeros sinais da cruz, não dizer certas palavras, ou dizê-las em pares (para que fossem ditas e “desditas”), não adentrar em determinados lugares, não pisar em determinados pontos do chão. Enfim, o arsenal de compulsões pode ser enorme e o sujeito acaba padecendo bastante com isso tudo.
Fiz o que então? Baseado em uma estória zen, a qual lera há alguns anos, eu lhes propus o seguinte: o enfrentamento. Com o consentimento desses pacientes, invoquei o diabo. Se ele de fato existia, deveria comparecer à sessão.
“Diabo, belzebu, capeta, demônio, lúcifer...” – utilizamos todos os seus nomes e designações possíveis, “eu, Ricardo de Souza Machado Bueno e Adilson da Silva Teles Moura” (era importante também fornecer os nomes completos, assim não teria erro), “estamos aqui, no planeta Terra, na América do Sul, no Brasil” - enfim, endereço completo, pro coisa-ruim não ter desculpa; “venha até nós, apareça e comprove sua existência!”.
Nesse momento o paciente geralmente fica muito ansioso e tenso, praticamente se agarrando ou se escondendo atrás de nós.
Antes de tudo, porém, deve-se encher o bolso de grãos de feijão, centenas deles, se possível. A idéia é a seguinte: se o diabo aparecer, perguntamos quantos grãos de feijão temos no bolso. Nas duas sessões em que adotei este procedimento, ele sequer apareceu. Na estória zen, porém, o espírito maligno costuma aparecer. Mas, ao se perguntar pela quantidade de grãos no bolso, subitamente desaparece, sem dar qualquer resposta, e nunca mais retorna. E foi exatamente isso o que ocorreu com meus pacientes. O enfrentamento dissipou a obsessão. O diabo nunca mais azucrinou suas vidas.
(Autor, personagens e história fictícios)

Monday, April 14, 2008

A gratidão

Quero começar pelo senso comum. Muitas pessoas se sentem capazes de agradecer por comparação a quem tem menos ou não tem nada, por comparação a moribundos, miseráveis, destituídos, ou a quem perdeu. É muito freqüente ouvirmos sermões do tipo: “Agradeça por ter um corpo perfeito; por ter uma casa, alimento, saúde, por ser parte de uma minoria privilegiada...”. É a alegria pela comparação com as desgraças dos outros. Na verdade, uma forma vulgar e bem baixa de gratidão. Uma gratidão passiva, fruto de espíritos mais invejosos do que virtuosos. Precisam da miséria, da derrota ou da infelicidade alheia para ser felizes. É a alegria por saber que se tem o que o outro não possui. Emerge somente por comparação, por meio de um olhar invejoso e competitivo. É uma forma infeliz de gratidão. Tem o mal do outro como condição.
A gratidão, antes de ser um consolo ou um sentimento de dívida, pode ser um ato. O ato simples de usufruir do que se tem e do que se pode. Ser grato, em seu sentido mais virtuoso, é dar valor ao que se tem. E para isso é preciso ter olhos para o que existe e é capaz de produzir prazer.
Muitos pacientes nos chegam, em desespero, relatando que suas vidas estão em ruínas, aos pedaços. Os primeiros passos, muitas vezes, obviamente, são os de recolher cacos e tentar aproveitar o que sobrou. Esta tentativa, por mais estranho que pareça, é um movimento de gratidão. E ela, se possível, na melhor das hipóteses, deve se dar sem a comparação com uma miséria alheia maior.
