Friday, December 25, 2020

A felicidade mora na simplicidade e na intimidade

 Essas pessoas que não dão valor ao que têm, que ficam o tempo todo se comparando a outras, que estariam em algum nível superior, precisam de um pouco mais de isolamento. Talvez precisem mesmo sair das redes sociais e estarem mais dentro de sua própria vida, em sua própria intimidade. Porque a felicidade mora na simplicidade e na intimidade. A felicidade não mora na fama, na relação com fãs ou pessoas que não nos conhecem, e que na verdade não nos amam. E, claro: o bem-estar psicológico depende de mais uma infinidade de variáveis. Mas faz sentido também falar desse aspecto pontual, quando aparece.

Saturday, December 05, 2020

Já sonhei em ser jogador de futebol

 Com 10 anos de idade, durante todo o ano de 1982, que teve a Copa da Espanha, joguei muito futebol, praticamente todos os dias, e sonhei intensamente em ser jogador. E eu até me destacava, como zagueiro. Eu era uma pedra no sapato de qualquer atacante ali do mundinho em que eu habitava.

No universo de meu bairro, o Jardim Independência (o Jardel), no qual, durante alguns anos, morou o pai de Sócrates, eu era um zagueiro respeitado no campinho, atrás da escola em que estudava, a escola estadual João Augusto de Melo (o Jamel).

O pai do Magrão (Sócrates) morava no Jardel. Cada jogo da seleção, em 1982, tinha emissoras de TV dentro da casa dele. E, que coisa engraçada, o Raí tinha somente 17 anos em 1982, e já devia brilhar nas bases do Botafogo de Ribeirão, e obviamente devia também morar no Jardel. Mas eu nem sabia que Sócrates tinha um irmão que também jogava futebol, e os mais velhos do campinho tinham no máximo 13 anos de idade. Raí, com 17 anos de idade, fazendo ensino médio em escola particular do centro da cidade, era praticamente de outra geração, de outro mundo, mesmo morando no mesmo bairro que nós.

Durante todo o ano de 1982 sonhei demais em ser jogador profissional quando adulto. Pedia para meu pai me matricular na escolinha de futebol do Botafogo-SP ou mesmo na categoria fraldinha do time rival da cidade, o Comercial, para o qual ele torcia.

- Pai, tem como me matricular no fraldinha?

- Ah, sim, filho, o pai vai ver isso pra você...

Pedi durante um ano, e não rolou. 5 anos depois eu estava jogando no Comercial, mas hóquei sobre patins, esporte mais apreciado por meu pai do que futebol.

Porém, durante o próprio ano de 1982, cometi um erro. Sonhei mais alto e quebrei a cara. Tentei sair da zaga para jogar mais para frente. O resultado foi sofrível. Eu jamais seria um bom jogador do meio pra frente. Teria de nascer de novo, no mínimo.

E ontem me peguei me imaginando como jogador de futebol profissional, realizando um de meus mais intensos sonhos da infância, ao lado dos grandes de minha geração, indo para copas do mundo. É muito insólito se imaginar em uma realidade totalmente diferente, porque 12 anos depois, em 1994 (Copa dos EUA), quando eu tinha 22 anos, meu mundo era uma coisa absolutamente diferente de uma vida de atleta profissional.

Eu nem mesmo jogava com meus amigos da Psicologia, que treinavam no campo da USP, e tinham um time de respeito, com alguns colegas (como Felipe Nassar e Fernando Falcão) que haviam treinado em grandes clubes de São Paulo, como o Palmeiras, por exemplo.

Preferia nadar. Dia sim, dia não, nadava meus mil metros na piscina da universidade. E era quase todos os dias praticamente a mesma rotina: aulas de manhã e à tarde, piscina ao meio-dia, rango no bandeijão, no almoço e no jantar (aliás, por diversas e memoráveis vezes, na companhia de figuras lendárias do universo filô-uspiano de Ribeirão naqueles anos, tais como Alexandre Ioda e Antonio Sousa, que era conhecido como Barbosa), e biblioteca à noite, até umas 22 horas.

Ser jogador profissional de futebol foi talvez um dos sonhos mais distantes da minha realidade que eu já tive.

Sunday, November 15, 2020

Chico e uma camada da saga de minha família materna

 

Hoje, por acaso, me lembrei que a primeira vez em que cuidei de um bebê, diariamente, foi em 1988, com 16 anos de idade. Minha tia, irmã de minha mãe, passava por crises psicóticas, e acho que até teve sarna. Ela tinha dois filhos: minha prima, com 12 anos e o Chiquinho, que tinha somente 6 meses.

Minha mãe então escolheu terminar de jogar seu casamento no lixo, levando os 3 para morar conosco numa casa de 2 quartos. Chiquinho se apegou com todos nós, principalmente comigo. Troquei muitas e muitas vezes suas fraldas, além de diversos banhos, sem banheira mesmo, no muque. Fazia-o dormir no skate.

E lembro da noite inteira, em claro, tentando fazer com que ele, com dores de ouvido, parasse de chorar, somente eu, ele e minha prima. Ela entrava na puberdade, e eu estava lá havia dois anos. Sim, entrei na puberdade somente aos 14 anos.

Casa pequena, de dois quartos. Meus pais dormiam em um, meus dois irmãos na sala, eu, minha prima e Chiquinho no outro quarto. Minha tia internada em um hospital psiquiátrico, por meses.

Eu com 16 e minha prima com 12, sozinhos, por meses, dormindo todos os dias no mesmo quarto. Hormônios que explodiam, em ambos. E no meio da noite nossos corpos se encontravam no risco constante dela ali, aos 12, engravidar de mim, aos 16.

Dois anos depois dois amigos não entendiam como eu havia resistido. Três anos depois, já na universidade, dois ou três idiotas tentaram me humilhar, dizendo que sabiam de minha virgindade e que isso seria espalhado aos sete ventos, ou que rifariam meu corpo para angariar dinheiro para a formatura. E eu somente sonhava que meu pai fizesse comigo o que vinham fazendo havia gerações, que me levasse pra um puteiro, pra que eu pudesse me libertar logo daquele fardo.

Mas voltemos a Chiquinho. Ficou um pouco mais de 6 meses conosco, dos 6 meses a 1 ano de idade. Lembro de quando engantinhou por cima de todos nós, na cama grande, de casal, no quarto de minha mãe. Fez um gracejo para cada um de nós, enquanto todo mundo estava ali, junto, deitado, assistindo ao Globo Repórter. Foi um momento memorável, de amor, de todos por aquele serzinho que começava sua vidinha.

Quatro anos e meio depois, em 1993, minha tia estava novamente internada e Chiquinho volta a ficar alguns dias conosco. Ele já tinha 5 para 6 anos. Eu tinha 21. Seu pai morrera de câncer, três meses antes dele nascer. Não o conheceu. Mas tinha uma referência.

Durante esses dias em que ficou conosco pediu para minha mãe para que eu fosse o pai dele. Minha mãe achava engraçadinho. Eu ficava pensando se valia pena assumir. Levava pra terapia. Sentia algo profundo. Meu coração doía por Chiquinho. E o dele por mim.

“Chiquinho é a imagem que você tem de si mesmo quando pequeno: frágil, sensível demais pra esse mundo...”, dizia o residente de psiquiatria da USP, que me atendia em 3 sessões psicanalíticas por semana. Mas não sei exatamente se era ele quem dizia isso ou eu mesmo, talvez já deitado em um divã, e sentindo como se escancarasse o mundo inteiro a cada sessão.

Um ano depois minha prima, com 18 anos de idade, morava em Sampa e namorava com uma moça que, por coincidência se chamava Adriana, e era da minha idade. Juntas montaram uma empresa, que prospera, até hoje, e muito mais do que qualquer um de nós poderia imaginar.

Três anos depois, em 1996, Chico já era outra criança, bem mais fortalecida para enfrentar esse mundo cão. Jogava muito vídeo game, bola e tinha amigos. Não precisava mais de mim. Eu respirava um pouco aliviado. Mas deixei uma coisa clara para minha mãe:

“Se ele, daqui uns 8 ou 10 anos não entrar pra criminalidade, nós já estamos no lucro.”

Nove anos depois, com 17 anos, em 2005, Chico estava em coma, no Hospital das Clínicas de São Paulo. Fugia da polícia, com mais alguns parceiros, de carro, após alguns assaltos que fizeram. Seu carro perdeu o controle e bateu em um caminhão de lixo. Chiquinho quebrou perna, não sei mais o quê, e ficou em coma, entubado. Pensamos que morreria.

