Saturday, September 28, 2019

Epidemia de transtornos mentais

A partir de 1990 houve um crescimento exponencial das taxas de transtornos mentais nos países industrializados.

Tenho estado mais sensível a essa questão depois da leitura de três livros (que estão citados no final desse texto), sendo que dois deles foram publicados pela Fiocruz, e um deles, que não foi publicado pela Fiocruz, é um livro de um autor que é uma referência muito forte no cenário científico mundial.

Estes três livros focam na questão do papel da indústria farmacêutica e da medicalização, implicados no aumento dos transtornos mentais. Apesar de bilhões de dólares terem sido investidos na criação, testagem e produção de diversos medicamentos psicotrópicos, os transtornos mentais somente tiveram seu número aumentado de forma assustadora.

Esses autores associam a epidemia de transtornos mentais aos efeitos dessas novas medicações, que agora são consumidas em nível alarmante. E infelizmente, em muitos casos, às vezes sinto que o trabalho psicossocial, o trabalho que eu e muitos outros profissionais do CAPS realizamos, fica muito enfraquecido diante da monstruosidade da medicalização.

E até agora o que eu pude depreender em relação às evidências científicas trazidas por essas três referências, por esses três livros, é a de que as medicações psiquiátricas deveriam ser prescritas por no máximo seis semanas. Segundo esses dados não se sustenta a alegação de que os pacientes psiquiátricos têm de tomar medicação para o resto da vida.

E boa parte dessas evidências provém de estudos longitudinais, com grupos controle formados por pacientes que não fazem uso de medicação psiquiátrica, mesmo quando estamos falando de psicoses. Há inclusive reiteradas referências à estratégia do "Diálogo Aberto", na Finlândia, que vem ocorrendo nos últimos 30 anos, e demonstrando que é possível a diminuição da medicalização. Nas instituições de saúde que adotaram essa estratégia, no país citado, somente 1/3 dos pacientes psicóticos são medicados, enquanto que no Brasil isso deve se dar por volta de praticamente 100% dos pacientes.

Obviamente que não se trata apenas de excesso de medicamentos no tratamento de pacientes com transtornos mentais produzindo mais transtornos mentais. O termo medicalização se refere à concepção de que os transtornos mentais são somente de ordem biomédica.

O caso, porém, é que os transtornos mentais não são somente um problema biológico e médico. Quando os investimentos se concentram na perspectiva de que esses pacientes irão melhorar somente com idas esporádicas a um consultório médico e com medicamentos há toda uma deturpação da natureza multifacetada do problema.

Os transtornos mentais são fruto também, por exemplo, de planejamento urbano. Cidades com prioridade para carros, com poucos espaços para que as pessoas caminhem e se encontrem, com poucas áreas verdes, centros comunitários e de lazer facilitam enormemente o surgimento de transtornos mentais.

Às vezes em um CAPS é necessário muita paciência e um esforço muito grande para mostrar aos pacientes que a cura não está nas medicações, e que absolutamente nenhuma medicação psiquiátrica cura. As medicações psiquiátricas servem, no máximo, para que o paciente possa tolerar um pouco mais os sintomas de uma crise ou que uma crise possa talvez ser cortada. E, como qualquer medicação, possuem efeitos colaterais. Ou seja: não faz sentido pensar que devem se transformar em primeira linha de tratamento para transtornos mentais.

As medicações psiquiátricas servem para aliviar sintomas. Os determinantes dos transtornos mentais não são combatidos por essas medicações. Os determinantes estão na infinidade de estímulos com os quais o mundo nos bombardeia. Esses estímulos podem estar no ar que respiramos, na água que ingerimos, nas pessoas com as quais interagimos, na qualidade na quantidade de horas de sono, na luz solar (o quanto ela nos estimula e o quanto fazemos uso disso ou não), em nossa dieta (que precisa ser a mais variada possível, com o menos possível de açúcar), no sedentarismo, nos agrotóxicos (que podem estar contaminando nosso alimento e nossa água), na quantidade de alimentos processados que ingerimos, etc.

Ou seja: há uma infinidade de estímulos que nos afetam. E aí é que estão os determinantes dos transtornos mentais, do que somos. A medicalização atrapalha essa compreensão, porque concentra esses determinantes na concepção de que tudo isso é um problema médico, que poderia ser resolvido com medicamentos, que os transtornos mentais são como quaisquer outras doenças, que possam ter nos acometido sem qualquer participação nossa.

* Os três livros aos quais me referi acima são: "Medicamentos mortais e crime organizado", de Peter Gotzsche; "Medicalização em psiquiatria", de Fernando Freitas Paulo Amarante; e "Anatomia de uma epidemia", de Robert Whitaker.

Pacientes abusivos

É comum que pacientes com comportamentos abusivos e violentos, principalmente com filhos e familiares, muitas vezes se justifiquem, dizendo assim: "eu sou doente".

Creio então que seja importante não nos fiarmos numa distinção rígida entre pessoas doentes e pessoas saudáveis.

O psicólogo lida o tempo todo com pessoas, com as quais sente que na maioria das vezes é capaz de dialogar e realizar alguns acordos. É muito importante entender os limites de cada uma das pessoas em um determinado grupo, e saber como fazer alguns acordos que respeitem esses limites na medida do possível.

E é sempre também importante deixar claro que ninguém está acima da lei, da ética e dos outros. Quando alguém tenta justificar comportamentos abusivos e violentos com seu transtorno mental, e isso é aceito de forma passiva pelos outros, há uma possibilidade grande de que seus sintomas se intensifiquem.

Porque o problema não pode simplesmente se transformar em "tenho transtorno mental, logo posso fazer o que me der na telha, e todos terão de compreender e aceitar passivamente". Porque transtorno mental não é passe-livre para comportamento abusivo e violento.

Faz parte da maturidade a responsabilidade. As pessoas, independentemente de ter transtornos mentais ou não, têm de entender que elas são minimamente responsáveis pelo que fazem. Permitir que alguém não responda por nada é estimular mais transtorno mental. E uma vida sem qualquer tipo de responsabilidade é enlouquecedora.

Então deixo claro para meus pacientes que seus comportamentos possuem consequências morais, afetivas e legais. Um comportamento não deixa de ser eticamente errado ou maléfico a outras pessoas, porque foi cometido por alguém que está doente. Um homicídio é sempre um homicídio, e isso tem consequências legais, mesmo para pacientes com transtornos mentais. Tento sempre deixar claro que as consequências sempre existem, e que medidas de contenção ou de reclusão muitas vezes serão tomadas.

E é também importante saber que as pessoas se machucam com as coisas que falamos e fazemos, e que o amor não é infalível. Acreditar que podemos fazer qualquer coisa que nos dá na telha, e que o outro continuará sempre nos amando, apesar de tudo, de todas as merdas que fizermos, é algo que não diz respeito ao desenvolvimento da maturidade e de uma relação sólida e saudável com as pessoas. Isso não é o caminho para a saúde. É o contrário. Não é assim que se produz uma pessoa mentalmente sã. Não é assim que se gera saúde mental.

O caminho são as relações menos violentas e mais tolerantes e amistosas possíveis. Mas obrigações, cuidado, responsabilidade e compromisso com os outros são também fundamentais.

Trechos interessantes e talvez polêmicos do livro “Medicalização em Psiquiatria”, de Fernando Freitas e Paulo Amarante (Editora Fiocruz, 2015)

“Em 1996, o neurocientista Steven Hyman, que foi diretor do National Institute of Mental Health (NTMH) de 1996 até 2001, publicou um artigo no American Journal of Psychiatry (Hyman, 1996) que sintetiza tudo o que ele havia aprendido a respeito das drogas psiquiátricas. Os “antipsicóticos”, os antidepressivos e as demais drogas psiquiátricas funcionam criando perturbações nas funções dos neurotransmissores. A pessoa submetida à medicação psiquiátrica passa a ter o seu cérebro funcionando anormalmente.”
(...)

“De forma esquemática, os principais componentes do paradigma da ação dos “antipsicóticos” são:

- as medicações psicotrópicas “criam perturbações nas funções dos neurotransmissores”;

- em resposta, o cérebro promove séries de adaptações compensatórias a fim “de manter o seu equilíbrio frente às alterações no ambiente ou mudanças no meio interno”;

- a “administração crônica” das drogas então causa “alterações substanciais a longo prazo na função neural”;

- após algumas semanas, o cérebro passa a funcionar de maneira que é “qualitativa assim como quantitativamente diferente do estado normal” (Hyman, 1996: 151-161).