quem tenha sido condicionado a se sentir feliz somente por comparação com os outros. Ou seja, ser feliz é ser ou ter mais que o outro, é ostentar superioridade. É uma felicidade social, de coluna social. Para quem foi assim condicionado, fica mesmo muito difícil ser feliz sozinho (no seu bom sentido), no seu cantinho, sem se preocupar demais com os outros. Segundo Russell:
“O homem sensato não deixa de sentir prazer com o que tem pelo fato de alguém ter mais ou melhor. A inveja, na realidade, é uma forma de vício, em parte moral, em parte intelectual, que consiste em não ver as coisas em si mesmas, mas somente em relação com outras. (...) Quem deseja a glória, poderá invejar Napoleão. Mas Napoleão invejou César. César invejava Alexandre e Alexandre, provavelmente, invejava Hércules, que nunca existiu. Não se pode, por conseguinte, combater a inveja por meio da conquista da glória, pois haverá sempre, na história ou na lenda, algum personagem cujos feitos tenham sido mais gloriosos. Pode-se combatê-la, sim, pelo gozo dos prazeres que se nos oferecem, pelo trabalho que tivermos de realizar e evitando comparações com aqueles que imaginamos, talvez sem razão, mais ditosos do que nós.” (2001, p. 84)
A melhor forma de se fazer isso é o usufruto íntimo e discreto do que se tem à disposição, e não do que se teria. É saber gozar em nossa própria simplicidade e intimidade, em um possível mundo não somente feito e construído como uma vitrine. Explico melhor: é olhar menos para a vida ou o sucesso dos outros. É poder habitar um mundo menos permeado por inveja. Um mundo onde a privacidade seja um elemento chave para o desenvolvimento pessoal e o prazer. A sugestão é de Sade: o quarto (a alcova) é o espaço privilegiado para o crime. É na privacidade que a possibilidade de prazer e gozo pode ser diversa e rica.
A gratidão, neste sentido, é as vezes até meio anti-social. Por que é o prazer pelo que é simples e somente nosso. Somente nosso porque ninguém maisvalor. Ou melhor, ninguém mais sabe o valor que aquilo tem. Não é somente uma virtude da memória, mas também da intimidade.
Quanto mais privacidade, maisexcentricidade produtiva e menos excentricidade reativa. É poder ser diferente simplesmente pelo gozo que a diferença possibilita, sem rebeldia, satisfação ou provocação a ninguém. É o prazer afirmado em segredo, em usufruto íntimo.
A intimidade, curtir nosso cantinho, sem olhar para os lados, é um caminho suave de felicidade. É tocar nosso barquinho num ponto isolado e esquecido do oceano e poder, de preferência, compartilhar isso com alguém, ou seja: amando. Gratidão, mas gratidão compartilhada, como tudo o que é do amor. Poder dividir esta alegria a mais, que é a gratidão, é o próprio ato de agradecer. E isto também é uma das formas do amor. Para Comte-Sponville:
“A gratidão é dom, a gratidão é partilha, a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha a idéia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou sua coragem, ou seu amor. Alegria retribuída: amor retribuído.” (2000, p. 147)
Sendo que até aqui somente falei de um tipo de gratidão: a gratidão para com a vida. A gratidão para com os outros seria o segundo tipo.
O segundo caso diz respeito mais precisamente ao reconhecimento de que não somos sujeitos absolutos de nossa própria condição. Ser grato é reconhecer que outras pessoas também participaram na produção de nossa aventurança. Trata-se de uma certa humildade que obriga a reconhecer o outro como parte de nossa alegria. É poder dedicar, compartilhar a graça recebida. Reconhecer o que nos foi dado. Ainda, segundo Comte-Sponville:
Agradecer é dar; ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é o prazer dele. esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros? Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. (...) O egoísta é incapaz disso, pois conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuirsob a forma de alegria, sob a forma de amorum pouco da alegria recebida ou sentida.” (2000, p.146)
E um erro muito comum, neste caso, é esperar gratidão. É fazer algo pelo outro , de antemão, esperando que no futuro haja reconhecimento. Fazer, de graça, por amor, esperando gratidão ou retribuição, é tolice. Neste sentido, deve-se fazer sem esperar nada em troca. Isto simplesmente porque a gratidão do outro não depende de nós.
Por outro lado, sentir-se grato, às raias de um sentimento constante de dívida impagável, também pode não ser muito saudável. A gratidão é sempre boa na medida da alegria que a acompanha. E a angústia de uma dívida constante carece de alegria. vi casos em que a gratidão mais expressava sofrimento do que alegria. A pessoa se sentia, na verdade, mais devedora do que grata. Embora se expressasse sempre com a palavragratidão”. Sim, quando somos gratos, podemos assim dizer: “devo muito a você, a fulano ou sicrano”, porém, em muitos casos, não é possível que todos sejam “pagos”, que todas estas dívidas sejam saldados. Não é o caso de pagar, mas de comemorar juntos a alegria da graça obtida.
graças oudívidasque são, por definição, impagáveis. A dívida que temos para com nossos pais, por exemplo. Principalmente se a graça é considerada grande e o papel deles fundamental. Ou se os sacrifícios dos pais, como muito comumente ocorre, foram notáveis. Entretanto, se eles amam os filhos, basta a ar da graça destes. Não tem preço e não se paga.