Coisa de um mês depois, peguei um avião pra Sampa, pra depois pegar um ônibus pra Ribeirão. Minha prima me pegou no aeroporto, para depois me deixar na rodoviária. Se eu visitasse Chico no hospital, não chegaria a tempo da festa de despedida de meu irmão, que partia do Brasil para Londres, para nunca mais voltar. Isso mesmo, já são mais de 15 anos em Londres. Não faz mais sentido voltar.

Então não visitei Chiquinho no hospital. Minha prima ficou muito triste comigo.

Nunca mais vi o Chico. Somente via, de vez em quando, algumas fotos desfocadas dele, que minha prima nos enviava, de suas idas e vindas de internações para parar ou diminuir o uso de cocaína.

Internava, se convertia ao neopentecostalismo, e logo em seguida voltava pra bandidagem. E tome depois uns 3 anos de cadeia, do qual voltou mais manso do crime, mas ainda em uso pesado de álcool, tabaco, maconha e coca.

Em 2013, aos 25 anos de idade, teve uma overdose e ficou em estado vegetativo por uns dois meses. Mas me avisaram somente poucos dias antes de sua morte. Eu estava recém-operado de hérnia inguinal e caminhava com dificuldades. Não pude ir ao funeral.

 

Parte 2 (sem revisão gramatical, somente para registro):

Minha tia foi vida loka, a vida inteira. As crises com sintomas psicóticos só começaram a acontecer na vida dela aos 35 anos de idade, quando já tinha um ano ou mais de convivência com outro vida loka, o pai de Chiquinho, o Francisco.

Foram um casal que deu muito trabalho para minha família nos anos de 1985 e 1986. O reveillon de 1984 pra 1985 passei na casa deles, em Sampa.

Foi um reveillon vida loka. Fiquei eu e Cako (meu irmão mais novo) com eles durante uma semana. Chiquinho ainda não tinha nascido. Francisco nos levava para passear de carro. Rodava as ruas de Sampa a 140 km/h, e ninguém com cinto de segurança. Entornava uma garrafa de uísque atrás da outra. E minha tia o tempo brigando com ele, ameaçando de se matar. Por vários dias eu fui o mediador dos dois, com 12 anos de idade. Depois disseram a meus pais que eu tinha sido o anjo que os tinha impedido de um matar o outro naqueles dias. depois de uma semana Francisco pegou seu VW Santana, botou a gente dentro (eu, Cako, prima, ele e minha tia), e voamos pra Ribeirão, o tempo todo a 150/160 km/h, e ele talvez sempre Chapado de alguma coisa. chegando em ribeirao, na anhaguera, por volta de umas 21 hs, vimos que havia ocorrido um acidente. um caminhao havia atropelado um ciclista. francisco foi devagarinho iluminando o asfalto. havia pedaços do ciclista na pista, por dezenas, talvez centenas, de metros. fui la com francisco ver o corpo. parecia uma carne de açougue na qual somente reconheci um corpo humano pelo que havia restado do cranio, somente com alguns poucos cabelos. eles passaram alguns dias em ribeirao. um dia vi que meu pai ia pro bar, beber e conversar serio com francisco. botou a 765 na cintura e a escondeu, sob a camiseta. disse pra minha mae que ia fazer o francisco entender algumas coisas. passaram a tarde toda bebendo. voltaram bebados. acho que depois dessa conversa francisco ficou mais esperto. deixaram de nos azucrinar por um tempo. dois anos e nove meses depois, em setembro ou outubro de 1987, francisco morreu de cancer. acho que foi leucemia ou algo no figado. nao me lembro mais. chiquinho nasceu em 07 de janeiro de 1988, uns 3 meses depois da morte de seu pai e um dia antes de minha tia completar 39 anos.

minha tia ficou estavel, sob uso pesado de antipsicoticos, praticamente somente dormindo, assistindo novela e comendo, morando a maior parte do tempo somente ela e chiquinho, de 1993 a 2013. depois da morte dele, em 2013, ela continuou estavel, sob controle pesado de antipsicoticos, até 2016. ou seja, 23 anos sem parar de tomar antipsicotico de deposito, todo mes tomava uma injeçao. aí em 2016 ela parou de tomar todos os remedios. e acho que conseguiu ficar assim uns meses ou cerca de um ano, quando voltou a ter crises maníacas. minha mae ficou possessa e culpou minha prima. minha mae, que sempre foi, para minha prima, a grande matriarca de toda a grande familia, uma familia sem referencias masculinas, sempre comandada por mulheres, esta mulher, minha mae, nao conversa mais com minha prima, que ja deve ter chorado muito em funçao disso. minha tia está, ha cerca de dois anos ou mais, morando em uma clinica de repouso em sao paulo. fui a sampa em janeiro, passei somente um dia e meio por la. nao tive tempo de visita-la. mas passei deliciosos e preciosos momentos com 4 primos e minha tia, uma outra tia, irma de meu pai, de 64 anos, que ainda é uma mulher muito bonita. minha prima esta muito bem. vive uma vida feliz e prospera, e ja estava se preparando para seu terceiro casamento, agora com uma psicologa, novamente com uma psicologa que, por coincidencia, tem o mesmo nome que minha filha. de suas tres ou quatro unioes conjugais, duas foram com psicologas. todos jantamos juntos, um jantar lindo, na casa dessa minha tia, irma de meu pai. ela mora em uma casa pequena, aconchegante, e muito bonita, com seu filho, de 29 anos, que é publicitario. ela mesma preparou um jantar lindo, maravilhoso, no qual todos confraternizamos e bebemos bom vinho. e eu deixei claro a todos ali que 2020 será uma decada muito dificil. minha prima foi embora mais cedo, bem mais cedo. é executiva. está habituada a reunioes rapidas e resolutivas. e agora faz higiene do sono, seguindo todas as recomendaçoes do "oraculo da noite", de sidarta ribeiro. minha prima nunca precisou tomar medicamentos psicotropicos, e hoje esta mais ligada ao pai que, aos 77 anos, mora sozinho, é totalmente independente, e ainda presta serviços para a empresa dela. meus outros dois primos sao dois irmaos. um de 39 e a outra fará 35 em dezembro. o de 39 mora tambem sozinho, em sampa, e é militante do pt ha uns 20 anos. seu pai é bolsonarista, e mora em ribeirao, com esta prima, que fará 35 em dezembro. jantamos e fui dormir na casa dele. ele saiu para comprar pra mim e pra ele, um travesseiro antirrefluxo. só durmo em rede ou com travesseiro antirrefluxo. no meio da madrugada minha prima pediu por socorro. havia dormido de bruços e nao conseguia se virar. é cadeirante. padece de uma doença neurodegenerativa, a qual matou, que eu saiba, tres tios de minha mae. lembro bem de um deles, que tentou se matar em 1980, tomando aquele veneno para ratos. essa doença o castigou durante uns 15 anos ou mais. minha prima está doente ha mais de 10 anos. antes disso era tambem vida loka, como chiquinho e como minha tia, que hoje está internada na clinica de repouso.

Ideações suicidas: baobás impossíveis de se cortar ou a possibilidade de uma bela paisagem

Atenção, alerta de gatilho: o texto abaixo é sobre comportamento suicida. Se for sensível ao tema, não dê continuidade à leitura.

Ideações suicidas são muito mais frequentes do que a maioria de nós imagina. Essa informação está contida em um dos livros de Steven Hayes, e ele cita a fonte:

"Pensamentos e tentativas de suicídio são chocantemente prevalentes na população em geral (Chiles & Strosahl, 1995). Cerca de 10% das pessoas, em algum momento, tentará o suicídio. Outros 20% terão dificuldades com ideação suicida e terão um plano e meios para realizar o ato. Ainda outros 20% terão problemas com pensamentos suicidas, mas sem um plano específico. Assim, metade da população enfrenta níveis, de moderados a severos, de comportamento suicida em suas vidas"(p. 07).

Faço parte dessa metade da população. Mas demorei muito para ter pensamentos assim. Talvez eu pela primeira vez tenha tido consciência de que alguém tinha acabado com a própria vida quando estávamos eu e meu pai caminhando, a uns 200 metros de nossa casa, quando eu tinha uns 11 anos de idade, e ele me mostrou uma casa na qual, havia poucos dias, uma pessoa havia cometido suicídio.

Sempre que eu passava na frente daquela casa pensava naquele ocorrido horrível. Sentia aversão. Percebia aquele contexto como absolutamente sombrio e repugnante. Não conseguia compreender como alguém era capaz de cometer um ato tão atroz contra si mesmo. Transformou-se para mim em um tabu. Era algo sobre o qual eu não gostava de pensar nem de imaginar para qualquer pessoa, muito menos para mim.