Há evidências científicas de que os resultados laboratoriais e clínicos são bastante distintos, tomando como referência o uso de “antipsicóticos” a curto e longo prazos.

Evidências laboratoriais:

- a curto prazo (em média, seis semanas), as drogas reduzem os sintomas-alvo de um transtorno melhor do que placebos;

- o que nos leva a considerar que, se um sujeito em surto psicótico apresenta melhoras quando faz uso de medicação antipsicótica, ele deve continuar a ser tratado com aquilo que lhe fez bem;

- o que parece ser confirmado: a longo prazo, existem evidências clínicas e laboratoriais de que quem deixa de tomar as drogas têm recaída em níveis mais elevados que aqueles que mantêm o uso.”
(...)

“Nessas pesquisas não se comparam indivíduos psicóticos que passaram a fazer uso de “antipsicóticos” com o grupo de indivíduos cujo curso natural do seu transtorno foi acompanhado sem uso de “antipsicóticos”. Eis aí uma diferença de metodologia de pesquisa que costuma ser negligenciada grosseiramente! Pela lógica da própria ciência esse problema metodológico deve suscitar questões importantes. Nesse caso, o risco sublinhado de recaída pode ser consequência justamente da alteração que o cérebro sofreu por causa da exposição à própria droga supostamente terapêutica.”
(...)

“Para tentar responder essas questões, é preciso antes de tudo conhecer as formas como esses casos eram conduzidos na época em que não existiam os “antipsicóticos”, para constrastar com a hipótese, hoje dominante, de serem eles a única maneira possível de lidar com a esquizofrenia. Diante disso, começaram a ser feitas investigações que acompanhavam o paciente por um longo período (estudos conhecidos como follow-up), comparando-se os que eram tratados com medição antipsicótica com os que não eram. Ao investigar as formas de tratamento que havia antes dos “antipsicóticos”, constatou-se que pacientes tratados com métodos psicossociais, mesmo nos casos de internação, tinham melhor recuperação, como veremos adiante.”
(...)

“Para avaliar a eficácia dos “antipsicóticos”, em 1967, portanto quase uma década após a administração da clorpromazina, foi realizado o primeiro estudo de follow-up, feito pelo próprio NIMH, que tinha como foco a avaliação da ação da droga a curto prazo em psicoses esquizofrênicas agudas. A pesquisa, que acompanhou um grupo de 299 pacientes psiquiátricos com alta (após serem tratados com “antipsicóticos”), avaliou o ajustamento do paciente na comunidade, os vários aspectos da história pré-mórbida e o seu ajuste comunitário subsequente. Resultados: os pacientes que haviam recebido tratamento placebo no estudo da droga tinham menos probabilidade de serem reospitalizados do que aqueles que haviam recebido um dos três “antipsicóticos” prescritos (Schooler, 1967)”
(...)

“Com relação ao tratamento com drogas, um gigantesco impasse começa a aparecer no cenário da assistência psiquiátrica. Por um lado, as boas razões: o tratamento psicofarmacológico de pacientes esquizofrênicos demonstrava ser uma política eficaz para a redução imediata de sintomas psicóticos, para aliviar a angústia dos pacientes, permitir a desospitalização e a sua permanência na comunidade; tal tratamento dava uma base racional e efetiva com a qual o médico tinha a impressão de poder induzir as mudanças desejadas em seu paciente no contexto do modelo médico. Por outro lado, eram muitos os problemas criados pela própria terapêutica psicofarmacológica. Frequentemente se passou a reconhecer o aparecimento de efeitos colaterais nocivos do tratamento dos esquizofrênicos com neurolépticos, como alterações anatômicas desagradáveis, estranhas alergias e discinesias tardias.

Entretanto, com o tempo passando, após a euforia inicial motivada pelos resultados imediatos da medicação, passou-se a verificar também a relação entre o tratamento medicamentoso e a indução ou reforço dos chamados sintomas negativos (por exemplo: isolamento social, depressão pós-psicótica e síndromes de perda motivacional). À atenção se volta, então, para os possíveis efeitos do uso das drogas a longo prazo sobre a modulação afetiva, a comunicação, a percepção ou outras funções do sistema nervoso central, assim como para os efeitos colaterais secundários, como o impacto no desenvolvimento de uma criança nos casos em que a sua mãe está sendo submetida a uma medicação pesada por um longo período.

O que acontece quando pacientes na fase aguda da esquizofrenia não são tratados com neurolépticos? Tomemos como referência para a nossa análise uma investigação realizada com pacientes em fase de crise psicótica, com ênfase no tratamento psicossocial e forte limitação do emprego de drogas (Carpenter ef al, 1977). Essa pesquisa examinou o rumo da esquizofrenia aguda de 49 pacientes do programa do NIMH que estavam em tratamento de natureza psicossocial preferencialmente sem uso de qualquer neuroléptico, comparando-o com os rumos tomados por 73 pacientes de outro grupo que receberam tratamento usual. Foi feito um estudo de follow-up de um ano para os pacientes do programa do NIMH e de dois anos para os pacientes do tratamento convencional.

Os resultados mostraram que o grupo de pacientes tratados pelo programa experimental do NIMH teve uma melhora de sua saúde superior ao grupo de pacientes tratados com terapêuticas de base medicamentosa. Em outras palavras, como os próprios autores afirmam, não apenas é possível que a crise psicótica seja tratada com abordagem psicossocial sem medicação, mas os resultados a longo prazo são superiores aos obtidos com pacientes que durante a sua crise foram tratados com neurolépticos. Concluindo: “De forma bastante inesperada, esses dados sugerem que as drogas psicotrópicas podem não ser indispensáveis. O seu uso estendido na atenção extra-hospitalar pode prolongar a dependência social de muitos pacientes com alta” (Carpenter et al, 1997: 801).

Outra investigação merece a nossa atenção. Será que existem esquizofrênicos para os quais as drogas sejam desnecessárias ou contraindicadas? Esse é o principal questionamento norteador da investigação de Rappaport e colaboradores (1978), que iremos detalhar a seguir.

Os resultados dessa pesquisa foram divididos em quatro grupos de acordo com medicação prescrita aleatoriamente, e os pacientes foram separados segundo os momentos em que foram observados, durante a hospitalização ou por três anos após a alta. Os pacientes do grupo que durante a hospitalização haviam recebido placebo e que durante os três anos não foram tratados com medicação antipsicótica tiveram resultados significativamente melhores que os demais. Trata-se de um grupo que apresentou a mais elevada melhora clínica e menos patologia durante o follow-up, pacientes com menos reospitalização e menos dificuldades na reinserção e reintegração social, se comparado a outros grupos.

Um follow-up de vinte anos:

Harrow e Thomas (2013) levaram a cabo um estudo de follow-up durante vinte anos, com características absolutamente inovadoras na literatura científica até então. Duas questões orientaram esse estudo: será que todos os pacientes com esquizofrenia necessitam de tratamento contínuo com “antipsicóticos” ao longo das suas vidas? O uso por longo tempo de “antipsicóticos” para pacientes com esquizofrenia reduz ou elimina os sintomas psicóticos?

A grande diferença desse estudo de follow-up para os inúmeros outros já feitos é que ele acompanhou durante vinte anos três subgrupos de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos (seguindo rigorosamente os mesmos critérios): um subgrupo de pacientes esquizofrênicos que fizeram uso contínuo de “antipsicóticos”, o outro de pessoas que fizeram uso intermitente de “antipsicóticos”, e finalmente o terceiro subgrupo formando por sujeitos diagnosticados como esquizofrênicos que nunca fizeram uso de “antipsicóticos”. A idade média dos pacientes quando receberam o diagnóstico de esquizofrenia era de 23 anos. Às variáveis investigadas foram rigorosamente as mesmas durante o estudo de acompanhamento, quer dizer, no 2º, 4,5º, 7,5º, 10º, 15º e 20º anos.