Porém, vi filhos que carregavam culpa, como se quisessem pagar. Foi o caso de um amigo. Carregava um pesado e martirizante sentimento de dívida para com os pais. Eu também tenho um sentimento de dívida. Mas sinto que a minha felicidade é a melhor forma de retribui-los. Neste caso o “calote” é mais saudável. Empreendimento para saldar uma dívida impossível é suicídio. E é este mesmo, em muitas situações, o destino de muitos eternos culpados e obtusamente gratos: enterram-se em culpas eternas em relação ao que “devem” ou “deveriam” aos pais.
Como bem finaliza Comte-Sponville, a gratidão “se rejubila com o que deve”.
Referências

Comte-Sponville, A. (2000). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.
Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.
Russell, B. (2001). A conquista da felicidade. Lisboa: Guimarães Editores.

Thursday, August 23, 2007

"O segredo": sobre o otimismo e o pessimismo

"O segredo", tanto o filme quanto o livro , tem feito muito sucesso . É uma febre. Febre alta, por sinal. E não falta quem esteja delirando. Pacientes chegam ao consultório dizendo que descobriram a chave de tudo. Muitos alunos, geralmente do primeiro semestre do curso de Psicologia, estão absortos com a descoberta, com a revelação fundamental deste "segredo", "guardado há milênios", "a sete chaves", como procura demonstrar Rhonda Byrne, a autora. Tanto o filme quanto o livro, tem sido um fenômeno absurdo de marketing e vendas. Em cerca de um ano , renderam à autora mais de 40 milhões de dólares.
Para quem ainda não assistiu ou leu “O Segredo”, trata-se de mais uma obra do gênero de auto-ajuda. O filme se insere, talvez , em um novo gênero, o de filmes de auto-ajuda. É, agora temos um novo gênero para filmes. Prepare-se, essa moda já está pegando. E os primeiros são sempre fenômenos de vendas. Quem não gosta de ler, pode agora assistir um filme e se auto-ajudar. O primeiro neste gênero talvez tenha sido " Quem somos nós?". E agora veio "O segredo". São na verdade livros adaptados para a linguagem cinematográfica.
Não me estenderei muito sobre os temas abordados em ambos. O que eles têm em comum é a mensagem típica dos livros de auto-ajuda. Basicamente, pregam o otimismo e a esperança. "Quem somos nós?" começa falando de física e descamba para uma pregação falaciosa de auto-ajuda. Aliás, encher a boca de "física quântica" para argumentar a favor de qualquer coisa também está na moda. O que é reprovado pela grande maioria dos físicos. É bem sabido: são geralmente extensões e apropriações indevidas, senão até mesmo oportunistas, de leis que se aplicam, em tese, somente ao mundo subatômico.
"O segredo", por sua vez, devido à carência de paralelos com a ciência estabelecida, se segura mais no discurso, na retórica, num blá-blá-blá repetitivo, masturbatório, americanóide, sem fim. Por sinal, muito similar àquelas longas e insensatas propagandas americanas, em que o produto é anunciado por horas a fio, com depoimentos exagerados, caricatos e fraudulentos. Enfim, conversa de vendedor.
Baseados no que chamam de "lei da atração", encadeam argumentos, de modo aparentemente lógico, para convencer ou hipnotizar o espectador. Sim, hipnotizar. Repetem suas fórmulas à exaustão. Reduzem tudo à famigerada "lei da atração". Esta basicamente diz o seguinte: semelhante atrai semelhante. Pensar coisas ruins atrai coisas ruins. Pensar coisas boas atrai coisas boas. Resumindo, é a mesma lógica do pensamento positivo, só que agora com outro nome, com nova roupagem. A fórmula é antiga: dar nova roupagem para algo já velho, batido. Utilizar um nome novo para falar do que não é segredo nenhum.
Minhas posições mais extremas em relação a este filme podem ser colocadas em um segundo plano. O que pretendo traçar aqui, e espero já não ter espantado o leitor simpatizante do gênero auto-ajuda, é uma reflexão sobre o otimismo e o pessimismo.
