Wednesday, March 13, 2019

“Meu coração rasgado de medo e saudade...”

Raul (nome fictício), usuário do CAPS, estava tentando melhorar sua redação. Era um senhor com 52 anos de idade, bastante desiludido com a vida. Morava com a esposa, três filhos já adultos e uma neta. Havia deixado seus cabelos encaracolados crescerem, e tinha uma aparência que lembrava muito o estereótipo de indígenas americanos. Falava pouco. Parecia um pajé, um índio sábio e já um pouco velho. 

Tinha uma aparente sabedoria no olhar, a qual não se transmutava em palavras ou a compreensão que precisava para poder lidar de forma mais serena com diversas pessoas com as quais conviveu e convivia. Colecionava destempero, conflitos interpessoais e culpa. Aos 52 anos de idade carregava nos ombros a sensação amarga de que nunca soubera viver, e pensava muito em morrer. Sentia-se um estranho em um mundo que não o abrigava.

Voltou a estudar. Começou um curso supletivo, e retomou seus estudos, que haviam sido cessados quando ainda estava na 5ª série do ensino fundamental.

- Adriano, eu gostaria muito de poder melhorar minha escrita, de conseguir escrever o que penso. Estou tendo aulas de redação na escola, mas é muito difícil...

Lembrei-me de um exercício literário, de fluidez, que incentiva o descolamento do sentido, com a compreensão de que uma frase não precisa ter pressa para se findar, já que os termos vão se encontrando, aos poucos, para no final das contas permitir um mergulho na profundidade do jogo de palavras que é escrever. 

No final do atendimento escrevemos juntos uma frase poética, tentando traduzir seus sentimentos: “Estou estudando o mundo da minha raiva, pela agonia que brota nas pedras que engasgam meu coração rasgado de medo e saudade...”
Há muitos meses que não o vejo. Quem por último me deu notícias suas foi sua esposa:

- Ele tá bem. Você sabe, né, com aquela dificuldade e angústia toda que ele tem. Mas tá levando, tá caminhando...

E sempre que penso em Raul me lembro desse nosso versinho, de como sua dor talvez ainda esteja a vagar por dentro dos labirintos em que ele se via perdido.

Tragado para uma dimensão paralela

Às vezes no CAPS me sinto tragado para uma espécie de realidade paralela. Um dia atendi a um paciente que parecia inicialmente um zumbi, saído de um filme apocalíptico. Completamente psicótico, e eu não tinha dúvidas disso. 

Pouco conseguia estabelecer comigo um contato minimamente sustentável para um diálogo que pudesse se aprofundar no que quer que seja. Tinha uma série de trejeitos que se assemelhavam mais ao de um animal selvagem acuado, fora de seu habitat. 

Estava bastante emagrecido, talvez com um IMC abaixo do mínimo. As unhas eram compridas, a pele extremamente branca e seus dentes caninos superiores involuntariamente, com frequência, se sobressaiam, escapando, da boca, dos lábios. 

Oscilei entre a piedade e um pouco de medo de alguma possível agressão imotivada. Conforme fui aprofundando o contato, e tentando coletar o maior número possível de informações (principalmente a partir de um de seus familiares, que também era alguém com uma série de condições especiais, com um histórico muito peculiar e também vulnerável a sérios transtornos mentais), pude mergulhar um pouco no drama imenso que aquele menino de 20 anos de idade viveu durante toda a sua vida, até estar ali naquela sala, conversando comigo.

Nunca havia tido qualquer tipo de contato sexual ou amoroso com outra pessoa. Nunca nem mesmo havia beijado alguém. Tinha seus 20 anos, fazia o segundo semestre de um curso de graduação. Tentava, diante de toda a sua vulnerabilidade, enfrentar um mundo que a ele sempre foi completamente estranho, inóspito. Um constante e eterno nível de estranheza, tão profundo, que era simplesmente impossível não ter talvez uma aparência que não aquela de alguém que sobreviveu a uma guerra ou catástrofe de dimensões apocalípticas.