Sunday, November 28, 2010

“A burrice é contagiosa”



“Se não estudar, vai puxar carroça”, minha mãe não se cansava de dizer. A meus irmãos não sei, mas a mim ela conseguia o que queria: apavorar. “Já viu que burro só serve pra puxar carroça?”. Os sermões dela eram longos, mais longos que os sermões de Fidel Castro. No final, quer saber, eu ficava morrendo de medo.
Aí fui pra escola: primeira série do ensino fundamental. No final da década de 70 trata-se do antigo 1° grau. Escola pública, a vida inteira. Era o EEPG João Augusto de Mello. O que, pra nós, alunos, eram simplesmente o Jamel ou João Melão. Eu morava no Jardim Independência, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Mas Jardim Independência era também, pra nós, outra coisa, era Jardel. Morava no Jardel e estudava no Jamel.
E não sei se você sabe, mas, durante um bom período, na época da ditadura, havia muita, mas muita repetência mesmo. Era um inferno. O sistema de ensino era tradicional, meio militar, e a repetência comia solta. A molecada tomava muito pau, muito couro, muita surra da vida, de cara. Como eu estudava em uma escola pública e de periferia, a porrada era ainda maior.
Minha mãe com seus sermões de quem iria ficar banguelo, com sorriso amarelo, puxando carroça, e eu atento às carroças, aos carroceiros e à sua miséria, aos cavalos dos carroceiros, mais maltratados ainda do que estes últimos. Outros nem carroça tinham e iam à pé, descalços, geralmente bem sujos, pedir “sobras de comida”. Sim, isso ocorria sim, desse jeitinho. Toda noite batiam à nossa porta, depois do jantar. Lá fora, daquela escuridão do cão, saiam as vozes dos pedintes, em famílias inteiras de maltrapilhos: “Tem sobra de comida?”. Não era “alguma coisa pra dar” ou “uma ajuda”, era “sobra de comida”. Pediam pelas sobras de nossos jantares apaziguados em nossas casas protegidas. E já tinham suas panelinhas, seus potinhos, onde receberiam nossa sobra geralmente gelada.
Minha mãe abria o portão e se disponha a conversar com estas pessoas: “Onde você mora?”, “Quantos filhos você tem?”, e a conversa se alongava. Até que um dia fez amizade com uma família inteira. Eram a mãe e uns cinco filhos ou mais. E todos viviam de sobras de comida. E todos eram muito sorridentes, maltratados e feios, mesmo os mais novinhos e bem crianças ainda. Minha mãe gostou deles, principalmente de uma que nunca havia aparecido, pois tinha vergonha de pedir. Era identificação: também passara fome em sua infância e muitas necessidades básicas haviam sido parcamente satisfeitas. Sabia bastante do que era a miséria e a vergonha de pedir. Pobre, orgulhoso, sofre dobrado.
Como também pouco tinha estudado, seus sermões eram em sua maioria voltados para o estudo. E assim fazia também no portão aos pedintes e seus filhos: “Você tá na escola?”; “Por que ela parou de ir na escola? O que aconteceu?”; “Precisa voltar pra escola...”, e assim a conversa ficava infinita.
Sermões longos, com muito carinho em alguns momentos e muito duros em outros: “Oh, minha doçura, na escola tem a merenda...”; “E você quer puxar carroça? Quer encher a barriga de filhos e depois ficar aguentando marido bêbado?”. Estes sermões tinham sobre mim um efeito assustador. Eu removeria montanhas para cumprir as missões delegadas por minha mãe. Era uma religião do esforço, da disciplina, da constante vigilância sobre nosso próprio comportamento, em busca de alcançar os cumes da virtude e da autosuperação. Nessa guerra eu era seu soldado mais fiel.
Porém, na escola, já na primeira série, no Jamel, eu mergulhei em um horror que eu pouco conhecia, o de repetir de ano. Havia muita repetência e os repetentes eram cruelmente humilhados e maltratados. Esta era minha percepção das coisas. Então adquiri rapidamente pavor de passar por tal martírio. Morrer? Sim, infelizmente um dia sim. Repetir? Jamais!
E assim, como todo bom soldado ou fiel, fiquei obsessivo. Chegava à mesa de merenda, para tomar aquele sopão ralo de macarrão parafuso e pedaços de batata, e a merendeira perguntava: “Quer repetir, filho?”; “Não, quero tomar de novo”. Eu jamais iria dizer que eu queria repetir, vê se pode. Repetir, esse verbo eu jamais usava em primeira pessoa. Vai que pega...
Assim, eu também tinha horror à burrice. Tinha pavor de ficar burro, de ser burro. Por quê? Porque o burro obviamente iria repetir e... puxar carroça. Os repetentes eram meus contra-exemplos, eram tudo aquilo do qual eu teria de fugir. Comecei então a fazer todas as tarefas de casa e prestar atenção absoluta no que a professora dizia. Comecei a estudar por dever, para evitar o mal. Tudo o que se faz por dever, não se faz por amor. Não foi por amor que comecei. Foi por amor à minha mãe e medo de suas profecias. Mas não por amor aos estudos. Era obrigação, missão divina, de vida.
Havia, na sala de aula ao lado da minha, um menino repetente que fazia o tipo mau e decadente. Era magro, comprido, o maior e mais velho de sua turma. Sempre sujo, sempre fedido e suado, sempre brigando e, como dizíamos, “catarrento”. Nossa, como a coriza escorria de suas narinas, adentrando a boca. Ele tinha um aspecto repugnante. Mas mais repugnante era a imagem mental que eu formava do infeliz: era um repetente e aquilo podia ser contagioso. Como não querer me manter longe? Como não ter pavor de contágio? Sim, eu tinha a obsessão de que a burrice era contagiosa.
Um dia esse menino estava brigando com outro, no recreio. Nosso recreio era selvagem. Corria-se demais, trocava-se muitos socos. Cada um tinha seus modos de se impor, de se fazer forte e de ser respeitado. Ele brigava com outro, e cuspiu-lhe na cara, mais precisamente na boca. A cena me deixou indignado. Eu jamais entraria em litígio com ele. Seu cuspe me oferecia muito mais perigo do que um soco na cara. Deus do céu, eu podia ser contaminado com sua burrice.
Sem contar o dia em que esse mesmo menino trombou com outro, em plena corrida, e bateu com força sua cabeça no chão, desmaiando. Minha memória do fato não deixa também de associar tal episódio com todo o mal que dele emanava: a batida de cabeça teria também deixado-o mais burro. Bater a cabeça era outro mal absoluto a ser evitado. Eu também brigava, eu também era habilidoso e sabia trocar bons socos e pontapés. Porém que não me batessem na cabeça, porque isso fazia eu perder qualquer conflito. Podia até estar ganhando uma briga, mas um golpe na cabeça era suficiente para me tirar do sério e do controle da situação. Porrada na cabeça, pra mim, era crime de guerra.
Assim, atravessei parte de minha infância fugindo da burrice, daquele mal do século...