Mas isso se desfez depois que entrei na universidade. Já no primeiro ano do curso de psicologia comecei aceitar mais esta possibilidade, talvez como um ato mesmo de liberdade, tanto para os outros quanto para mim mesmo.

Por que todos temos essa liberdade. No Brasil não temos esse direito. Mas o ato, escapar disso tudo, está ao alcance da maioria de nós. E quando digo liberdade, menciono o conceito em seu sentido mais vulgar, somente para poder me comunicar melhor, em um texto que tem a pretensão de ser breve.

Uma coisa que me chama a atenção, em minha própria experiência, nos últimos 30 anos, é o quanto a minha percepção foi se alterando, e o fato de que o desejo de morrer foi, por diversas vezes, acompanhado por experiências de grande prazer.

Já tive e tenho minhas ideações, como a metade das pessoas desse mundo. Mas elas também se alteraram bastante. No artigo científico que publiquei sobre o tema, o qual é o relato do caso de meu irmão mais velho, que se foi assim, em 1998, trago a metáfora do baobá.

A ideação suicida seria como uma semente ou uma pequena muda de baobá. É melhor cortar logo pela raiz. Porque quando começamos a cultivá-la, ela tende a crescer, adquirir raízes, e se transformar em um enorme baobá que pode se apossar de nossa vida por completo. O que antes era somente um desejo, até mesmo indefinido, pode se transformar em alternativa válida, porta de saída para todo e qualquer tipo de aborrecimento. Ou a pessoa pode começar a ficar fascinada pela morte.

Sinto que tanto eu quanto Edu, meu irmão que se foi, éramos, em 1993, fascinados pela morte. Mas jamais conversamos sobre isso, sobre esta fascinação, no nível pessoal. O mais próximo a que chegamos, numa conversa, neste sentido, foi quando ele se preocupou comigo, achando que eu pudesse tentar alguma coisa.

- Dri, meu irmão, li isso aqui que você escreveu, e fiquei preocupado...

- Não há com que se preocupar, eu lhe garanto. Isso é somente exercício poético, literário...

Ele insistiu em se mostrar preocupado, e eu inverti:

- Poxa, Edu, convenhamos, quem está em mais risco aqui é você, e não eu.

Vi que ficou um pouco surpreso, achando que eu não soubesse de nada, que eu não percebia o quanto ele era suicida. Mas deixei muito claro para ele que era muito angustiante saber que ele uma hora poderia fazer alguma coisa. A possibilidade de chegar em casa e encontrar alguém que fez uma coisa dessas é horrível.

Senti que ele havia percebido que algo assim poderia gerar muito sofrimento em muitos de nós, e continuei durante todos os cinco anos seguintes (assim como eu já vinha fazendo havia cinco anos, desde 1988) fazendo o que eu podia para que ele se sentisse mais feliz, e percebesse que de alguma forma a vida dele valia a pena.

Minha capacidade de ajuda e prevenção a alguém numa situação dessas era muito menor do que a que tenho hoje. Hoje compreendo tudo isso, em termos de intervenção psicológica e em termos éticos, de um modo muito mais vasto e profundo do que nos anos 90.

Cada um fez o que pôde e cada um tinha seus limites, e muitos de nós tivemos importantes aprendizados depois dessa tragédia.

Mas esse texto já está ficando longo, e se desviou para pontos sobre os quais já tratei em detalhes no artigo e na versão, em formato de crônica, em português.

Eu queria mesmo é falar da forma das ideações. Meu baobá já existe há muitos anos, e convivo muito bem com ele. E ele não cresceu sob o piso de minha casa, destruindo tudo e invadindo minha vida.

Hoje tenho tudo muito bem delimitado e separado. O baobá é hoje uma paisagem linda que tenho em minha janela, e que sei que posso um dia ir lá, quando for necessário, quando for a hora.

Sinto que a vida, além de um direito, é também em boa medida, para muitos de nós, um dever. Temos deveres para com quem nos ama, e sofreria muito com nossa falta repentina.

Então não tenho mais ideações que estão crescendo e tomando conta da minha vida. Não tem mais nada a ver com isso.

E se você leu até aqui e pouco entendeu, talvez você precise compreender, em maiores detalhes, o que são ideações suicidas, tabus sobre o tema, suas modulações sociais e históricas, e os conceitos de: liberdade, direito, ética, e todo o debate sobre eutanásia e suicídio assistido.

Referência:

S.C. Hayes et al (1999). Acceptance and commitment therapy. New York: Guilford Press.


Tuesday, October 06, 2020

Quando um paciente roubou meu celular

 Há cerca de 4 anos um paciente roubou meu celular. Eu estava com um pequeno grupo, em uma sala do CAPS. Ele fazia parte desse pequeno grupo, e era o único ali que tinha passagens pela polícia, por roubo. Dando falta do celular, minutos depois voltei à sala, correndo, na qual não havia mais ninguém. E o celular simplesmente havia desaparecido. Peguei o celular de um colega, e liguei para meu próprio número.

Ele mesmo, esse paciente, que tem uma voz e um jeito de falar inconfundíveis, atendeu. Vou aqui chamá-lo de Josimar (nome fictício):

- Josimar, você está com meu celular. Volte aqui para o CAPS! Traga ele de volta pra mim, por favor!

- Perdeu, playboy! Perdeu! - e desligou na minha cara.

Não consegui recuperar meu celular, porque dali do CAPS ele foi diretamente a algum local, para vendê-lo a um receptador.

Também não acionei polícia. Tentei somente conversar com sua mãe e seu tutor, que era um vizinho dele.

Sua mãe, por telefone, lamentou o fato, e disse que fez o que pôde, tentando conversar com ele, mas ele jamais admitiu que cometeu tal delito. 

Seu tutor, um senhor entre 50 e 60 anos de idade, foi com ele até o CAPS, para que pudéssemos fazê-lo se convencer de que seu ato não poderia se repetir, e que era algo condenável.

Josimar, mesmo após ter atendido a ligação telefônica, jamais confessou que cometeu tal crime.

Ele frequentava o CAPS porque a justiça assim o obrigava. O juiz havia definido que ele somente se manteria em liberdade se não houvesse reincidência de seus crimes (no caso, roubo), e que ele obrigatoriamente frequentasse um CAPS.

Josimar tem retardo mental. Nasceu em um estado do Nordeste, e veio para Brasília quando tinha nove anos de idade. Uma das versões sobre sua história, registrada em seu prontuário, era a de que ele teria caído de uma rede, e batido fortemente com a cabeça no chão, quando tinha somente alguns meses de idade. As lesões cerebrais produzidas por esse acidente teriam resultado posteriormente no sério comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo.

Do que eu conseguia me lembrar, após leituras de seu prontuário, era que ele havia sido pego pela polícia em alguma tentativa de roubo, na qual vinha sendo repetidamente instrumentalizado por seus irmãos, já que era inimputável.

Colocavam um deficiente mental para roubar para que assim não fossem penalizados. A culpa recairia sempre sobre o deficiente. 

Josimar, contudo, deixou de frequentar o CAPS nos últimos 3 anos. Porque reincidiu e acabou novamente sendo preso. Ficou três anos em reclusão em um manicômio judicial.

Há poucos dias ele reapareceu no CAPS em companhia de um irmão. Havia sido solto, e agora devia obrigatoriamente voltar a frequentar nosso serviço.

Para minha surpresa Josimar não tinha vários irmãos. Tinha somente aquele irmão, com quem estava agora diante de mim, em uma avaliação para sua reinserção no CAPS. 

Ele é 15 anos mais velho que esse irmão, que não tem retardo mental, e também ficou preso por cerca de três anos, por ter sido condenado por furto ou roubo.

Seu irmão, Rodrigo (nome fictício), tem 34 anos, tem três filhas e uma neta, de 5 meses de idade. Acho que Rodrigo é o avô mais jovem que já vi nessa vida.

Entrevistei-os do modo mais completo possível, inclusive em relação aos fatores sócio-financeiros.

Josimar é analfabeto e o irmão estudou somente até a quinta série. Sua filha, de 17 anos, ainda cursa a sexta série do ensino fundamental. Ainda conseguem pagar água e luz. Mas ninguém na casa tem telefone celular, e também não há telefone fixo. Nunca tiveram carteira assinada, e têm dificuldades inclusive para ter comida em casa. 

- Lá em casa é eu, minha mãe, Josimar, minha filha e minha neta. (...) Levantamos de manhã bem cedo, e viemos para cá, a pé. Não tem nada de comida lá. Nem pão, café, nem açúcar. (...) Pra comer tamo saindo de casa. Cada dia a gente vai na casa de uma pessoa diferente. Ontem almoçamos na casa da madrinha de minha filha.

