Saturday, September 28, 2019

Trechos interessantes e talvez polêmicos do livro “Medicalização em Psiquiatria”, de Fernando Freitas e Paulo Amarante (Editora Fiocruz, 2015)

“Em 1996, o neurocientista Steven Hyman, que foi diretor do National Institute of Mental Health (NTMH) de 1996 até 2001, publicou um artigo no American Journal of Psychiatry (Hyman, 1996) que sintetiza tudo o que ele havia aprendido a respeito das drogas psiquiátricas. Os “antipsicóticos”, os antidepressivos e as demais drogas psiquiátricas funcionam criando perturbações nas funções dos neurotransmissores. A pessoa submetida à medicação psiquiátrica passa a ter o seu cérebro funcionando anormalmente.”
(...)

“De forma esquemática, os principais componentes do paradigma da ação dos “antipsicóticos” são:

- as medicações psicotrópicas “criam perturbações nas funções dos neurotransmissores”;

- em resposta, o cérebro promove séries de adaptações compensatórias a fim “de manter o seu equilíbrio frente às alterações no ambiente ou mudanças no meio interno”;

- a “administração crônica” das drogas então causa “alterações substanciais a longo prazo na função neural”;

- após algumas semanas, o cérebro passa a funcionar de maneira que é “qualitativa assim como quantitativamente diferente do estado normal” (Hyman, 1996: 151-161).

Há evidências científicas de que os resultados laboratoriais e clínicos são bastante distintos, tomando como referência o uso de “antipsicóticos” a curto e longo prazos.

Evidências laboratoriais:

- a curto prazo (em média, seis semanas), as drogas reduzem os sintomas-alvo de um transtorno melhor do que placebos;

- o que nos leva a considerar que, se um sujeito em surto psicótico apresenta melhoras quando faz uso de medicação antipsicótica, ele deve continuar a ser tratado com aquilo que lhe fez bem;

- o que parece ser confirmado: a longo prazo, existem evidências clínicas e laboratoriais de que quem deixa de tomar as drogas têm recaída em níveis mais elevados que aqueles que mantêm o uso.”
(...)

“Nessas pesquisas não se comparam indivíduos psicóticos que passaram a fazer uso de “antipsicóticos” com o grupo de indivíduos cujo curso natural do seu transtorno foi acompanhado sem uso de “antipsicóticos”. Eis aí uma diferença de metodologia de pesquisa que costuma ser negligenciada grosseiramente! Pela lógica da própria ciência esse problema metodológico deve suscitar questões importantes. Nesse caso, o risco sublinhado de recaída pode ser consequência justamente da alteração que o cérebro sofreu por causa da exposição à própria droga supostamente terapêutica.”
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“Para tentar responder essas questões, é preciso antes de tudo conhecer as formas como esses casos eram conduzidos na época em que não existiam os “antipsicóticos”, para constrastar com a hipótese, hoje dominante, de serem eles a única maneira possível de lidar com a esquizofrenia. Diante disso, começaram a ser feitas investigações que acompanhavam o paciente por um longo período (estudos conhecidos como follow-up), comparando-se os que eram tratados com medição antipsicótica com os que não eram. Ao investigar as formas de tratamento que havia antes dos “antipsicóticos”, constatou-se que pacientes tratados com métodos psicossociais, mesmo nos casos de internação, tinham melhor recuperação, como veremos adiante.”
(...)

“Para avaliar a eficácia dos “antipsicóticos”, em 1967, portanto quase uma década após a administração da clorpromazina, foi realizado o primeiro estudo de follow-up, feito pelo próprio NIMH, que tinha como foco a avaliação da ação da droga a curto prazo em psicoses esquizofrênicas agudas. A pesquisa, que acompanhou um grupo de 299 pacientes psiquiátricos com alta (após serem tratados com “antipsicóticos”), avaliou o ajustamento do paciente na comunidade, os vários aspectos da história pré-mórbida e o seu ajuste comunitário subsequente. Resultados: os pacientes que haviam recebido tratamento placebo no estudo da droga tinham menos probabilidade de serem reospitalizados do que aqueles que haviam recebido um dos três “antipsicóticos” prescritos (Schooler, 1967)”
(...)

“Com relação ao tratamento com drogas, um gigantesco impasse começa a aparecer no cenário da assistência psiquiátrica. Por um lado, as boas razões: o tratamento psicofarmacológico de pacientes esquizofrênicos demonstrava ser uma política eficaz para a redução imediata de sintomas psicóticos, para aliviar a angústia dos pacientes, permitir a desospitalização e a sua permanência na comunidade; tal tratamento dava uma base racional e efetiva com a qual o médico tinha a impressão de poder induzir as mudanças desejadas em seu paciente no contexto do modelo médico. Por outro lado, eram muitos os problemas criados pela própria terapêutica psicofarmacológica. Frequentemente se passou a reconhecer o aparecimento de efeitos colaterais nocivos do tratamento dos esquizofrênicos com neurolépticos, como alterações anatômicas desagradáveis, estranhas alergias e discinesias tardias.

Entretanto, com o tempo passando, após a euforia inicial motivada pelos resultados imediatos da medicação, passou-se a verificar também a relação entre o tratamento medicamentoso e a indução ou reforço dos chamados sintomas negativos (por exemplo: isolamento social, depressão pós-psicótica e síndromes de perda motivacional). À atenção se volta, então, para os possíveis efeitos do uso das drogas a longo prazo sobre a modulação afetiva, a comunicação, a percepção ou outras funções do sistema nervoso central, assim como para os efeitos colaterais secundários, como o impacto no desenvolvimento de uma criança nos casos em que a sua mãe está sendo submetida a uma medicação pesada por um longo período.