O resultado desse estudo é surpreendente: ao longo dos vinte anos, o subgrupo de pacientes que não tomaram “antipsicóticos “ou outras medicações psiquiátricas apresentou resultados de recuperação significativamente melhores que aqueles que tomaram “antipsicóticos” com ou sem outras drogas psiquiátricas. Para sermos mais precisos: no 4,5º ano, 86% dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ou outras drogas psiquiátricas apresentaram atividade psicótica, ao passo que apenas 23% dos sem medicação a apresentaram, no 10º ano, 79%versus 8%; no 15º ano, 71%versus 8%; e, finalmente, no 20º ano, 68%versus 8%.

Em termos de reospitalização, a diferença é igualmente enorme: no 4,5º ano, 54%dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ ou outras drogas psiquiátricas voltaram para o hospital, contra 13% dos que não tomaram qualquer medicação; no 10º ano, 57% daqueles com medicação versus 0% dos que não tomaram qualquer medicação psiquiátrica; no 15º ano, 43%contra 0%; e, finalmente, no estudo feito no 20º ano, 50%versus 18%.”

Referências:

CARPENTER, W. T. e& al. The treatment of acute schizophrenia without drugs. American Journal of Psychiatry, 134: 14-20, 1977.

HARROW, M. & THOMAS H. J. Does long-term treatment of schizophrenia with antipsychotic medications facilitate tecovery? Schizophrenia Bulletin, 39(5): 962-965, 2013.

HYMAN,S. Initiation and Adaptation: A paradigm for understanding psychotropic drug action. The American Journal of Psychiatry, 153: 151-161, 1996,

RAPPAPORT, M. et al. Are there shizophrenics for whom drugs may be unnecessary or contraindicated? International Pharmacopsychiatry, 13: 100-111, 1978.

SCHOOLER, C. One year after discharge. The American Journal of Psychiatry, 123: 986-995, 1967.

Comportamento de manada

Boa parte das pessoas, e muitas vezes a maioria delas, se comporta como idiotas, irracionais, simplesmente porque querem continuar fazendo parte de um determinado grupo. Não é o desejo pela verdade que, de modo predominante, governa o comportamento humano. É o desejo de ser aceito e amado. Se isso foi fundamental para nossa sobrevivência há alguns milhares de anos, está se mostrando agora como um dos principais fatores que poderão implicar em nossa extinção.

Todos somos vítimas

Ninguém pediu para nascer. Logo todo mundo é vítima do acaso de estar nesse mundo. Todos somos vítimas, todos fomos submetidos a uma série de circunstâncias que não escolhemos, e que produziram em nós uma série de problemas e dificuldades.

Culpa só existe em sentido moral e jurídico, para fins práticos, de organização social. Não em sentido existencial.

Wednesday, September 18, 2019

Obscurantismo em Psicologia Clínica

Não tenho a menor saudade da época em que eu mergulhava em textos obscuros, da tradição mais continental de pensamento europeu, e o quanto muitos desses textos obscuros iriam basear nosso trabalho de psicólogo clínico. Porque eram muitas angústias ao mesmo tempo com, obviamente, toda a questão da inexperiência profissional já embutida nessa conta de sofrimento.

Imagine: em um primeiro momento você tem de lidar com textos nos quais se afoga, sem muitas garantias de que esses autores são alguma referência sólida dentro de uma perspectiva mais acadêmica ou científica. 

Primeiro se arrebenta lendo e relendo várias vezes alguma coisa que parece não chegar a lugar algum, que pode muito bem ser obra de charlatanismo travestido de erudição, tendo sido comprado por milhares de acadêmicos mundo e história afora. Depois, em seu estágio, vai para o consultório atender alguém que está com problemas psicológicos sérios. Para posteriormente, muitas vezes, ser massacrado durante um processo de supervisão clínica, no qual seu supervisor puxa sua orelha várias vezes, sobre coisas das quais simplesmente não se entende do que ele está falando. E aí você conversa com outros colegas que acabaram de sair da supervisão, e todos estão se sentindo da mesma forma.

Não, não tenho a menor saudade disso, e fico compadecido quando vejo um estudante de psicologia profundamente angustiado com qualquer coisinha que falou para um paciente durante um atendimento, achando que aquilo irá fazer o mundo desabar. Tenho compaixão dos estudantes que estão presos nesse tipo de processo patológico, que abarca toda uma cultura do modo de atuação clínica em psicologia.

E se você, estudante de psicologia, está se percebendo em um cenário como esses, se puder, fuja para as colinas. Procure mudar seu cenário e supervisor de estágio, ou até mesmo a abordagem com a qual está trabalhando. Você está apaixonado por algumas coisas que são patológicas.

Tuesday, September 17, 2019

Fevereiro de 2017,

Ontem eu estava conversando com meu primo, Paulo Fernando Facioli Pestana, sobre alguns clássicos, algumas obras que são tidas como de grande valor para a literatura.

Mencionei a ele que tentei ler "Crime e Castigo" e "O idiota", de Dostoiévski, e que simplesmente não dei conta. Achei que tudo se desenrolava de maneira absurdamente lenta e simplesmente não tive tempo nem paciência para dar continuidade à leitura.

Ele, que já leu algumas obras de Dostoiévski e vários outros clássicos, concordou comigo quanto à dificuldade desse tipo de leitura. Fez inclusive uma analogia muito interessante com a leitura que teve de "Grande Sertão Veredas", de Guimarães Rosa.

Disse-me que no romance existe um local, no sertão, chamado Liso do Suçuarão, cuja travessia era literalmente infernal, pois se tratava do deserto absoluto do sertão, de uma espécie de deserto dentro do deserto, um buraco negro-seco que habita em algum canto de todos nós. Quando Paulo terminou de ler todo o livro se deu conta de que tinha feito a travessia do Liso do Suçuarão.

Depois me contou que tem uma amiga russa, com cerca de 70 anos de idade, e que perguntou a ela sobre a obra de Dostoiévski. Ela lhe disse que leu alguns livros de Dostoiévski, Tolstói e alguns outros clássicos russos, mas que achou todos eles chatos, cansativos e entediantes demais. Disse que somente tinha lido essas obras porque eram leitura obrigatória na escola.

Demos boas risadas com essas e outras ironias ontem, durante a tarde, assim como pudemos nos embrenhar em prosas sobre os espinhosos Lisos de Suçuarão que já atravessamos nessa vida.

Prosa boa, viajandona e fluida, meu primo. Parecia ficção científica...

“Crime e Castigo”, de Dostoiévsk

De 2018...

Estou terminando de ler “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. Para a época deve ter sido uma obra muito impactante. Tendo quase 600 páginas, o protagonista comete um duplo assassinato, deveras brutal, logo nas 100 primeiras páginas.

Há, de início, um efeito de sentido muito envolvente: um estudante de direito (alguém, à época, considerado como de uma classe social superior, refinada) que comete um duplo assassinato, marcado por uma violência crua, assustadora, com toda a sua motivação, nesse início, completamente imersa em mistério, o qual não se desfaz durante todo o restante do romance. Pois a intenção do autor é fazer com o que o leitor se aprofunde nos dilemas éticos envolvidos, ao ponto de não haver, por exemplo, uma explicação pronta, ou uma resolução definitiva, para os motivos do assassino, e se eles eram, em alguma medida, legítimos.

Está aí o grande mérito da obra: a exploração de todos esses níveis de hesitação acerca do que de fato ocorreu ou do que as coisas são, pois a provável insanidade do protagonista também permite que pensemos constantemente na possibilidade de não ter sido ele o assassino. Porém tudo isso caberia tranquilamente em uma narrativa bem mais breve. Tudo isso caberia em um livro com cerca de 300 páginas. Ou seja: metade da quantidade existente nessa obra.

Esse livro foi publicado em 1866, e muito rapidamente se transformou em um grande sucesso. Dostoiévski já era um escritor muito conhecido. Como sabemos, suas obras foram traduzidas para cerca de 170 línguas. Se hoje Dostoiévski é considerado um clássico, àquela época era considerado um best-seller. Dostoiévski era pop. Não era muito diferente do impacto que hoje uma série como Game of Thrones causa em muitas pessoas. Há tanto em uma obra quanto na outra, apesar de toda a discrepância temporal e de gênero, violência impactante e uma trama intricada, a qual deve fazer com que leitores e expectadores sejam provocados com algumas reflexões fundamentais sobre a vida e a interação entre os seres humanos.