No final do atendimento Rodrigo me interpelou:

- Desculpa o incômodo aí, mas será que você não teria aí uns R$10 pra emprestar pra gente, pra nós passar na padaria e comprar uns pão, pra levar pro café da manhã?

- Rodrigo, eu não tenho dinheiro na carteira. Tenho somente o cartão. Vou com vocês até a padaria. Pode ser?

- Sim!

Saí com os dois, e caminhamos uns 200 ou 300 metros, até a padaria mais próxima.

Chegando lá pediram pães com mortadela e um refrigerante de 2 litros. Estavam loucos para saborear pães com mortadela com refrigerante, de café da manhã. Comprei-lhes açúcar, pó de café, margarina e leite. 

Agradeceram-me, animados, contentes, como se tivessem descoberto um novo parça.

Despedi-me deles rapidamente, para voltar logo ao trabalho. No meio do caminho senti o sol brilhando como se não fosse real, como se eu fosse capaz de ver cada um dos raios a penetrar no mundo das coisas e de seres que sofrem, como se tudo aquilo fosse um cenário calculadamente armado de modo excessivamente luminoso naquela manhã. Por alguns instantes parecia que eu havia feito uso de alguma substância anestésica e alucinógena

Foi um sentimento breve de estar fora de mim, e de ser tomado pela sensação, emotiva, de que tudo podia com muita facilidade ser completamente diferente e muito melhor para muito mais pessoas.

Mas isso durou somente alguns segundos. Metros depois o sol voltou impiedosamente a rachar na cabeça.

Saturday, September 05, 2020

Pensar na vida

 Eu deveria ter começado a fazer terapia ou algo talvez como filosofia para crianças quando tinha uns 7 anos de idade ou menos. Desde pequeno meu pendor para as humanidades era nítido. Apesar de não ter dificuldades com área alguma de conhecimento, eu adorava atividades braçais ou manuais. Porque me deixavam pensar na vida. O que eu mais gostava, e sempre gostei, era pensar na vida. E ainda gosto, e é o que mais faço, hoje porém com a ajuda de diversos autores e pensadores. Porque eu precisava, com urgência, por sobrevivência psicológica, pensar na vida, desde muito cedo.

Thursday, September 03, 2020

Lembranças de meu pai

Imagine a seguinte cena: você está com seu carro, na rodovia Anhanguera, chegando em São Paulo, capital, e está caindo uma tempestade torrencial. Naquelas várias faixas você olha para a direita, na faixa da direita, e vê um motoqueiro, numa moto 125 cilindradas, (ou seja, uma moto pequena), com roupa de chuva, capacete e um bagageiro no qual se encontra uma mala, nitidamente uma bagagem que contém as roupas desse motoqueiro. 

Porém, há um detalhe: na garupa está uma criança de uns oito ou nove anos de idade, amarrada ao motoqueiro, com uma corda. Os dois estão equipados para chuva, com macacões de chuva, capacetes, tudo certinho... Mas o que se vê é um motoqueiro numa chuva torrencial, no meio do nada, numa estrada enorme, cheia de carros, indo devagarinho, no cantinho, para São Paulo, e esse motoqueiro já se deslocou, com essa criança, uns 300 km.

Esse motoqueiro era meu pai e essa criança era eu ou meu irmão mais novo, Cako. Todos os anos meu pai fazia essa viagem, essa aventura conosco, de Ribeirão Preto a São Paulo. E havia um revezamento entre nós, os filhos. Desse modo todos os três filhos fizeram essa viagem com ele. Eu acho que fiz essa viagem com 11 anos de idade, mas imagino que meu irmão mais novo tenha feito essa viagem com uns oito ou nove anos de idade, e lembro que na viagem que eu fiz com meu pai aconteceu exatamente isso aí: pegamos, no meio do caminho, quase chegando em São Paulo, uma chuva torrencial, e paramos somente para nos paramentarmos com os macacões de chuva. 

Aí houve um momento em que meu pai resolveu me amarrar a ele, porque percebeu que eu estava caindo no sono, e que havia o risco de eu cair da moto. Como naquelas condições essa acabava se tornando uma viagem um pouco mais longa, com uma duração de mais ou menos 5 ou 6 horas, era muito propício que uma criança adormecesse. Então acho que esse recurso, de amarrar os filhos ao seu corpo, foi utilizado possivelmente com todos os três, em cada uma dessas viagens.

Hoje pela manhã me lembrei exatamente dessa cena, quando vi um motoqueiro passar por mim nas ruas, a caminho do trabalho. 

E não teve jeito, eu caí no choro. Dois anos e meio após a sua morte esse talvez tenha sido o choro legítimo do vazio, da perda, de perceber que um pedaço grande da gente foi arrancado, em algum lugar; de que algo se foi e jamais retornará, de que a vida vai caminhando e que muita coisa vai se decompondo, se perdendo para sempre. De forma que no final das contas tudo amiúde se transforma em uma grande nuvem de esquecimento e um vazio a ecoar nos últimos instantes.

A vida de meu pai com seus filhos foi conflituosa, sofrida. Penso que talvez a interação menos sofrida tenha sido com meu irmão mais novo. Mas houve muitos conflitos comigo e com meu irmão mais velho. Isso sem falar nos conflitos que ele teve com nossa irmã, dois anos mais nova do que eu, a qual só viemos a descobrir que existia há pouco mais de 20 anos. 

Se nós três, em muitos momentos padecemos de sua ausência, ela muito mais. Nós três ainda tivemos, em toda a primeira infância, e boa parte da adolescência, a presença dele dentro de casa, e ela jamais teve isso ou até mesmo algo próximo disso em relação a ele, porque nem mesmo o sobrenome dele ela herdou. 

A partir de meus 12 anos de idade lidar com meu pai era lidar com alguém quê eu já não compreendia e que também não me compreendia. Com 20 anos de idade fui fazer terapia e consegui me reaproximar um pouco mais. E assim, nessa época, um dia me confessou:

- Eu me preocupava bastante com você, quando você era criança, porque eu pensava que você não ia dar conta de resistir à vida...

E sinto que muitas vezes a tentativa dele de fazer com que alguém acordasse, ou se motivasse mais para a vida, era muito geralmente uma tentativa muito rude, muito dura:

- Porra, vai ficar chorando pelos cantos? Acorda, porra!

Com 12 anos de idade eu sentia isso tudo como simplesmente abominável. Com 20 anos, depois de um pouco de terapia, comecei assimilar melhor, ao ponto de transformar essas palavras aparentemente rudes em algo verdadeiramente motivante, e até mesmo hilário, risível, de tal maneira que muitas vezes até sentia falta dele gritando assim comigo, para que de fato eu acordasse.

Mas aí chega um dia em que você sai de sua cidade, e isso somente colabora para que as distâncias aumentem, em todos os níveis, ao ponto de não saber mais precisamente o que está acontecendo com seus pais, de quais são precisamente os desafios pelos quais eles estão passando em seu dia a dia, em sua jornada para o envelhecimento e o fim mesmo de seus dias.

E meu pai foi isso: uma pessoa muito controversa, com o qual tive algumas aproximações memoráveis, e muitos estranhamentos, cuja lembrança, em minha infância, hoje me invadiu, como um rio caudaloso, em alguns poucos minutos em que eu estava a caminho do trabalho.

Sunday, August 23, 2020

Quando cheguei à Brasília, em 1997

 Hoje tivemos de ir ao Plano Piloto. Luisa, minha filha, quis saber qual foi o primeiro lugar em que morei quando cheguei em Brasília, em 1997, para fazer o mestrado na UnB. O lugar em que primeiro morei foi um predinho JK na quadra 412 sul, originalmente de um quarto que foi minha casa de março de 1997 a abril de 1998, quando mudei para o alojamento da UnB. 

Esse apartamento da 412 sul era originalmente de um quarto mas que, em nosso caso, tinha dois quartos. Transformaram o banheiro em quarto e a área de serviço em banheiro. Botei uma beliche nesse banheiro, transformado em quarto (veja na primeira foto), no qual somente cabia uma beliche, um armário de duas portas (de meu colega de quarto, que era qualquer um que aceitasse estar ali) e minha estante de aço, na qual eu conseguia colocar tudo o que eu tinha de pertences.


1997 foi um dos piores anos de minha vida, no qual senti uma solidão extrema, que nunca havia sentido antes. Eu simplesmente não conseguia fazer amigos em Brasília. Em Ribeirão Preto as pessoas eram bem mais calorosas e próximas. Em Brasília imperava um cheiro horrível de apartheid social e as tribos eram muito fechadinhas. As pessoas não conversavam com estranhos e parecia não haver muita gratuidade nas interações com desconhecidos. E assim tentei sobreviver aqui, como um completo estranho, durante um ano. Quase desisti de tudo, para me tornar professor de inglês. Mas, como eu sempre adiava o dia da desistência, da rendição, acabei sobrevivendo à Brasília, ao mestrado, à minha solidão.

