Thursday, May 19, 2005

Mudei 2 (O império do autismo e suas seduções)

<>Naveguei horas na sala vazia, de pessoas, de meus sentimentos mais vivos. Estava lá a contemplar toda a minha paisagem imensa de saboroso silêncio e omissão. Arrastei as nuvens do meu olhar carinhoso para perto de quem amava e a indiferença bruta e metálica para os desafetos.
<>Era todos os seres indefesos no consentimento de estar vivo. Tomei as rédeas do mundo traduzido nos desenhos do corpo e seus alarmes de fazer a verdade sem rodeios. Fui também muito longe em meu desejo, na boca quente e voluptuosa do mar de segredo e gozo que brotava do silêncio. O orgasmo sutil de ficar quieto em meu canto. A glória de parir o universo sem juízo algum.

Wednesday, May 04, 2005

Mudei

Tudo começou com uma inofensiva tosse. Ela foi aumentando e um dia acordei muito rouco. E um dia após a rouquidão, acordei completamente mudo. Não saia voz alguma, nem bem baixinho: nada! Fiquei assim durante uns três dias. Havia uma reunião. Fui. E não pude soltar uma palavra. O imbecil de sempre – pois toda reunião tem sempre um imbecil – aproveitou da minha mudez para falar uma asneira atrás da outra e poder emitir todos os juízos possíveis e contrários às minhas idéias e interesses. Não havia como me defender, não havia nada a fazer. Eu era a omissão em estado puro. O que eu pensava do mundo? O que eu queria? Nada disso podia expressar. Mesmo frases simples, comandos ou pedidos, estavam totalmente bloqueados. Mas minha observação tomou outros ângulos, ficou mais aguçada para outros detalhes que a normalidade não permite enxergar.

Dois camaradas, pessoas pelas quais sempre tive apreço e admiração e que me respeitavam muito estavam a debater uma série de assuntos de meu completo domínio. Como sempre, estavam ansiosos por minha opinião. Olhavam pra mim e perguntavam, mas nada acontecia. Compreenderam minha situação e resolveram continuar debatendo, na minha frente. Foi muito interessante ver aqueles dois - antes mudos frente ao meu domínio - agora tagarelas, soltos para divagar como bem pudessem fazer sozinhos, sem minhas chancelas, sem a minha responsabilidade pelo que estavam pensando. E vi que apesar dos seus altos cargos profissionais ainda eram garotos gordinhos que colecionavam figurinhas, viciados em coxinhas e sempre ansiosos pela hora do recreio.

Vivi naqueles dias de mudez estados de abandono de minha idéias, de minha comunhão de palavras com os outros. Estava abandonado a mim mesmo. Tudo ia, vinha, e ficava comigo mesmo, sem trocas verbais. Sem lutas nesse palco de satisfações que é boa parte de nossa vida. Não havia satisfação a ser dada pra ninguém. E um estado enorme de inocência tomou meu ser, ou pelo menos o seu papel, seu personagem. Quem não fala, quem não pode defender-se por palavras pode aparentar uma profunda inocência. Sentia-me fora do mundo, mero espectador. Mas estava dentro dele com minha carne, meus olhos, meu sorriso e não mais com o veio abstrato das palavras. Abateu-se sobre mim a ternura dos animais domésticos. Estava sempre ali, presente, ouvindo o que outros diziam, deixando que se sentissem no domínio dos rumos do mundo porque suas palavras e comandos simulavam seu império. Eu era mais um bichinho de estimação de olhar terno e incógnito. Uma companhia plácida. Um companheiro de verdade. Meu silêncio e minha omissão eram o berço da soberania de quem tinha a palavra. Fiquei muito mais amável. Meu silêncio era a expressão da omissão, da falta de qualquer testemunho possível. A cumplicidade do mundo todo quis apoderar-se de mim. Era agora a pessoa mais confiável, porque a mais muda.