Contudo devo confessar que estou um pouco frustrado, porque esperava mais de Dostoiévski. Durante muitos anos ouvi falar que havia nessa obra, ou em outras obras dele, tramas extremamente profundas e um nível inusitado de reflexões sobre ética e o caráter psicológico dos personagens. Cheguei a acreditar que Dostoiévski me surpreenderia, assim como Freud já me surpreendeu por muitas vezes. Por mais que existam críticas sobre as teorizações freudianas, acho difícil não ocorrer surpresa ou encantamento com muitas de suas reflexões, assim como também já me ocorreu enquanto lia, por exemplo, Nietzsche.

Dessa leitura de “Crime e Castigo” posso dizer que tive alguns lampejos de surpresa, os quais não me foram assim tão surpreendentes, pois tratam de questões já comumente abordadas por diversos autores proeminentes, sejam eles clássicos ou não.

E há algumas coisas que não me agradaram na leitura que estou tendo de Dostoiévski, faltando menos de 20 páginas para finalizar o livro. Achei-o bastante prolixo e cansativo. Sua narrativa se perde em uma série de detalhes que me parecem completamente irrelevantes.

Houve diversas ocasiões nas quais eu sentia que ele estava simplesmente enrolando, para segurar o leitor e dar volume ao texto, exatamente como as telenovelas fazem hoje em dia conosco. As telenovelas nos amarram em sua trama, pois há a pretensão de que lhes prestemos fidelidade diária, como em um vício que não se sacia enquanto não chegar ao final. E esse final obviamente sempre irá o tempo todo se adiar. Assim, desse modo, a trama vai se enovelando e temos aí então uma novela, um romance (que no inglês se escreve “novel”).

Sei perfeitamente da possibilidade de vir a alterar essa minha impressão com a leitura de algumas outras de suas obras. Contudo não sei se terei paciência para tal.

Para finalizar, transcrevo aqui trechos do que dois outros escritores russos já escreveram sobre sua obra, os quais fazem todo sentido para mim, após a leitura de “Crime e Castigo”:

"Dostoyevsky's lack of taste, his monotonous dealings with people suffering from pre-Freudian neuroses, his way of wallowing in the tragic misadventures of human dignity - all this is difficult to admire. I do not like this trick his characters have of 'sinning their way to Jesus' or, as Bunin put it more bluntly, 'spilling Jesus all over the place'." (Vladimir Nabokov)

"When a person is in love, his heart beats fast; when he is angry, his face goes red, etc. These are all truisms. With Dostoyevsky, everything is the other way round. For example, a man sees a lion. What does he do? Naturally, he will go pale and try to flee or hide. In any simple story, by Jules Verne, say, this is exactly what would happen. Whereas Dostoyevsky would write the opposite: the man went red in the face and remained where he was. It would be an inverse truism... And then, on every other page Dostoyevsky's characters are either delirious, raving, or in a fever. But 'life is not like that'." (Ivan Turgenev)

A dualidade biologia/cultura, em Harari

Alguns trechos de "Sapiens", de Yuval Harari, os quais tocam especificamente na dualidade biologia/cultura e que o autor parece pender mais para a relevância das determinações socioculturais. Interessante:

"A maioria dos mamíferos sai do útero como cerâmica vidrada saindo de um forno – qualquer tentativa de moldá-los novamente apenas irá rachá-los ou quebrá-los. Os humanos saem do útero como vidro derretido saindo de uma fornalha. Podem ser retorcidos, esticados emoldados com surpreendente liberdade. É por isso que hoje podemos educar nossos filhos para serem cristãos ou budistas, capitalistas ou socialistas, belicosos ou pacifistas."

"Em consequência, a fim de entender como os sapiens se comportam,devemos descrever a evolução histórica de suas ações. Considerar apenas nossos limites biológicos seria como um locutor esportivo que, ao transmitir uma partida da Copa do Mundo, oferecesse aos ouvintes uma descrição detalhada do campo, em vez de relatar o que os jogadores estão fazendo."

"Os debates acalorados sobre o “estilo de vida natural” do Homo sapiens perdem de vista a questão principal. Desde a Revolução Cognitiva, não existe um único estilo de vida natural para os sapiens. Há apenas escolhas culturais, dentro de um conjunto assombroso de possibilidades."

O texto envolvente de Harari

Yuval Harari não produziu nenhum conhecimento novo com seus livros. Mas escreve muito bem, e consegue começar um livro de modo muito impactante. É uma leitura envolvente, que flui. Estou ainda bem no início de "Homo Deus":

"Cenas semelhantes ocorriam por toda a França. Temperaturas ruins haviam arruinado as colheitas em todo o reino nos dois anos anteriores, de modo que, na primavera de 1694, os celeiros estavam completamente vazios. Os ricos cobravam preços exorbitantes por qualquer alimento que conseguissem acumular, e os pobres morriam em massa. Aproximadamente 2,8 milhões de franceses — 15% da população — morreram de fome entre 1692 e 1694, enquanto o Rei Sol, Luís XIV, flertava com sua amante em Versalhes. No ano seguinte, 1695, a fome assolou a Estônia e matou um quinto da população. Em 1696 foi a vez da Finlândia, onde entre um quarto e um terço da população morreu. A Escócia sofreu sob uma fome rigorosa entre 1695 e 1698, e alguns distritos perderam até 20% de seus habitantes."

Yuval Harari, meio Black Mirror, em Homo Deus

"Sally Adee, uma jornalista da New Scientist, teve permissão para visitar uma instalação de treinamento de atiradores de elite e verificar os efeitos em si mesma. Primeiro, ela entrou em um simulador de campo de batalha sem usar o capacete transcraniano. Sally descreve como o medo a invadiu quando viu vinte homens mascarados usando cinturões com bombas suicidas e armados com fuzis avançando em sua direção.

“Para cada um que consigo matar com um tiro”, escreve Sally, “mais três atacantes aparecem do nada. Certamente não estou atirando com rapidez suficiente, e o pânico e a incompetência fazem com que eu trave minha arma continuamente.” Felizmente para ela, os atacantes eram apenas imagens de vídeo, projetadas em gigantescas telas em torno dela. Ainda assim, ela ficou tão desapontada com seu fraco desempenho que preferiu largar o fuzil e sair do simulador.

Depois disso, Sally foi conectada ao capacete. Ela relata que não sentiu nada fora do comum, exceto um leve formigamento e um estranho gosto metálico na boca. Mas começou a acertar os terroristas um por um, fria e metodicamente, como se fosse Rambo ou Clint Eastwood.

“Quando vinte deles correram para mim brandindo suas armas, eu calmamente apontei meu fuzil, fiz uma pausa para respirar profundamente e acertei o que estava mais próximo, antes de apontar para o alvo seguinte com tranquilidade. Não senti o tempo passar e de repente ouvi uma voz dizendo: ‘Bem, acabou’. As luzes se acenderam no simulador…

Naquele súbito silêncio entre os corpos que me cercavam, eu estava à espera de mais atacantes, e fico um pouco desapontada quando a equipe começa a remover meus eletrodos. Olho para cima e me pergunto se alguém adiantou o relógio. Inexplicavelmente, haviam se passado vinte minutos. ‘Quantos eu peguei?’, pergunto à assistente. Ela olha para mim zombeteiramente. ‘Todos eles.’”

O experimento mudou a vida de Sally. Nos dias seguintes ela se deu conta de que tinha passado por uma “experiência quase espiritual… o que definia a experiência não era ter se sentido mais esperta ou ter aprendido mais depressa: o que fez o chão sumir foi que, pela primeira vez na minha vida, tudo o que havia na minha cabeça finalmente silenciou… Meu cérebro livre de inseguranças e dúvidas foi uma revelação. De repente houve aquele silêncio incrível… Espero que você consiga me entender quando eu lhe disser que o que eu mais quis nas semanas seguintes à minha experiência foi voltar para lá e conectar-me àqueles eletrodos.""

(...)

"Em 2016, os estimuladores transcranianos ainda estão nos primórdios, e não está claro se e quando irão tornar-se uma tecnologia amadurecida. Até o momento eles incrementam aptidões por breves períodos, e os vinte minutos de experiência de Sally Adee podem ser considerados excepcionais (talvez até mesmo o resultado do famoso efeito placebo). A maioria dos estudos publicados sobre estimuladores transcranianos baseia-se em amostras muito pequenas de pessoas que os operam em circunstâncias especiais, e os efeitos e riscos de longo prazo são totalmente desconhecidos. No entanto, se a tecnologia amadurecer, ou se for descoberto algum outro método de manipulação dos padrões elétricos do cérebro, como isso vai afetar as sociedades humanas e os seres humanos?