- Mas quando tudo melhorou, papai?

- Quando chegou o peruano, minha filha...

O peruano era Martin. Ele dormia na parte de baixo da beliche e eu na parte de cima. Martin trouxe uma televisão e alegria de viver com simplicidade. Compartilhávamos algumas refeições (ceviche, uns mexidos que eu fazia e outras coisinhas mais), psicotrópicos recreativos e sucos, principalmente chicha morada. Martin havia trazido leveza e vida comunitária para um lar que antes era dividido entre o quarto do playboy (o terceiro morador, que habitava o quarto real) e o resto, que era um grande vazio, porque eu praticamente morava na biblioteca da UnB e, antes de Martin, meus colegas de beliche eram muito ausentes. Um vivia em imersões em trabalhos de campo, no meio do mato, para seu mestrado e o outro era uma pessoa seca, esturricada, absurdamente miserável, avara, anal, altamente controlada e limitada, com a qual não era possível ter uma troca que me tirasse do deserto no qual eu ainda resistia em respirar.

Vejo aqui que hoje o aluguel de um apartamento desses está por volta de R$ 1200. O playboy pagava metade e o condomínio era dividido por 3. Resumindo: se fosse hoje eu ganharia 1,5 mil de bolsa de mestrado e pagaria 450 reais para morar (aluguel mais condomínio). Bastava eu pegar uma folha de papel, escrever “Vaga em república, na 412 sul! Aluguel + condomíno = 450 reais!”, e pregar em alguns murais da UnB, que logo aparecia alguém. 

Lembro que eu estava em Ribeirão, em algum feriado de 1997, e recebi o telefonema de alguém que queria a vaga. Eu nunca tinha visto a pessoa, nem tinha referência alguma do sujeito, e aceitei. Não havia nada de valor que alguém pudesse me roubar. 

Eu vestia camisetas promocionais de políticos ou lojas, tinhas poucas roupas, somente um ou dois pares de tênis, meu colchão era uma espuma, anteriormente usada por anos a fio por um idoso, que morrera, dois anos antes, e aquele colchão acabou se tornando meu gostoso repouso, que eu havia trazido de Ribeirão, junto com minha Caloi 10 1976 (com guidão de Ceci), enrolado e pendurado em meus ombros com uma corda (a mochila num ombro e o colchão no outro), em cima da bicicleta, da rodoferroviária do Plano Piloto até a 412 sul, em março de 1997. 

E 1997 foi um ano bem difícil, com minha lembrança culminante de angústia e solidão quando, não aguentando mais, resolvi pegar minha Caloi 10 1976 e cruzar o Plano Piloto, lugar no qual nunca mais quero morar. Saí da 412 e fui devagarinho me dirigindo para  a Asa Norte. Objetivo: conhecer as garotas de programa da 315 norte, sem saber que 12 anos depois eu iria morar bem em cima delas, na 715 norte.

A carência era tanta que eu imaginava que uma garota de programa poderia me resgatar. Mas eu nunca havia passado uma noite com uma delas, apesar de sempre ter sentido uma curiosidade enorme. Então, em pleno domingo à noite, exatamente na hora em que o Fantástico estava passando, eu vagarosamente me dirigia para a 315 norte, uns 15 quilômetros de minha casa. 

Depois de cerca de uma hora cheguei por fim à 315 norte, e as meninas estavam lá, esperando pelos clientes. Algumas eram lindas, transbordavam charme e volúpia. Mas tive coragem de somente apreciá-las ao longe, meio escondido, amparado por minha Caloi 10, de 20 anos de idade.

Engoli minhas palavras, meu desejo de interação, e voltei para casa. No caminho, na contramão da Via W2 Norte, e da vida, eu olhava para os apartamentos e para inúmeros prédios de Brasília e pensava: 

“Ninguém, absolutamente ninguém aqui nesta cidade me conhece, e eu nem tive a coragem de conversar com uma garota de programa. E as garotas de programa são seres tentadores, com as quais nunca interagi mais do que alguns minutos nessa vida. Nunca conheci uma garota de programa. Somente soube uma vez de uma delas, de seu nome de guerra, e de seu convite: “e aí, meu querido, tá a fim de um programinha?”, numa noite perdida em 1988, quando eu tinha 16 anos de idade, logo após ter sido espectador de seu show de strip-tease, em um prostíbulo, afastado da cidade, para onde um amigo de 19 anos havia me levado, juntamente com Edu, meu finado irmão, que tinha 18. “Obrigado, mas não tenho um tostão”. E era verdade. Estávamos ali de bico.

Eu voltava pra casa, sozinho, numa noite de domingo, tarde da noite, de bicicleta, na contramão da rua, da alegria e do prazer, vendo que Brasília era imensa e completamente fria a qualquer tentativa minha de habitá-la com um pouco de meu afeto, de meu desespero em ter ali um pouco de amor...

* Fotos ilustrativas de como eram mais ou menos meu quarto, da beliche, e minha bike, que na verdade era azul.

Thursday, August 06, 2020

Sua mãozinha a repousar na minha


Meu mundo inteiro balança, dança e corre, criança. Corre, criança, corre sua alegria para apaziguar a angústia de quem se pensa dono de tudo, e que não sabe mais brincar. A música da vida toca fundo, em meu coração, quando na minha repousa singela a sua mão...

Depois do vórtice

Como já mencionei anteriormente, aqui em nosso condomínio uma pessoa faleceu ontem, levada pela covid-19. Acordei ouvindo algo que parecia um choro, baixo, sofrido, e logo imaginei que alguém poderia estar velando, em ausência do corpo, o familiar que se fora. 

Ouvi por uns instantes, para compreender melhor...

Era o uivo do vento. Fiquei por um tempo parado, sentindo a anestesia do sono e assim meio veio a lembrança de meu último sonho desta noite. 

Era um pós desastre, o dia seguinte, os dias ou meses que se seguiam após a destruição, após talvez uma grande onda (de muitas) de destruição. Eu reencontrava pessoas e algumas que haviam se perdido durantes os tempos do vórtice, e agora retornavam.

Eu abraçava forte dois grandes amigos. Estávamos os três emotivos. Eram dois homens duros, que haviam sofrido, assim como eu, que nunca me vi como duro ou durão, e também nunca fui visto assim por minha família de origem, meus pais e irmãos. Mas, fora de casa, anos depois, já fui visto como durão por algumas pessoas, e não foram poucas. 

No início da pandemia, no CAPS, muitos estavam assustados, principalmente com as informações que eu trazia, de como seria enfrentar essas ondas de destruição. Até que, em um determinado ponto da conversa, minha voz falhou e saíram-me lágrimas dos olhos.

Pelo olhar e reação de alguns, penalizados com meu choro, com minha expressão de sofrimento, lembrei-me de uma outra colega de trabalho, de outro setor, surpresa:

- Nossa, você também chora, também sofre... Eu não me dava conta disso. Porque você é sempre tão firme, tão duro.

No último sonho desta noite éramos três homens duros, muito duros, que quase ninguém imagina que sofrem, se abraçando, e chorando, dias ou talvez meses após uma forte onda de destruição.

Era um trio de machos infelizes chorando, bem rapidamente, abraçados, como crianças. Aquele abraço rápido e forte, doloroso, que chega a machucar o corpo, de quem pouco se abraça ou não sabe ter e dar carinho. Abraço besta, de macho, de machucar. Um choro que vem como uma onda forte, fulminante, rápida, e em um instante volta carregando tudo o que destruiu, com choros já engolidos e devidamente guardados na gaveta de quem sabe bem que também sofre.

Sunday, August 02, 2020

Humildade

Para ser humilde, amiúde, basta ser acessível, respeitoso e polido (com todo mundo, sem distinção), se expressar de modo simples e claro, e compreender que o acaso desempenha um papel relevante em nossas conquistas, que ninguém é produto de si mesmo. O humilde também é grato. Sabe que sem os outros não somos nada. A construção do eu, dos indivíduos, em suas venturas e desventuras, é sempre coletiva.

Wednesday, July 15, 2020

Estamos vivenciando uma epidemia de depressão?

Estamos vivenciando uma epidemia de transtornos mentais, principalmente de depressão? Esta é uma questão recorrente, para a qual fiz um levantamento de 10 possíveis fatores relacionados:

1. A possibilidade da ocorrência de sobrenotificações.

2. Enfraquecimento do sentido de pertencimento, de comunidade, da vida comunitária.

3. Descuidos com exposição à luz solar (diminuição).

4. Dietas com muito açúcar, carboidratos simples, alimentos processados e pobres em diversidade de vegetais.

5. Comprometimento da qualidade e quantidade de horas de sono.

6. Os fatores relacionados à instabilidade de vínculos afetivos, os quais vêm sendo elaborados geralmente sob a denominação de liquefação da vida e dos laços amorosos.