O argumento principal de quem assistiu “O segredo” é: “Mas como você vai negar que o pensamento positivo é benéfico? O que custa ser otimista?”. E a questão que proponho é a seguinte: “O otimismo é sempre benéfico? Em qualquer ocasião, sob qualquer circunstância?”. O pessimismo, por outro lado, é sempre maléfico?
Comecemos pelas definições. Definição de otimismo, segundo o dicionário Houaiss: “disposição para ver as coisas pelo lado bom e esperar sempre uma solução favorável, mesmo nas situações mais difíceis.”. E a definição para o pessimismo: “tendência para ver e julgar as coisas pelo lado mais desfavorável; disposição de quem sempre espera pelo pior.”
Tanto uma quanto a outra disposição de espírito possuem virtudes e deficiências. Há negação da realidade no otimismo, fantasia, pensamento mágico, infantilismo. No pessimismo: obsessão, auto-destruição, perfeccionismo, preciosismo. O otimismo é ingênuo, bobo, flácido. O pessimismo é arrogante, duro, ácido.
Ver ou julgar as coisas pelo lado bom ou ruim? Não conheço concepção que defenda o pessimismo neste caso. Julgar pelo lado bom, em termos gerais, quando se faz um balanço de toda a nossa vida, a torna possível, válida, viável. Fornece motivos para continuar tocando nosso barquinho. E motivos que estejam fundados no agora, no tempo presente. Temos de ter motivos, disposição, vontade para continuar. E que eles se situem, de preferência, no presente. Que sejam dados no aqui e no agora de nossa existência.
Porém, o mais virtuoso na verdade seria o julgar bem, para poder fazer o bem. Encontrar a verdade, de fato. Saber ponderar. E não simplesmente depender de tendências a ver o bem ou o mal. Em termos éticos a questão é a seguinte: qual disposição, em uma determinada situação, conduziria a mais ou menos sofrimento, no final das contas?
O otimismo carrega mais facilmente a aparência de que é sempre melhor, pois é uma disposição de devaneio. Ou seja, mesmo que tudo esteja na pior, o otimista parece refugiar-se em suas fantasias e imagens de que tudo está bem ou tende com certeza a melhorar.
Para Freud isto é maléfico. É o refúgio na fantasia. Alienação. O sujeito se aparta da realidade, construindo castelos no ar. O pai da Psicanálise é um defensor da conscientização. Melhor saber do pior e aceitá-lo como parte da realidade para poder melhor enfrentá-lo e extingui-lo. Retirá-lo de nossa consciência o torna ainda mais poderoso. Deste modo ele fica fora de nosso controle. A ausência de consciência do mal o transforma em uma espécie de assombração. O otimismo responde prontamente ao princípio do prazer: evitar o que é doloroso, de modo imediato, sem qualquer ponderação. “Isola, isola...”, é o que diz o jargão popular.
Mas a grande questão é: o que pode ser negado e o que não pode. O filme “O segredo” diz: não basta pensar que tudo vai dar certo. Não basta pensar que você pagará suas dívidas. Deve-se colocar o verbo no presente: “já paguei minhas dívidas”, e não ficar adiando para o futuro. “Já paguei?”, não tendo pagado? Na visão psicanalítica isto é negação pura da realidade. Recalque. Para a mentalidade presente no filme é instaurar uma nova realidade mental e de espírito, em acordo, em consonância plena com aquilo que se deseja. Para um é tolice, auto-engano. Para outro é programação mental.
Lembro também de Lair Ribeiro, dizendo mais ou menos assim: “Você deseja ser rico? Então deve começar a pensar que é rico. Pensando como rico, você passa a agir como rico. E assim, enriquece”. Na essência era isso o que ele dizia. Talvez isso seja bom para produzir alguma aparência. A qual, na mediocridade de nossas transações cotidianas, ainda é muito importante. Por outro lado, pode ser também um desastre. Simplesmente porque o sujeito passa a gastar o que não tem.
Interessante a consideração de Comte-Sponville em seu “Dicionário Filosófico”:
“Prefiro a fórmula de Gramsci: “Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.” Ver as coisas como são, depois dar-se os meios de transformá-las. Considerar o pior, depois agir para evitá-lo. Mesmo assim morreremos? Mesmo assim envelheceremos? Claro. Mas teremos vivido mais.”