As pessoas poderiam muito bem manipular seus circuitos elétricos cerebrais não só para atirar em terroristas, mas também para alcançar objetivos mais mundanos e liberais, como estudar e trabalhar com mais eficácia, aproveitar jogos e hobbies e ser capaz de se concentrar no que interessa em cada momento, seja matemática ou futebol. Contudo, se e quando essa manipulação se tornar rotineira, o suposto livre-arbítrio pode tornar-se só mais um produto que se pode comprar. Você quer dominar o piano, mas toda vez que chega a hora de praticar você quer na verdade assistir televisão? Sem problema: apenas ponha o capacete, instale o software adequado, e logo estará doido para tocar piano."

Yuval Harari em um trecho meio comunista, em "Sapiens"

"A maioria das pessoas afirma que sua hierarquia social é natural e justa, enquanto as de outras sociedades são baseadas em critérios falsos e ridículos. Os ocidentais modernos são ensinados a desprezar a ideia de hierarquia racial. Eles ficam chocados com as leis que proíbem os negros de viver em bairros de brancos, ou estudar em escolas de brancos, ou ser tratados em hospitais de brancos. Mas a hierarquia de ricos e pobres, que autoriza os ricos a viver em bairros distintos e mais luxuosos, estudar em escolas distintas e de mais prestígio e receber tratamento médico em instalações distintas e bem equipadas, parece perfeitamente sensata para muitos norte-americanos e europeus. Mas é um fato comprovado que a maior parte dos ricos são ricos pelo simples motivo de terem nascido em uma família rica, enquanto a maior parte dos pobres continuarão pobres no decorrer da vida simplesmente por terem nascido em uma família pobre."

Harari: sobre nossa dieta e nossa relação com os animais

Abaixo, em “Sapiens”, de Yuval Harari, uma amostra de como é predominantemente nossa relação com os animais dos quais nos alimentamos:

“Infelizmente, a perspectiva evolutiva é um parâmetro de sucesso relativo. Julga tudo segundo os critérios de sobrevivência e reprodução, sem considerar o sofrimento e a felicidade individuais. As galinhas e as vacas domesticadas podem ser uma história de sucesso evolutivo, mas também estão entre as criaturas mais miseráveis que já existiram. A domesticação de animais se baseou em uma série de práticas brutais que só se tornaram cada vez mais cruéis com o passar dos séculos.

A expectativa de vida natural de galinhas selvagens é de 7 a 12 anos, e de bovinos é de 20 a 25 anos. Na natureza, a maioria das galinhas e das vacas morria muito antes disso, mas ainda tinha uma boa chance de viver por um número respeitável de anos. Já a grande maioria das galinhas e vacas domesticadas é abatida com algumas semanas ou no máximo alguns meses de vida, porque essa sempre foi a idade ideal para abatê-las de uma perspectiva econômica. (Por que continuar alimentando um galo por três anos se ele já chegou a seu peso máximo depois de três meses?)

Galinhas chocadeiras, vacas leiteiras e animais de carga às vezes têm a chance de viver por muitos anos. Mas o preço é a sujeição a um estilo de vida completamente alheio a suas necessidades e desejos. É razoável supor, por exemplo, que os bois preferem passar seus dias vagando por pradarias abertas na companhia de outros bois e vacas do que puxando carroças e arados sob o jugo de um primata com chicote.

A fim de transformar bois, cavalos, jumentos e camelos em animais de carga obedientes, seus instintos naturais e laços sociais tiveram de ser destruídos, sua agressão e sexualidade, contidas e sua liberdade de movimento, restringida. Os criadores desenvolveram técnicas como trancar animais em jaulas e currais, contê-los com rédeas e arreios, treiná-los com chicotes e aguilhadas e mutilá-los. O processo de domesticar quase sempre envolve a castração dos machos. Isso restringe sua agressividade e permite que os humanos controlem seletivamente a procriação do rebanho.

Em muitas sociedades da Nova Guiné, a riqueza de uma pessoa é tradicionalmente determinada pelo número de porcos que ela possui. Para garantir que os porcos não fujam, os criadores no norte da Nova Guiné cortam um pedaço do focinho do animal. Isso causa dor intensa sempre que o porco tenta cheirar. Como os porcos não conseguem encontrar comida ou mesmo se orientar no espaço sem cheirar, essa mutilação os torna completamente dependentes de seus proprietários humanos. Em outra região da Nova Guiné, é costume arrancar os olhos dos porcos, para que eles não possam nem mesmo ver para onde estão indo.

A indústria de laticínios tem suas próprias maneiras de forçar os animais a fazerem sua vontade. Vacas, cabras e ovelhas produzem leite só depois de parir bezerros, cabritos e cordeiros e apenas enquanto seus filhotes mamam. Para ter uma oferta contínua de leite animal, um fazendeiro precisa ter bezerros, cabritos ou cordeiros para amamentar, mas deve impedi-los de monopolizar o leite. Um método comum ao longo da história foi simplesmente abater os filhotes logo após o nascimento, extrair todo o leite da mãe e então fazer que ela fique prenha novamente. Essa é, ainda hoje, uma técnica muito usual.

Em várias fazendas de laticínios modernas, uma vaca leiteira vive cerca de cinco anos antes de ser abatida. Durante esses cinco anos, ela está prenha constantemente e é fertilizada entre 60 e 120 dias depois de parir, a fim de preservar a máxima produção de leite. Seus bezerros são separados dela logo após o nascimento. As fêmeas são criadas para se tornar a próxima geração de vacas leiteiras, ao passo que os machos são entregues aos cuidados da indústria da carne.

Outro método é manter os bezerros e os cabritos perto da mãe, mas evitar, por meio de vários estratagemas, que eles suguem muito leite. A maneira mais simples de fazer isso é permitir que o filhote comece a mamar, mas afastá-lo assim que o leite começa a fluir. Esse método geralmente encontra resistência do filhote e da mãe. Algumas tribos de pastores costumavam matar o filhote, comer sua carne e empalhá-lo. O filhote empalhado era então presenteado à mãe para que sua presença encorajasse a produção de leite. A tribo dos núeres, no Sudão, chegava ao ponto de espalhar urina da mãe nos animais empalhados, para que tivessem um odor vivo e familiar.

Outra técnica dos núeres era atar uma coroa de espinhos ao redor da boca do bezerro, para que ele furasse a mãe e fizesse com que ela resistisse à amamentação. Os tuaregues, povo criador de camelos no deserto do Saara, costumavam perfurar ou cortar partes do focinho e do lábio superior de filhotes de camelo para tornar a alimentação dolorosa, evitando, assim, que consumissem muito leite.

Um bezerro em uma fazenda industrial. Imediatamente após o nascimento, o bezerro é separado da mãe e trancado em uma jaula minúscula, não muito maior do que seu próprio corpo. Lá, o bezerro passa o resto da vida – em média, cerca de quatro meses. Nunca sai da jaula, nem pode brincar com outros bezerros ou mesmo caminhar, de modo que seus músculos não se desenvolvem. Músculos fracos significam uma carne macia e suculenta. A primeira vez que o bezerro tem uma chance de caminhar, esticar os músculos e tocar outros bezerros é a caminho do matadouro. Em termos evolutivos, o boi representa uma das espécies de animal mais prósperas que já existiram. Ao mesmo tempo, está entre os animais mais sofridos do planeta.”

Sobre eventos inesperados da história, em "Sapiens", de Yuval Harari:

"É uma regra implacável da história que o que parece inevitável em retrospectiva está longe de ter sido óbvio na época. Hoje não é diferente. Saímos da crise econômica global ou o pior ainda está por vir? A China continuará crescendo até se tornar a principal superpotência? Os Estados Unidos perderão sua hegemonia? O aumento do fundamentalismo monoteísta é a onda do futuro ou um redemoinho local de pouca importância no longo prazo? Estamos caminhando para um desastre ecológico ou para um paraíso tecnológico? Bons argumentos podem ser apresentados para corroborar qualquer um desses desfechos, mas não há como saber com certeza. Em algumas décadas, as pessoas vão olhar para trás e pensar que as respostas para todas essas perguntas eram óbvias.