7. Multiplicidade de referências e de exigências de desempenho, nos mais variados contextos.

8. A importância da atividade física regular e motivada de modo saudável.

9. O aumento da incidência de doenças crônicas nas sociedades mais industrializadas e urbanizadas que, por sua vez, tem associação com a dieta, uso aumentado e indiscriminado de antibióticos, menor exposição à luz solar e diminuição de atividade física regular.

10. Intensificação do uso de redes sociais e algumas possíveis consequências nefastas: ciberbullying; distorções relativas a autoimagem e autoestima, com comparações a padrões e ideais ilusórios ou distantes da realidade.

Tuesday, July 14, 2020

Meus sonhos e um pouco da Psicanálise

Há 5 anos o que me fez decidir que eu tinha de voltar para a terapia foi um sonho. Já vinha enfrentando um perrengue de mais de um ano, em um momento difícil de minha vida, como não ocorria havia uns dez anos. 

E o pior é que tenho, na memória (que sei de seu potencial de ilusão), tudo esquadrinhado. Lembro de quase tudo, em praticamente cada mês de minha vida, desde meus 7 anos de idade. De antes disso também tenho lembranças, as mais diversas, mas não são tão organizadas em mês, ano e dia. Sim, lembro-me até mesmo de alguns dias marcantes como, por exemplo, do dia em que tive uma crise de angústia, minha primeira crise de angústia da adolescência, há 35 anos, no dia 28 de junho de 1985.

E há poucos dias tive novamente um sonho intenso, porém aparentemente mais desligado de meus atuais dramas cotidianos. Sonhei que havia uma casa, enorme, com vários andares, que eu tinha como minha morada, minha proteção. Aquela casa de certo modo representa a minha sobrevivência. Ali viviam e dormiam todas as pessoas que eu amava. Ali estava a família que eu tinha ou tinha tido por muito tempo, e essa coisa de deixar uma casa na qual eu havia vivido por muito tempo, com várias pessoas que eu amava, nunca ocorreu em minha vida. 

Apesar de não haver referência direta a nada, sinto que aquela casa, do sonho, representa minha sobrevivência material e afetiva, pois já estive em algumas “casas” assim em diversos momentos de minha vida. Já senti que eu dependia profundamente de algumas pessoas. Quem ama sente isso. Então sinto que dependo profundamente de algumas pessoas. 

Não é somente o sentimento de que tem o pão que gostamos na padaria da esquina e, se ela falir, logo encontramos outra. É bem mais profundo que isso, porque não se trata somente de pão. Assim como para um bebê uma mãe não é somente provisão de leite. O apego ao peito da mãe, de querer ficar ali grudado o dia todo tem, amiúde, no leite, pouca relevância, depois que essa criança já não é mais um recém-nascido, porque existe uma coisa chamada apego, amor, que pode se transmutar em algo mais valioso do que a mera sobrevivência, que precisa de comida. 

Porque há situações, em nossas vidas, em que deixaremos de comer, para podermos recuperar, resgatar, quem amamos. O alimento, matar a fome, continuar vivo, se torna pequeno diante da sensação de que estamos perdendo quem amamos, ou também da necessidade de permanecermos do lado de quem nos encantou, por quem nos apaixonamos. Poderá haver situações em que estaremos dispostos a deixar de viver se não nos for possível continuar vivendo nosso amor ou nossa ilusão do que ele poderia ser. 

Freud se espantava diante disso, diante desse tipo de cenário. Poetas e artistas, desde que existe humanidade, se espantam. Os dois sonhos, o que tive há poucos dias e há 5 anos, me espantaram, me mobilizaram. Porque sonhos são espantosos. Têm, amiúde, o gosto de algo completamente novo. 

Porque o espanto é isso, ou é também isso, ter a sensação de que estamos lidando com algo absolutamente inédito e impactante, e que pode também nos acometer se esse algo contiver ambiguidade, contradição, conflito, o enigma de uma aparente coexistência de contrários.

Neste sonho mais recente, da casa que eu não queria deixar, havia uma figura de autoridade, um homem que me autorizaria continuar ali ou não, uma espécie de guardião da senhora que eu amava e que, do que consigo me lembrar, era secundária nesse sonho especificamente. Não consigo me lembrar de seu rosto, nem de qualquer outra característica física. Só sei que era uma senhora, não uma jovem. E seu guardião se comportava como um irmão mais velho, um pai ou até mesmo um marido ou ex-marido que iria dividir o amor dela comigo. 

Para os freudianos (e me refiro a eles em sentido lato) está aí configurada uma tríade fundamental: o eu, a figura primordial e a secundária do amor. A primordial é o objeto primeiro de nosso amor. A secundária é o interdito, é originalmente um opressor, que bloqueia o amor louco e sanguinário, a impedir que devoremos quem amamos. 

No sonho eu olhava para esse homem, para seus olhos claros, sua compleição física menor do que a minha, para sua pseudoprofundidade afetada, sua falta de erudição, sua ignorância, para sua desimportância social, para seu tamanho diminuto no mundo dos homens, e o temia, o respeitava, como a um pai, como a uma pessoa que o mundo encheu de autoridade, para estar ali, na minha frente, me dizendo seu poderia ou não ter acesso a quem eu amava. Esse homem somente se sustentava com base em um único pilar: sua autoridade. Era grande somente por isso: porque estava num posto de autoridade. 

Esse homem, contudo, era honesto e suficientemente justo e coerente. Isso bastava para aceitá-lo como a autoridade que lhe fora conferida. E pior, eu também tinha afeto por esse homem. Era alguém da minha família. Não, não estou dizendo que ele representa meu pai, ou alguém em específico. Seria bastante precipitado afirmar isso. Seria equivocado rotular essa autoridade como sendo simbolicamente meu pai. 

Mas essa figura opressiva, de autoridade, estava ali, e era alguém que eu havia aprendido a amar. Para os freudianos uma espécie de Síndrome de Estocolmo é algo constitutivo para a formação de uma personalidade sadia. Porque o mundo não é feito somente de acessos livres ao amor. Porque o amor também tem regras. Porque eros, sozinho, devora e destrói tudo à sua volta. O equilíbrio entre eros e philia é todo entrelaçado por uma série de regras. Isso também faz com que nos apeguemos a regras e a quem as enuncia. 

Porém eu quis escrever sobre sonhos e seu impacto, o espanto que nos desperta, e pode nos fazer querer adormecer novamente, para ver se ali encontramos respostas e diretrizes. E também o espanto de acordar, logo após um sonho, e não entender nosso amor ou desejo por personagens, objetos e lugares aparentemente sem qualquer tipo de relação com nossas vidas. 

Os mais esotéricos, geralmente reencarnacionistas, vão logo associar isso tudo com objetos de suas crenças em outros corpos que viveram outras vidas, em outros tempos e lugares. Os freudianos vão sempre chamar a atenção para o que existe aqui e agora, em sua realidade de desejo, de pulsão. E se alguém, num sonho, se afigura como um completo estranho que é, ao mesmo tempo, familiar, isso se deve em parte aos mecanismos de condensação e deslocamento. O homem de meu sonho, nesse caso, seria esse completo estranho-familiar porque é uma percepção resultante da sobreposição, da junção de algumas ou várias características em uma só. Seu rosto, de olhar firme e olhos claros, seria um compósito resultante da junção de pedaços de memórias. 

Os freudianos são apegados a isso. A esse espanto que pode lhes apontar direções. Seguir essas impressões, e cultivá-las, iluminaria parte relevante do caminho a ser trilhado, do que deve ser feito. 
Este sonho me fez pensar sobre meu percurso, desde minha primeira terapia, de orientação psicanalítica, há quase 30 anos. Eu estava prestes a completar 20 anos de idade. Comparecia disciplinadamente a todas as sessões. Sentia-me completamente acolhido e confiante na ética e responsabilidade da psicóloga comigo. 

Lembro-me que a terapia ia caminhando, e aos poucos se aprofundando. Das 3 terapias de orientação psicanalítica que fiz, àquela época, duas delas foram assim. Iam aos poucos se aprofundando e o terapeuta sempre a me convidar para mergulhar em um abismo profundo e perigoso. Era um movimento constante de tocar na ferida, remexê-la, revirá-la, cultivá-la. Havia o incentivo constante para se borbulhar sentimentos. Era o incentivo à catarse, a vivenciar emoções, à purgação de afetos. Botar para fora, chorar, receber colo, sentir-se em casa, protegido, amado, e depois analisar cada pedacinho do que fora regurgitado. 