Lembro de uma colega de profissão. Otimista que só. Dizia que meu problema era o “excesso de realismo”. Ela tinha os olhos esbugalhados. Abria-os, parecia que iam saltar das órbitas, e começava a falar em tom messiânico dos paraísos que o futuro nos reservava. Seu filho cresceu com o peso enorme de uma série de frustrações quase incontornáveis. Ela o criara, dizendo-lhe que seria o melhor, o mais perfeito e mais poderoso dos mortais. Projetara um futuro fabuloso para esse filho. E aquela criança acreditou nisso. Era um peso enorme para a sua existência saber que era uma pessoa normal, comum. Seu problema central? O de todo neurótico: grande intolerância à frustração.
E a questão agora é a seguinte: otimismo em excesso pode gerar baixa tolerância à frustração? Cria uma auto-estima de papel? A qual se esfacela no primeiro contato com a dureza da realidade?
Penso que é muito importante considerar a possibilidade de derrota, de perda. Mas que isso não se transforme numa obsessão, em um pensamento fixo e mórbido de que tudo irá com certeza dar errado.
O técnico de futebol dava entrevista e dizia assim: “Estamos preparados somente para a vitória”. Talvez até seja bonito de se ouvir. Mas, e se perder? Como é que fica? Morre? Fica louco? Aprender a perder é fundamental? Conceber a possibilidade de derrota, fracasso e tentar se harmonizar com isso talvez seja também muito saudável.
“A meditação sobre o fato da morte ser inevitável deve ser feita diariamente. Todos os dias, quando o corpo e a mente de um indivíduo estão em paz, ele deveria meditar sobre ter o corpo estraçalhado por flechas, rifles, lanças e espadas; sobre ser carregado por vagalhões; sobre ser lançado em meio a um incêndio terrível; sobre ser atingido por um raio; sobre ser chacoalhado até a morte por um terremoto; sobre cair de um penhasco de centenas de metros; sobre morrer de doença ou cometer seppuku na morte de seu mestre. E todos os dias, sem falta, o indivíduo deveria se considerar morto.”
Esta citação representa ensinamentos completamente contrários à idéia de pensamento positivo. Os fanáticos de “O Segredo” certamente abominariam tais considerações. E elas estão, contudo, em um conhecido livro da sabedoria oriental, o “Hagakure”, o livro do samurai. Trata-se de um guia espiritual para guerreiros, fruto das concepções de Yamamoto Tsunetomo (1659-1719), um sábio samurai que viveu entre os séculos XVII e XVIII. Este pequeno livro, por sua vez, é muito lido também como um auto-ajuda para a vida cotidiana de qualquer pessoa comum.
É a instrução mais do que clara de que devemos meditar constantemente sobre o pior, para podermos nos preparar melhor para ele. Vai projetar um avião? Então, pense em todos os acidentes possíveis para construir o melhor avião possível. Novamente: pessimismo da inteligência e otimismo da vontade. Pensar também o pior para fazer o melhor. A minha impressão às vezes é que se o pessimismo em excesso tende ao transtorno fóbico, o otimismo em excesso tende à burrice.
Paulo Coelho, em “O Alquimista”: “quando desejamos algo, o universo conspira a nosso favor”. Li somente metade do livro. E foi o único que tentei de Paulo Coelho. Pensei: não quero fazer parte da turma que não leu e não gostou. E confesso: não gostei. E também não tenho nada a dizer ou criticar nesse autor. Simplesmente não gostei. Não é o tipo de gênero ou história que me envolve. Prefiro deixar o Paulo Coelho em paz no sucesso e na fortuna dele.
Mas esta passagem que citei, contesto. Que história é essa de desejar e o universo desejar junto? Poderia ser o contrário, por que não? Se tomarmos falaciosamente a lei física da ação e reação, dá o contrário: basta desejarmos algo, que o universo, por reação, logicamente, irá conspirar contra.
Porém, o mais interessante foi encontrar esta mesma citação, escrita de outra maneira, por um outro autor. Não me lembro o nome dele. Mas lembro que atribuía a autoria original a Goethe: “quando perseveramos, o universo conspira a nosso favor”. Sem dúvida, esta é uma formulação bem mais sofisticada e sensata. Não basta ficar pensando ou desejando não, deve-se antes de tudo agir.