É particularmente importante enfatizar que possibilidades que parecem muito improváveis para os contemporâneos muitas vezes se concretizam. Quando Constantino assumiu o trono, em 306, o cristianismo não passava de uma seita oriental esotérica. Se alguém sugerisse que ele viria a ser a religião oficial de Roma, seria expulso da sala às gargalhadas, da mesma forma que aconteceria hoje com alguém que sugerisse que, por volta de 2050, Hare Krishna será a religião oficial dos Estados Unidos. Em outubro de 1913, os bolcheviques eram uma pequena facção radical russa. Nenhuma pessoa racional teria previsto que, em apenas quatro anos, eles dominariam o país. Em 600, a noção de que um bando de árabes que habitavam o deserto logo conquistaria uma extensa faixa do oceano Atlântico até a Índia era ainda mais absurda. De fato, se o exército bizantino tivesse conseguido evitar o ataque inicial, o islamismo provavelmente continuaria sendo um culto obscuro, conhecido apenas por um punhado de iniciados. Os estudiosos teriam, então, a tarefa muito fácil de explicar por que uma fé baseada em uma revelação feita a um mercador de meia-idade de Meca nunca poderia ir para a frente.

Isso não quer dizer que tudo é possível. Forças geográficas, biológicas e econômicas criam restrições. Mas, ainda assim, essas restrições deixam muito espaço para desdobramentos inesperados, que não parecem ter ligação com qualquer lei determinista."

Harari: sobre a qualidade de vida durante a história

É comum, inclusive por alguns pesquisadores, a afirmação de que a qualidade de vida da humanidade nunca foi tão alta como atualmente. Sinto, porém, que talvez esse tema ainda seja alvo de algumas controvérsias, inclusive no meio científico. E claro que tudo isso deve ser contemplado sem idealizações, porque há também o lado sombrio, cruel e violento da vida do homem paleolítico, o qual também deve-se levar em conta. Então, vejam só o que diz Yuval Harari, em Sapiens:

“Enquanto as pessoas nas sociedades afluentes de hoje trabalham, em média, de 40 a 45 horas por semana, e as pessoas nos países em desenvolvimento trabalham 60 ou mesmo 80 horas por semana, os caçadores-coletores que hoje vivem nos habitats mais inóspitos – como o deserto de Kalahari – trabalham, em média, apenas 35-45 horas por semana. Eles caçam apenas uma vez a cada três dias, e a coleta leva não mais do que de três a seis horas diárias. Em épocas normais, isso é suficiente para alimentar o bando. É bem possível que os antigos caçadores-coletores vivendo em zonas mais férteis do que o Kalahari gastassem ainda menos tempo obtendo alimento e matérias-primas. Além disso, eles tinham uma carga mais leve de tarefas domésticas: não tinham pratos para lavar, tapetes para limpar, pisos para polir, fraldas para trocar ou contas para pagar.

A economia dos caçadores-coletores proporcionava à maioria dos indivíduos vidas mais interessantes do que a agricultura ou a indústria. Atualmente, um operário chinês sai de casa por volta das sete da manhã e atravessa ruas poluídas rumo a uma fábrica com condições precárias de trabalho, onde opera a mesma máquina, da mesma maneira, dia após dia, durante dez longas horas, voltando para casa por volta das sete da noite para lavar a louça e a roupa. Há 30 mil anos, um caçador-coletor chinês possivelmente saía do acampamento com seus companheiros às oito da manhã. Eles perambulavam pelas florestas e savanas das redondezas, colhendo cogumelos, desenterrando raízes comestíveis, capturando rãs e às vezes fugindo de tigres. No começo da tarde, estavam de volta ao acampamento para almoçar. Isso lhes deixava tempo suficiente para fofocar, contar histórias, brincar com os filhos ou simplesmente descansar na companhia uns dos outros. É claro que às vezes alguém era pego por um tigre, ou picado por uma cobra, mas por outro lado eles não precisavam lidar com acidentes de automóvel ou poluição industrial.

Em quase todos os lugares e em quase todas as épocas, a atividade caçadora-coletora fornecia a nutrição ideal. Isso dificilmente surpreende – essa foi a dieta humana durante centenas de milhares de anos, e o corpo humano estava bem adaptado a ela. Evidências de esqueletos fossilizados indicam que os antigos caçadores-coletores tinham menos tendência a passar fome ou sofrer desnutrição e em geral eram mais altos e mais saudáveis do que seus descendentes camponeses. Ao que parece, a expectativa de vida era de apenas 30 a 40 anos, mas isso se devia, em grande parte, à incidência elevada de mortalidade infantil. As crianças que sobreviviam aos perigosos primeiros anos tinham boas chances de chegar aos 60, e algumas chegavam aos 80. Entre os caçadores-coletores modernos, as mulheres de 45 anos podem esperar viver outros 20, e cerca de 5 a 8% da população tem mais de 60 anos.

O segredo do sucesso dos caçadores-coletores, que os protegia da fome e da desnutrição, era sua dieta variada. Os agricultores tendem a ingerir uma dieta muito limitada e desequilibrada. Especialmente nos tempos pré-modernos, a maior parte das calorias que alimentam uma população agrícola vinha de uma única colheita – como trigo, batata ou arroz – que carece de algumas das vitaminas, sais minerais e outros nutrientes de que os humanos necessitam. Já os antigos caçadores-coletores comiam regularmente dezenas de alimentos distintos. O camponês chinês típico comia arroz no café da manhã, arroz no almoço e arroz no jantar. Se tivesse sorte, podia esperar comer o mesmo no dia seguinte. Diferentemente, os antigos caçadores-coletores comiam dúzias de tipos diferentes de comida. Ancestral do camponês, o caçador-coletor talvez comesse bagas e cogumelos no café da manhã; algumas frutas e tartaruga no almoço; e carne de coelho com cebola selvagem no jantar. É bem provável que o menu do dia seguinte fosse completamente diferente. Essa variedade garantia que os antigos caçadores-coletores recebessem todos os nutrientes necessários.

Além disso, ao não depender de um único tipo de comida, eles eram menos propensos a sofrer na ausência de uma fonte específica de alimento. As sociedades agrícolas são arruinadas pela fome quando uma seca, um incêndio ou um terremoto devastam a colheita anual de arroz ou de batata. As sociedades caçadoras-coletoras não estavam imunes a desastres naturais e sofriam períodos de fome e privação, mas em geral eram capazes de lidar com tais calamidades mais facilmente. Se perdiam alguns de seus alimentos essenciais, podiam coletar ou caçar outras espécies, ou migrar para uma área menos afetada.

Os antigos caçadores-coletores também eram menos afetados por doenças infecciosas. A maioria das doenças infecciosas que acometeram as sociedades agrícolas e industriais (como varíola, sarampo e tuberculose) se originou em animais domésticos e passou para os humanos somente após a Revolução Industrial. Os antigos caçadores-coletores, que domesticaram apenas cachorros, estavam livres desses males. Além disso, a maioria das pessoas nas sociedades agrícolas e industriais vivia em assentamentos permanentes que eram populosos e pouco higiênicos – uma incubadora ideal para doenças. Os antigos caçadores-coletores percorriam a terra em pequenos bandos, o que não alimentava epidemias.

A dieta completa e variada, a semana de trabalho relativamente curta e a raridade de doenças infecciosas levaram muitos especialistas a definir as sociedades caçadoras-coletoras pré-agrícolas como “as sociedades afluentes originais”. Seria um erro, no entanto, idealizar a vida desses povos antigos. Embora eles tivessem uma vida melhor do que a maioria das pessoas nas sociedades agrícolas e industriais, seu mundo ainda podia ser cruel e implacável. Períodos de dificuldade e privação não eram raros, a mortalidade infantil era alta e um acidente que hoje seria pouco significativo podia facilmente se tornar uma sentença de morte. A maioria das pessoas provavelmente desfrutava da intimidade do bando, mas os desafortunados que eram alvo de hostilidade ou de zombaria dos colegas de bando decerto padeciam terrivelmente. Os caçadores-coletores modernos ocasionalmente abandonam e até matam pessoas idosas ou deficientes que não conseguem acompanhar o bando. Bebês e crianças indesejados podem ser assassinados, e há inclusive casos de religiosidade inspirados em sacrifício humano.”