A primeira vez, inclusive, na qual chorei em sessão, foi gratificada:

- Agora você entrou em terapia! Hoje senti você aqui, inteiro... - dizia a terapeuta.

Saí de seu consultório e, cerca de uma hora depois, eu confraternizava com alguns colegas, com pessoas que tinham a possibilidade de serem minhas amigas, e eu surpreendente e espontaneamente as abraçava. Isso era inédito em minha vida, e eu nem mesmo entendia como estava ali espontaneamente abraçando aquelas pessoas, e como aquilo estava a ocorrer de modo tão simples e relevante. 

Meu sentimento era de que eu era agora alguém também capaz de fazer amigos em ambientes totalmente separados de minha família. Eu não precisava mais da autorização de meus irmãos para isso. E eu também sentia que o amor poderia aparecer. E o amor aparecer dizia respeito a um nível de envolvimento que eu jamais havia vivenciado fora da consanguinidade. Toda a complexidade do amor poderia agora acontecer com estranhos. 

As três primeiras terapias que fiz eram de orientação psicanalítica. E dois desses terapeutas cutucaram muito minha vida e minhas feridas. Tiveram muita autoridade sobre mim. Comportaram-se, amiúde, como o homem de olhos claros. Lancei-me no abismo, um pouco empurrado por um desses terapeutas, tentando lhe provar que eu era capaz de me envolver, de amar alguém fora da minha consanguinidade. 

Esse sonho, sua aparente pujança, o debate que tenho acompanhado sobre a cientificidade da Psicanálise, os sentimentos e angústias dos quais padecemos, e que por vezes ficam à flor da pele, como nosso mundo lida com isso, como muitos terapeutas lidam com isso, a sensação de profundidade, de espanto, surpresa, o gozo de se cultivar isso, e o tanto que podemos adoecer, ou nos tornarmos mais fortes e saudáveis, a depender de como lidamos com essas coisas, fez com eu divagasse nesse texto. E talvez eu tenha até me perdido um pouco em memórias, que entretêm a muitos que leem. Teria espaço para continuar, e vigorar em páginas, que depois se transmutam em livro. 

Mas não sou autor de livros, apesar de já ter publicado 8 deles. Sou mesmo autor de pequenos textos de Facebook, que depois se esconde em alguns livros.

Efeito borboleta

E imaginar que há 25 anos, se eu tivesse escolhido continuar trabalhando no laboratório de ergonomia cognitiva, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, da USP de Ribeirão Preto, hoje minha vida seria muito diferente. Ou se, há 30 anos, eu não tivesse deixado de responder a algumas questões de história, na Fuvest, teria então sido aprovado para o curso de jornalismo, também na USP (naquele ano chamaram 51 candidatos; fui o 53º). Mas, convenhamos, as maiores tendências, ao se vislumbrar todo o espectro, nem eram essas. A vida somente se entortou para o lado dos estudos devido aos traumas de minha mãe. Sem esses traumas, estaríamos mais voltados para as influências de meu pai, que sonhava com os filhos como militares na força aérea ou mecânicos gerais, de bicicletas, motos, automóveis ou aviões. Um simples movimento diferente na vida acarreta inúmeras mudanças adiante. Somos mais obra do acaso. Até mesmo a força de alguém ferido, a entortar e desviar tendências, é obra do acaso. E assim se explica o trauma de minha mãe, de ter sido muito pobre, de ter passado por inúmeras privações, e eu aqui agora escrevendo esse pequeno texto de memórias.

Sunday, July 05, 2020

Sobre a angústia da finitude


Existe uma angústia em relação à finitude, da qual todos padecemos, em maior ou menor grau. Trata-se de uma angústia que foi inclusive muito tematizada durante a história, principalmente, mais atualmente, pelos existencialistas.

Costumo sentir essa angústia, de que tudo um dia irá se acabar, com mais frequência no período da tarde, em casa, em silêncio, deitado, no quarto. Nos vazios de algumas tardes secas e quentes é que, por vezes, acabo tumultuado pela dor súbita e aguda de que uma hora deixarei de existir.

E o mais curioso é que os gatilhos para que eu sinta essa angústia são mais ou menos esses: um determinado horário do dia, silêncio total, insônia ou um certo apego ao estado de vigília.

E um sentimento aparentemente contrário me acomete quando estou sob o efeito de algum psicotrópico anestesiante. Em estado de ebriedade ou embriaguez senti muitas vezes fascinação pela morte, pelo fim de tudo, com um desejo intenso de mergulhar cada vez mais nesse estado anestesiado e assim deixar de desistir. E, nesses contextos, isso me acometeu, por várias vezes, sem que eu estivesse me sentindo oprimido, deprimido, ou com qualquer tipo de sofrimento que me impelisse ao autoextermínio.

Existimos muito pouco na existência de tudo. Somos quase nada quando pensamos na escala de tempo e espaço do universo. O que mais sucedeu e sucede é nossa própria inexistência individual. Somos na verdade aquilo que não cessa de não acontecer em praticamente tudo aquilo que acontece, aconteceu e acontecerá.

Porém, há um paradoxo. Apesar de existirmos muito pouco na existência de tudo, muitas vezes sentimos que existimos demais para nós mesmos. Quem sofre, intensamente, sente, de certo modo, que está existindo demais para si mesmo.

Sob o uso prazeroso de alguma droga estimulante ou alucinógena também é possível sentir isso, que existimos demais para nós mesmos, porém sem a parte do sofrimento. É uma experiência de transbordamento.

E faz sentido também retomar a conhecida citação de Epicuro:

“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não é; e quando a morte existe, nós não somos.”

A morte faz parte da vida somente em nossas conjecturas e angústias.

Wednesday, June 24, 2020

A covardia

Algumas pessoas, diria Gandhi, de tão fracas que são, para se sentirem fortes, precisam humilhar outras.

Não é covarde quem tem medo de alguma coisa da qual ninguém tem. Não é covarde quem tem algum tipo de fobia ou medo de algo em específico. Isso está mais para as definições de sensível ou medroso.

Covarde é o sádico, o opressor, que lambe botas de quem é mais poderoso e massacra quem tem menos poder. Lambe botas dos chefes, dos superiores, e massacra subordinados. É comum que bajuladores sejam também covardes. Além de falso apreço, com comportamento interesseiro, são altamente propensos à traição, porque prestam fidelidade somente ao poder.

A crueldade é o ápice da covardia. Bater em alguém no chão, já rendido, em quem todo mundo já está batendo, é covardia. Linchadores são fundamentalmente covardes.

Até os omissos poderiam ser vistos, em boa parte das vezes, não como covardes, mas sim como medíocres, medrosos ou temerários, cúmplices da covardia de pessoas que amiúde esses omissos também obedecerão. Porque sempre se contentaram em fazer parte de um rebanho mudo e acuado.

O contrário da covardia não é simplesmente a coragem. É, antes de tudo, a justiça, a compaixão e a generosidade. O covarde padece de uma profunda mesquinhez de espírito.

Sunday, June 21, 2020

Depressão como rebelião ao capitalismo?


Alguns colegas psicólogos, engajados no que eles acreditam que seja uma crítica fundamentada ao capitalismo, defendem que a epidemia atual de depressão é um problema relativo à excessos e não em relação à falta, e que o depressivo é uma pessoa que se rebelou contra esse sistema baseado no lucro e na produtividade.

Olha, desculpem-me, mas colocar as coisas nesses termos é extremamente simplista e não tem relação alguma com as evidências científicas.

A epidemia atual de depressão pode ter relação com diversos fenômenos, que provavelmente atuam das mais variadas formas. O primeiro ponto é que houve, por parte da sociedade, nos últimos 40 anos, uma apropriação maior do trabalho da psiquiatria e da indústria farmacêutica de psicotrópicos.

Então primeiramente temos de avaliar que não existe simplesmente um sujeito se rebelando contra isso. O que existe é um sistema que pode muito bem também estar superdiagnosticando as pessoas. Então não existiriam pessoas que estão se rebelando, mas sim sendo enquadradas em categorias que antes não existiam ou, se existiam, não estavam sendo valorizadas ou tomadas oficialmente como categorias de doenças.

Não é muito difícil de entender que esta hipótese é algo a ser considerado, porque as pessoas iam menos a psiquiatras, e tinham portanto menos diagnósticos de transtornos mentais. O que antes era muitas vezes considerado tristeza, desânimo ou angústia, hoje é considerado depressão ou algum transtorno similar.