Por outro lado, assim como o otimismo, a própria perseverança deve ser relativizada. Não são conceitos ou virtudes absolutas. O excesso, a desmedida, são considerados viciosos, desde a Antiguidade. Os autores de auto-ajuda pecam ao conceber estas disposições como absolutas. Desculpem-me, mas isto é somente uma postura de vendedor. Otimismo em excesso é loucura, burrice. E como também saber onde termina a perseverança e começa a teimosia, a burrice?
Quer coisa mais perseverante do que uma abelha se debatendo por horas, até morrer, no vidro da janela, quando sua liberdade está a cinco centímetros acima dela? Há momentos em que é muito importante dar uma parada, tomar distância, para deixar de somente perseverar, perseverar no erro. Assumir a possibilidade de derrota e saber aceitá-la é também fundamental. Isto é saber perder.
Perseverar com muita avidez pode também ser compreendido como aquela corrida desembestada de quem vai com muita sede ao pote. Avidez, o que isso significa? Desejo em excesso. Excesso de expectativas. Apego excessivo ao sucesso, à vitória. Talvez seja melhor esperar menos, bem menos, e ir vivendo, sem tanta ambição, sem tanta megalomania. E, convenhamos, é isso o que percebemos facilmente nos olhos siderados dos palestrantes do filme “O segredo”: megalomania, ambição excessiva (utilizo um eufemismo, para não dizer logo ganância), promessas, pregação fanática.
Penso que também vale aceitar o fluxo da vida, sem tanto apego a passado, futuro ou o sucesso. Repito uma história que já contei aqui:
“Como, vocês, monges, vivendo de modo tão simples e isolados do resto do mundo, se dizem felizes?”, indagou um curioso a visitar um templo, espantado com o isolamento, a simplicidade e o silêncio. Pois nada acontecia ali. Era tudo ausência. Tudo do qual nós geralmente fugimos. Aquilo que parece nos conduzir à melancolia, ao tédio.
O mestre respondeu:
“Somos felizes porque não lamentamos o passado, nem esperamos nada do futuro.”
Os autores de auto-ajuda, de um modo geral, concordam com a primeira parte da fala do monge. Pregam bastante que devemos nos libertar do passado. Porém, em relação ao futuro, o negócio é fomentar freneticamente um mundo imenso de expectativas, fazer os olhinhos do espectador brilharem em visões maravilhosas. Mestres da promessa contínua. Sempre renovada em um novo best-seller salvador de todas as frustrações. Indústria da esperança. É, ela existe, e vende milhões, seja por meio de auto-ajuda ou por meio das religiões.
“Nunca desista de seus sonhos”, título de best-seller do mitômano Augusto Cury. Mas é também possível dizer: pelo contrário, desista de seus sonhos e vá agir sobre o mundo. Troque seus sonhos por projetos, são bem mais sólidos e muito menos permeáveis a frustrações. Dê um passo de cada vez. Cuidado: quanto maior o sonho, maior o tombo. Sonhar alto demais, além de prova de infantilidade, é desejar sem poder e sem saber. É desejar demais o que não se tem. É apostar na frustração, no tombo, na mentira.
E por que ficar sonhando, devaneando, seria a garantia do sucesso? A avidez é prova de que o tiro pode sair pela culatra. Se um por um lado, sonhar, fantasiar, produz ensaios, os quais nos prepararam para um evento futuro. Por outro, podem também criar excesso de expectativas, a melhor receita para frustrações difíceis de se contornar.
Já sugeria Machado de Assis: pior do que cair do segundo andar e quebrar a perna, é cair das nuvens, de um sonho. Eis a frustração. E é menos tolerante à frustração quem não é capaz de considerar ou suportar a possibilidade de fracassar. Se o fracasso é insuportável, há baixa tolerância à frustração. E qual é a saída patológica para isso? Segundo Freud, é o mecanismo infantil de se refugiar na fantasia, a qual aparta o sujeito da realidade, impedindo que viva e aja de verdade em sua vida concreta. Ou seja, o sujeito passa a negar a realidade.