Harari e o sofrimento durante a história

Yuval Harari, em "Sapiens", sobre a quantidade de sofrimento no mundo no decorrer da história:

"Há 70 mil anos o Homo sapiens ainda era um animal insignificante, cuidando da
sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios seguintes, ele setransformou no senhor de todo o planeta e no terror do ecossistema. Hoje, estáprestes a se tornar um deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna comotambém as capacidades divinas de criação e destruição.

Infelizmente, até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucascoisas das quais podemos nos orgulhar. Nós dominamos o meio à nossa volta,aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos impériose criamos grandes redes de comércio. Mas diminuímos a quantidade de
sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos gigantescos na capacidade
humana não necessariamente melhoraram o bem-estar dos sapiens comoindivíduos e geralmente causaram enorme sofrimento a outros animais."

Harari e os mitos

Na obra "Sapiens", de Yuval Harari, confesso que fiquei um pouco incomodado em como ele tratou da questão dos mitos. Ele somente fala em ficções, em coisas que não existem, e se esquece de falar do poder das narrativas, do contrato social, das promessas entre as pessoas e de uma série de lastros objetivos que são necessários para dar consistência a essas regras contratos e promessas. Por sorte fala um pouquinho do poder do jogo... Sim, ele escreve muitíssimo bem. É bastante acessível, e a leitura é muito fluida e prazerosa.

Harari, sobre o papel da família e da comunidade

O que gosto muito no livro "Sapiens", de Yuval Harari é a parte sobre o colapso do papel da família e da comunidade na modernidade e a relação disso com a infelicidade em nossos tempos:

"Família e comunidade parecem ter mais impacto na nossa felicidade do que dinheiro e saúde. Pessoas com famílias coesas que vivem em comunidades unidas que lhes dão apoio são significativamente mais felizes do que pessoas cujas famílias são disfuncionais e que nunca encontraram (ou nunca buscaram) uma comunidade da qual fazer parte. O casamento é particularmente importante. Repetidos estudos descobriram que há uma relação muito direta entre bons casamentos e nível elevado de bem-estar subjetivo e entre maus casamentos e sofrimento. Isso é verdade independentemente de condições econômicas ou mesmo físicas. Um inválido sem recursos cercado por uma esposa amorosa, uma família dedicada e uma comunidade afetuosa pode se sentir melhor do que um bilionário alienado, contanto que a pobreza do inválido não seja extrema e que sua doença não seja degenerativa nem dolorosa.

Isso levanta a possibilidade de que a melhoria gigantesca nas condições materiais dos últimos dois séculos tenha sido compensada pelo colapso da família e da comunidade. As pessoas no mundo desenvolvido contam com o Estado e o mercado para quase tudo de que necessitam: alimento, abrigo, educação, saúde, segurança. Desse modo, tornou-se possível sobreviver sem ter uma família estendida ou amigos reais. Um indivíduo que mora em uma cobertura urbana é cercado por milhares de pessoas onde quer que vá, mas possivelmente jamais visitou o apartamento vizinho e sabe muito pouco sobre seus colegas de trabalho. Até mesmo seus amigos talvez sejam apenas companheiros de bar. Hoje, muitas amizades envolvem pouco mais do que conversar e se divertir juntos. Encontramos um amigo em um bar, telefonamos para ele ou lhe enviamos um e-mail para aliviar nossa raiva sobre o que aconteceu hoje no escritório ou compartilhar nossas opiniões sobre o último escândalo político. Mas até que ponto podemos conhecer bem uma pessoa somente com base em conversas?

Diferentemente de tais companheiros de bar, os amigos na Idade da Pedra dependiam uns dos outros para sua própria sobrevivência. Os humanos viviam em comunidades solidárias, e os amigos eram pessoas com quem se caçava mamutes. Juntos, sobreviviam a longas jornadas e a invernos rigorosos. Cuidavam um do outro quando um deles ficava doente, e compartilhavam a última porção de comida em épocas de necessidade. Tais amigos conheciam uns aos outros mais intimamente do que muitos casais de nossos dias. Quantos maridos podem dizer que sabem qual será o comportamento da esposa se eles forem atacados por um mamute enfurecido? Substituir tais redes tribais precárias pela segurança das economias e dos Estados paternalistas modernos obviamente tem vantagens enormes, mas é provável que a qualidade e a profundidade das relações íntimas tenha sido afetada."

Einstein antes e depois da fama

Einstein soube aproveitar bastante da fama e da mística que criaram em torno de sua pessoa. Antes de se tornar um pop star era tido como uma pessoa trivial, no sentido do humor e da graça. Não há registro, inclusive de seus familiares, de que ele fosse alguém muito engraçado ou algo similar. Porém, depois que se tornou muito famoso, um pop star, o que não faltam são histórias muito engraçadas e fofas sobre coisas que ele falou ou fez. A fama parece ter feito muito bem a ele, para a saúde dele, e parece que até mesmo para ele como pessoa.

Einstein, com 22 anos

Einstein, com 22 anos:

"Nesse meio-tempo, em novembro de 1901, Einstein submeteu uma tentativa de tese de doutorado ao professor Alfred Kleiner, na Universidade de Zurique. A tese não sobreviveu, mas Maric disse a uma amiga que “ela trata das forças moleculares nos gases, usando diversos fenómenos conhecidos”. Einstein estava confiante. “Ele não ousaria rejeitar minha tese”, disse a respeito de Kleiner, “caso contrário, esse sujeito míope será de pouca utilidade para mim.”

Em dezembro, Kleiner nem sequer havia respondido, e Einstein começou a temer que a “frágil dignidade” do professor poderia levá-lo a se sentir constrangido por aceitar uma tese que denegria o trabalho de mestres como Drude e Boltzmann. “Se ele ousar recusar minha tese, divulgarei sua rejeição juntamente com meu artigo e farei dele um tolo”, disse Einstein. “Mas, se a aceitar, veremos o que nosso velho amigo Herr Drude tem a dizer.”"

Isaacson, W. (2007). Einstein: sua vida, seu universo. Companhia das Letras, São Paulo.

Um MBL da vida quis certa vez encher a paciência de Einstein

Um MBL da vida quis certa vez encher a paciência de Einstein:

"Enquanto Einstein se preparava para a terceira visita ao Caltech, em dezembro de 1932, teve de suportar mais uma indignidade. As manchetes sobre seu futuro cargo em Princeton haviam despertado a indignação da Corporação da Mulher Patriota, grupo antes poderoso mas agora de pouca importância formado por mulheres americanas que se autoproclamavam guardiãs contra os socialistas, pacifistas, comunistas, feministas e estrangeiros indesejáveis. Embora Einstein se enquadrasse apenas nas duas primeiras categorias, as mulheres patriotas tinham certeza de que ele se encaixava em todas elas, com a possível exceção de “feministas”.

A líder do grupo, sra. Randolph Frothingham (cujo sobrenome aristocrático, em vista desse contexto, parecia ter saído da imaginação de Charles Dickens), apresentou um memorando datilografado de dezesseis páginas ao Departamento de Estado americano detalhando razões para “que se negasse a concessão de um visto no passaporte do professor Einstein”. Tratava-se de um pacifista militante e de um comunista, e as doutrinas que ele defendia “permitiriam que a anarquia se infiltrasse sem problemas”, acusava o memorando. “Nem mesmo o próprio Stálin é membro de tantos grupos internacionais anarco-comunistas dedicados a promover essa ‘condição preliminar’ da revolução mundial e por fim a anarquia total como Albert Einstein.”"

(Em: "Einstein: sua vida, seu universo", de Walter Isaacson, 2007)

Einstein: relatividade e relativismo

Einstein ficava bastante escandalizado com a confusão de relatividade com relativismo, ao ponto de querer trocar o nome de sua teoria para a teoria da invariância.

Então, sempre que ouvir alguém fazendo alguma comparação da teoria da relatividade com algum tipo de relativismo, de que "tudo é relativo", de que a "moral é relativa", fuja para as colinas, porque não tem nada a ver uma coisa com a outra. Einstein, inclusive, não era um relativista moral. Pelo contrário...

Outro ponto que me chamou a atenção na leitura de sua biografia é que em 1921, quando ele chegou aos Estados Unidos, ficou bastante impressionado com a quantidade de pessoas, que não fazia parte do meio científico, com interesse em suas teorias, com um interesse efusivo e meio destrambelhado em ciência.