A hipótese de que antes havia uma pressão muito menor para a produtividade e para o alcance de uma série de ideais, inclusive de beleza, pode sim ser levada em conta, e faz sentido. Mas transformar isso na causa da depressão, e transformar o depressivo em alguém que está se rebelando, como se isso pudesse depois servir de combustível para uma espécie de movimento revolucionário, é deveras simplista.

Há uma variedade de situações que pode fazer com que uma pessoa passe a exibir sintomas de depressão. Uma abordagem científica possível é que essa variedade de situações pode ser classificada em alguns conjuntos.

Existe a hipótese científica relacionada à perda, de que os sintomas depressivos estariam fundamentalmente associados a alguma perda, seja ela objetiva ou subjetiva. Porque existem pessoas que estão deprimidas devido à perda de algum ente querido, perdas financeiras, ou até mesmo à perda de algum ideal ou de uma rotina, a qual estavam adaptadas, e que agora não estariam mais. Quebras de expectativas podem gerar sintomas depressivos. Porque às vezes é pior cair de um sonho, do que cair do telhado e quebrar a perna.

Enfim, quando estamos falando, por exemplo, de perdas, podemos estar falando de uma infinidade de situações possíveis, que podem gerar sintomas depressivos, e esta é uma hipótese que existe e está em debate no meio científico.

Outras hipóteses científicas referentes a genealogia de sintomas depressivos apontam para o aumento de estimulações aversivas e/ou a diminuição da quantidade e/ou da densidade de gratificações as quais alguém está sendo exposto.

Existem também as evidências relativas ao desamparo aprendido. Imagine que você esteja na seguinte situação que, na sua experiência, ou na sua percepção, tudo que você faz sempre resulta em um contexto desagradável, aversivo ou punitivo.

Seria mais ou menos como na metáfora popular de que se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come. A pessoa simplesmente se sente sem saída. Porque no contexto em que se encontra parece que tudo o que faz sempre produz o mesmo resultado, que é basicamente doloroso. Então ela simplesmente deixa de fazer as coisas. Ela simplesmente não irá fazer mais nada, porque o custo é muito menor. Faz muito mais sentido ficar parado, do que ficar correndo atrás das coisas e obtendo sempre o mesmo resultado.

E isso obviamente não pode ser reduzido ao modelo capitalista, porque existe uma infinidade de situações que podem produzir isso, inclusive dentro de casa, numa relação doentia, excessivamente punitiva, entre pais e filhos, por exemplo.

Creio que até mesmo a hipótese científica do duplo-vínculo, para tentar dar conta um pouco de fenômenos psicóticos, pode ser aqui vislumbrada como uma possibilidade, em algumas interações mais específicas, para tratar da formulação de hipóteses referentes a alguns sintomas depressivos. O duplo-vínculo diz respeito a situações nas quais são emitidas mensagens de duplo sentido, fazendo com que a pessoa que sofre as consequências disso não consiga entender qual seria o modo mais adequado de como ela deveria se comportar.

O exemplo clássico, citado pelos propositores dessa hipótese, é o da mãe que vai visitar o filho em um hospital psiquiátrico. Quando ela chega, olha para ele e pergunta porque ele está com aquele olhar diferente, frio e apático, em uma crítica ao jeito frio do filho. Ele a abraça, e logo em seguida, minutos depois, a mãe já manifesta uma mensagem contrária, de que ele seria muito dependente ou inoportuno em suas aproximações físicas.

E o duplo vínculo, veja bem, é algo que ocorre com bastante frequência em interações humanas, que irão depois, com o tempo, produzir sintomas de psicose ou até mesmo de depressão. Porque a pessoa enlouquece, ou entra mesmo em depressão, com alguém, que a controla, e que está o tempo todo lhe exigindo duas coisas contrárias.

Foro fato de que existem as mais variadas situações em que alguém é submetido constantemente a punições. E a punição, em um sentido mais técnico, não é uma situação formal em que uma pessoa simplesmente castiga a outra. O contexto punitivo é simplesmente o contexto em que a consequência de nossas ações é dolorosa.

Se tudo o que você faz resulta sempre em sofrimento, a tendência é uma espécie de desânimo generalizado, é não querer fazer mais nada. Imagine uma pessoa que tem uma doença debilitante, que produz dor crônica dia e noite. Essa pessoa, obviamente, está mais vulnerável à depressão. Podemos, e devemos, fazer inúmeras críticas ao capitalismo. Mas qual é a relação do capitalismo com isso?

Então se uma vida na qual prevalecem consequências dolorosas é mais vulnerável a sintomas de depressão, uma vida esvaziada de gratificações também não produz resultado muito diferente. Embora talvez possam ocorrer diferenças de magnitude e de oportunidades para poder se lidar com o problema.

Muitas pessoas, atualmente, não têm hábitos saudáveis, por uma série de motivos:

- Não possuem uma higiene adequada do sono, muitas inclusive em comportamentos como o que estou tendo agora, à 1 hora da manhã, de frente para um tela, com luminosidade na cara, inibindo a produção de melatonina. Não têm rotina de sono. Frequentam baladas várias vezes na semana, tendo dias em que dormem muito tarde e outros não, ou então fazendo o uso abusivo principalmente de bebidas alcoólicas e tabaco. Ou com frequência ficam jogando videogame, assistindo televisão ou na internet até 4 horas da manhã, para depois acordar uma hora da tarde. Outras simplesmente trocam o dia pela noite e, convenhamos, trocar o dia pela noite é algo que contraria completamente uma série de recomendações para uma vida saudável. E isso não é simplesmente culpa do capitalismo. Um conservador, bem capitalista, poderia dizer que é falta de disciplina e dissolução da família, tendo como consequência a ausência da figura paterna, de autoridade, e blablablá...

- Comem muita comida processada, com uma dieta pouca variada, pouca fibra, com excesso de carboidratos simples, frituras, sal e açúcar.

- Não fazem qualquer tipo de atividade física, e se expõem muito pouco à luminosidade natural e espaços ao ar livre.

- Fora as pessoas que estão muito atribuladas, estressadas, com uma série de atividades e compromissos que tomaram para si, e não estão dando conta. É óbvio que isso não acaba bem. E fique à vontade para botar isso na conta do capitalismo, ou de quem você achar melhor.

- Sem contar uma série de situações que são produtoras de sintomas de ansiedade e depressão: desemprego, assédio no ambiente de trabalho, relacionamentos abusivos, vínculos frágeis e instáveis, conflitos familiares intensos e frequentes, ou a diminuição de vínculos comunitários, devido à intensificação da urbanidade, e consequentemente da individualização, em todo o processo de desenvolvimento da modernidade na história da civilização ocidental, etc...

Da mesma forma que algumas pessoas querem colocar tudo na conta do capitalismo, dá para um conservador tranquilamente colocar tudo na conta da dissolução da família e da degeneração dos costumes.

Thursday, June 18, 2020

Aniversários


Por ser uma criança muito sensível, meu pai imaginava que eu não resistiria às durezas da vida, mas eu de vez em quando levantava, dava uma renascida. Aos 13 e 14 anos de idade me vi no abismo de me perceber como um completo estranho nesse mundo. Esperei, quietinho, e contava os dias, durante meses, a fio, como um condenado: "mais um dia de resistência, mais um dia...". Até que de repente parei de contar, porque não estava mais somente resistindo, sobrevivendo.

Agora eu vivia novamente, como a gente sabe, como a gente ouve, de muita gente...

Os anos se passaram e consegui me embrutecer, e ver meu irmão mais velho, que sempre fora tido como durão, começando a abrir o olho para um mundo mais vasto, injusto e barulhento.

Mas ninguém que não seja um psicopata, cego para os outros, e incapaz de amar e cuidar, é tão durão. Ele se sensibilizava, começava a ver o mundo como eu já tinha visto e sentido, e me pedia desculpas pelo passado. Eu, já embrutecido, em paz com ele e com o passado, tentava mostrar-lhe que estava tudo bem, que tinha passado.

E ele, o predileto de meu pai, mas massacrado pelas vias tortas de um mundo embrutecido, depois de mais de 10 anos se dando conta do volume de dores que compõe a vida da maioria dos seres que sofrem, não resistiu ao peso de também se sentir um estranho nisso tudo.

Hoje, no meio dessa pandemia, em que contamos os dias de resistência, acordo novamente com uma impressão, já um pouco envelhecida, de que comemorar um aniversário é muitas vezes um brinde, envergonhado e discreto, no meio da lama de um campo de batalhas, onde muitos já caíram.

Então brindo, ou me curvo, à memória dos que caíram, em respeito e reverência à dor de todos os seres que sofrem, e aos meus 48 anos de idade, completos hoje, 18 de junho de 2020.