O que acontece quando pacientes na fase aguda da esquizofrenia não são tratados com neurolépticos? Tomemos como referência para a nossa análise uma investigação realizada com pacientes em fase de crise psicótica, com ênfase no tratamento psicossocial e forte limitação do emprego de drogas (Carpenter ef al, 1977). Essa pesquisa examinou o rumo da esquizofrenia aguda de 49 pacientes do programa do NIMH que estavam em tratamento de natureza psicossocial preferencialmente sem uso de qualquer neuroléptico, comparando-o com os rumos tomados por 73 pacientes de outro grupo que receberam tratamento usual. Foi feito um estudo de follow-up de um ano para os pacientes do programa do NIMH e de dois anos para os pacientes do tratamento convencional.

Os resultados mostraram que o grupo de pacientes tratados pelo programa experimental do NIMH teve uma melhora de sua saúde superior ao grupo de pacientes tratados com terapêuticas de base medicamentosa. Em outras palavras, como os próprios autores afirmam, não apenas é possível que a crise psicótica seja tratada com abordagem psicossocial sem medicação, mas os resultados a longo prazo são superiores aos obtidos com pacientes que durante a sua crise foram tratados com neurolépticos. Concluindo: “De forma bastante inesperada, esses dados sugerem que as drogas psicotrópicas podem não ser indispensáveis. O seu uso estendido na atenção extra-hospitalar pode prolongar a dependência social de muitos pacientes com alta” (Carpenter et al, 1997: 801).

Outra investigação merece a nossa atenção. Será que existem esquizofrênicos para os quais as drogas sejam desnecessárias ou contraindicadas? Esse é o principal questionamento norteador da investigação de Rappaport e colaboradores (1978), que iremos detalhar a seguir.

Os resultados dessa pesquisa foram divididos em quatro grupos de acordo com medicação prescrita aleatoriamente, e os pacientes foram separados segundo os momentos em que foram observados, durante a hospitalização ou por três anos após a alta. Os pacientes do grupo que durante a hospitalização haviam recebido placebo e que durante os três anos não foram tratados com medicação antipsicótica tiveram resultados significativamente melhores que os demais. Trata-se de um grupo que apresentou a mais elevada melhora clínica e menos patologia durante o follow-up, pacientes com menos reospitalização e menos dificuldades na reinserção e reintegração social, se comparado a outros grupos.

Um follow-up de vinte anos:

Harrow e Thomas (2013) levaram a cabo um estudo de follow-up durante vinte anos, com características absolutamente inovadoras na literatura científica até então. Duas questões orientaram esse estudo: será que todos os pacientes com esquizofrenia necessitam de tratamento contínuo com “antipsicóticos” ao longo das suas vidas? O uso por longo tempo de “antipsicóticos” para pacientes com esquizofrenia reduz ou elimina os sintomas psicóticos?

A grande diferença desse estudo de follow-up para os inúmeros outros já feitos é que ele acompanhou durante vinte anos três subgrupos de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos (seguindo rigorosamente os mesmos critérios): um subgrupo de pacientes esquizofrênicos que fizeram uso contínuo de “antipsicóticos”, o outro de pessoas que fizeram uso intermitente de “antipsicóticos”, e finalmente o terceiro subgrupo formando por sujeitos diagnosticados como esquizofrênicos que nunca fizeram uso de “antipsicóticos”. A idade média dos pacientes quando receberam o diagnóstico de esquizofrenia era de 23 anos. Às variáveis investigadas foram rigorosamente as mesmas durante o estudo de acompanhamento, quer dizer, no 2º, 4,5º, 7,5º, 10º, 15º e 20º anos.

O resultado desse estudo é surpreendente: ao longo dos vinte anos, o subgrupo de pacientes que não tomaram “antipsicóticos “ou outras medicações psiquiátricas apresentou resultados de recuperação significativamente melhores que aqueles que tomaram “antipsicóticos” com ou sem outras drogas psiquiátricas. Para sermos mais precisos: no 4,5º ano, 86% dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ou outras drogas psiquiátricas apresentaram atividade psicótica, ao passo que apenas 23% dos sem medicação a apresentaram, no 10º ano, 79%versus 8%; no 15º ano, 71%versus 8%; e, finalmente, no 20º ano, 68%versus 8%.

Em termos de reospitalização, a diferença é igualmente enorme: no 4,5º ano, 54%dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ ou outras drogas psiquiátricas voltaram para o hospital, contra 13% dos que não tomaram qualquer medicação; no 10º ano, 57% daqueles com medicação versus 0% dos que não tomaram qualquer medicação psiquiátrica; no 15º ano, 43%contra 0%; e, finalmente, no estudo feito no 20º ano, 50%versus 18%.”

Referências:

CARPENTER, W. T. e& al. The treatment of acute schizophrenia without drugs. American Journal of Psychiatry, 134: 14-20, 1977.

HARROW, M. & THOMAS H. J. Does long-term treatment of schizophrenia with antipsychotic medications facilitate tecovery? Schizophrenia Bulletin, 39(5): 962-965, 2013.

HYMAN,S. Initiation and Adaptation: A paradigm for understanding psychotropic drug action. The American Journal of Psychiatry, 153: 151-161, 1996,

RAPPAPORT, M. et al. Are there shizophrenics for whom drugs may be unnecessary or contraindicated? International Pharmacopsychiatry, 13: 100-111, 1978.

SCHOOLER, C. One year after discharge. The American Journal of Psychiatry, 123: 986-995, 1967.

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