Examinemos o mecanismo de recalque. Visa afastar da consciência algo que seja desagradável. É o famoso “isola”. Produz o isolamento do que seja doloroso lidar. Torna inconscientes os conteúdos que provocam desconforto: tanto o que o senso comum chama de pensamentos ruins, negativos, como o que é proibido, censurável, moralmente condenável, ou o que ainda não é identificável e também dotado de uma desagradável e insuportável estranheza.
É aquela coisa, o sujeito sente algo estranho, o qual ainda não sabe o que é, porém nefasto. A tendência é recalcar: isolar, tornar inconsciente, antes mesmo que perceba claramente o que está ocorrendo. Um exemplo caricato, contudo bastante ilustrativo, é o recalque de desejos, ou mesmo lampejos homossexuais em alguém muito machista, homófobo. O sujeito sente algo estranho e antes mesmo de saber o que é, recalca, “isola”. É clássica a cena cômica em que o machão, sem querer, solta a franga e logo, de modo aflito, exclama: “isola, isola...”. Ou seja, é melhor deixar isso (“que nem sei o que é”) pra lá. Aliás, outra sugestão comum: “deixe isso pra lá”, “esqueça isso”.
O recalque, a negação da realidade, são então mecanismos comuns, que utilizamos com freqüência. Recalcar besteiras, detalhes, coisas sem importância, não só é comum como necessário. Porém, nem sempre funciona. E quando o recalque ou a negação falham, a coisa pode ficar bem feia. E é aí que fica deflagrada a patologia.
A partir de um certo ponto, o recalque se torna inútil e até mesmo mais maléfico. É como sempre varrer a sujeira para debaixo do tapete ou viver engolindo sapos. Chega um momento em que o caldo entorna, e de modo assustador. É o que Freud denomina como o retorno do recalcado ou o sintoma. A tendência é começar a agir descontroladamente em função daquilo que se recalcou. O que foi negado passa agora, disfarçadamente, a comandar o sujeito.
Freud é um defensor da conscientização. Acredita em sua força libertadora. Mas não é somente Freud quem pensa assim. É praticamente toda a história da sabedoria, seja ela ocidental ou oriental. Quando vejo o receituário de um filme como “O segredo”, ou qualquer pregação exclusiva ou excessivamente otimista, não consigo deixar de pensar que é imprudente conceber o otimismo como um bem absoluto. Nestes termos, a apologia do otimismo é a apologia da negação da realidade, da ignorância. Por este ponto de vista, o que fazem os otimistas? Negam a realidade.
Outro bom exemplo para botar um pouco mais de auto-crítica nas apologias do otimismo é a sabedoria Zen. O que ela ensina também não tem nada a ver com o otimismo: “Quer flutuar? Afunde. Quer afundar? Flutue”; “Quer acertar no alvo? Antes desprenda-se do alvo e de si mesmo”. No livro “A arte cavalheiresca do arqueiro Zen” está assim: “a resposta é: o discípulo só progredirá se se desprender de toda intenção e do seu próprio eu” (Herrigel, 1999, p. 83).
O desapego, o desprendimento, são partes fundamentais do ensinamento Zen. Quando muito desejamos algo, tendemos a não ser capazes de manter uma certa distância da situação. Tornamo-nos, muitas vezes, ávidos, em busca aflita, o que pode por tudo a perder. Nestes casos, muito comuns, é mais prudente preparar-se também para aceitar o fracasso. Não basta simplesmente botar na cabeça que já conseguimos.
Lembro-me de um amigo, apostador compulsivo. Gastava boa e importante parte de seu salário apostando na loteria. Era muito otimista. Aos seus críticos dizia assim: “vocês vão ver quando eu ganhar”. Não adiantou pensamento positivo, otimismo ou perseverança alguma. Negar a realidade, ou seja, a chance irrisória de acerto, não conduziu a nenhum sucesso. Isto porque ele estava simplesmente equivocado.
Apesar de ainda caber aqui mais uma série de observações, fechemos, por fim, este longo texto com a seguinte e breve consideração: “Se macumba desse certo, o Haiti era campeão mundial de futebol.”

Referências

HERRIGEL, E. (1997). A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo: Pensamento.
COMTE-SPONVILLE, A. (2004). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.
TSUNETOMO, Y. (2004). Hagakure: o livro do samurai. São Paulo: Conrad do Brasil.