Então, em uma coletiva de imprensa, lhe fizeram essa pergunta, do que ele estava achando de todo esse interesse que as pessoas estavam manifestando, e do tratamento que ele estava tendo, porque ele estava sendo tratado como um pop star. Einstein respondeu que achava de fato esse fenômeno bastante interessante, que parecia algo "psicopatológico".

Einstein acreditava em Deus?

Como Einstein volta e meia falava em Deus, dizendo o que esse fez ou deixou de fazer, muitas pessoas afirmam que ele acreditava em Deus. Mas não é bem assim.

Einstein era um deísta. Não era teísta, como a maioria dos crentes. E também aceitava que fosse classificado como um agnóstico. Não acreditava em um Deus pessoal, que tivesse qualquer tipo de influência intencional sobre a vida humana. Para Einstein o ser humano não significava absolutamente coisa alguma para Deus. Confiram alguns trechos sobre o tema, na biografia de Einstein, escrita por Walter Isaacson (2007):

“O herói intelectual decisivo da Academia Olímpia foi Baruch Espinosa (1632-77), o filósofo judeu de Amsterdã. Sua influência foi primeiramente religiosa: Einstein aceitou seu conceito de um Deus amorfo refletido na beleza e na racionalidade comovente, bem como na unidade das leis da natureza. Mas, assim como Espinosa, Einstein não acreditava num Deus pessoal que recompensava e punia, intervindo em nossa vida cotidiana.”

“Einstein mais tarde se envolveu numa troca de ideias sobre esse tópico com um guarda-marinha das forças navais americanas a quem não conhecia pessoalmente. Era verdade, indagou o marinheiro, que Einstein fora convertido por um padre jesuíta e passara a acreditar em Deus? Absurdo, respondeu Einstein. Continuou dizendo que via a crença num Deus que era uma figura paternal como resultado de “analogias infantis”.”

“Você pode me chamar de agnóstico, mas eu não compartilho daquele espírito de cruzada do ateu profissional, cujo fervor se deve mais a um doloroso ato de libertação dos grilhões da doutrinação religiosa recebida na juventude”, explicou. “Prefiro a atitude de humildade que corresponde à debilidade da nossa compreensão intelectual da natureza e do nosso próprio ser.””

Trecho de Walden II, de Skinner, sobre o regime soviético

“— E quanto à Rússia, então?

— O que é que tem a Rússia?

— Não há uma semelhança considerável entre o comunismo russo e a sua própria filosofia?

— Rússia, Rússia, murmurou Frazier, evasivo. Nossos visitantes sempre perguntam isso. A Rússia é nossa rival. É muito lisonjeiro, — se você considerar os recursos e o número de pessoas envolvidas.

— Mas você está se esquivando de minha pergunta. A Rússia não fez o que vocês estão tentando fazer, mas ao nível do poder político? Eu posso imaginar o que um comunista diria de seu programa Walden II. Não lhe diria simplesmente para abandonar o experimento e ir trabalhar para o Partido?

— Diria e disse.

— E qual a sua resposta?

— Eu só posso ver quatro coisas erradas na Rússia, disse Frazier, divertindo-se claramente com a condescendência. Como originariamente concebida, era uma boa tentativa. Brotou de impulsos humanitários que são lugar-comum em Walden II.

Mas, rapidamente, desenvolveu certas fraquezas. Há quatro e elas eram inevitáveis. Eram inevitáveis simplesmente, porque a tentativa foi feita ao nível do poder político. Esperou que eu lhe perguntasse quais eram as fraquezas.

— A primeira, — disse ele, assim que eu lhe perguntei — é uma perda da mentalidade de experimentação. Muitos experimentos promissores foram simplesmente abandonados. O cuidado em grupo das crianças, a alteração da estrutura da família, o abandono da religião, os novos tipos de incentivo pessoal — todos esses problemas foram "resolvidos" voltando a práticas que têm prevalecido durante séculos nas sociedades capitalistas. Era o antigo problema. Um governo no poder não pode experimentar. Precisa conhecer as respostas ou, pelo menos, fingir que as conhece. Hoje, os russos afirmam que alcançaram um padrão cultural ótimo, ainda que não esteja totalmente difundido. E não ousam admitir qualquer necessidade séria de melhoria. A experimentação revolucionária está morta.

— Em segundo lugar, a Rússia usou propaganda demais. Tanto com o próprio povo, quanto para o mundo exterior. Sua propaganda é muito mais extensa do que qualquer outra que tenha escravizado as classes trabalhadoras. É um defeito sério, porque tornou impossível avaliar o seu êxito. Não sabemos quanto do atual vigor do comunismo russo é devido a uma vida saudável e satisfatória e quanto é devido à doutrinação. Você pode dizer que é um expediente temporário para anular a propaganda da cultura anterior. Mas essa necessidade foi há muito tempo superada e a propaganda ainda continua. Enquanto continuar, não poderemos obter dados válidos sobre a eficácia do comunismo russo. Tanto quanto sabemos, a cultura toda ruiria, se as atitudes que a suportam fossem afastadas. E o pior é que é difícil de imaginar que algum dia elas possam ser afastadas. A propaganda impossibilita o progresso em direção a uma forma de sociedade na qual ela seja desnecessária.

— A terceira fraqueza do governo soviético é o uso de heróis. A primeira função do herói na Rússia, como em qualquer outro lugar, é remendar uma falha estrutural do governo. As decisões importantes não são tomadas na base de um conjunto de princípios; são atos pessoais. O processo de governar é uma arte e não uma ciência. E o governo dura tanto ou é tão bom quanto o artista. Quanto à segunda função do herói, quanto duraria o comunismo, se as fotos de Lênin e Stálin fossem todas rasgadas? É uma pergunta que vale a pena fazer.

— Mas o mais importante de tudo é que o experimento russo baseou-se no poder. Você pode argumentar que a tomada de poder também foi um expediente temporário, uma vez que as pessoas que o detinham eram intolerantes e opressoras. Mas você dificilmente pode defender o uso continuado do poder da mesma maneira. Os russos estão ainda muito longe de uma cultura na qual as pessoas se comportem como querem se comportar para o bem comum. Para conseguir que essas pessoas ajam conforme a demanda do padrão comunista, o governo russo teve de usar as técnicas do capitalismo. Por um lado, emprega recompensas extravagantes e desiguais. Mas uma distribuição desigual de riqueza mais destrói incentivos do que cria. Obviamente, não se pode operar para o bem comum. Por outro lado, o governo também usa de punição ou de ameaça. Que espécie de engenharia comportamental você acha que é esta?”

Walden II é uma obra socialista

Walden II, de Skinner, é uma obra socialista. Manja só:

"— O que significa "fazer nome"? — perguntou Frazier. Você quer dizer fazer fortuna? Nós não temos necessidade de fortuna. E até que você me mostre que a fortuna pode ser feita sem fazer alguns pobres no caminho, este é um objetivo que nós estamos contentes em dispensar.

— Eu suponho que estivesse pensando mais em fama do que fortuna, disse Castle.

— A fama é também ganha às custas dos outros. Mesmo as honras bem merecidas de cientistas ou estudiosos são injustas para muitas pessoas igualmente dedicadas que não obtiveram honrarias. Quando uma pessoa consegue um lugar ao sol, outras são colocadas numa sombra mais densa. Do ponto de vista do grupo como um todo, não há ganho nenhum e talvez haja uma perda.

— Mas há alguma coisa errada em admirar feitos excepcionais ou em gostar de receber aplausos? — disse eu.

— Sim, Frazier disse, diretamente. Se isso destaca o feito não-excepcional de outros, é errado. Nós nos opomos à competição pessoal. Não encorajamos jogos competitivos, por exemplo, com exceção de tênis ou xadrez, onde o exercício da habilidade é tão importante quanto o resultado do jogo; e nós nem ao menos temos torneios. Nunca destacamos qualquer membro em qualquer aprovação especial. Deve haver alguma outra fonte de satisfação em nossos trabalhos ou jogos ou então consideramos o feito como trivial. Um triunfo sobre um outro homem nunca é um ato louvável. Nossa decisão de eliminar engrandecimentos pessoais decorreu naturalmente do fato de pensarmos no grupo todo. Não pudemos ver como o grupo lucraria com a glória individual."