CRÍTICA DO SENSO COMUM E PROSA - Quem quiser adquirir o livro, acesse o link do canto superior direito
Sunday, June 22, 2025
Pessoas que se autodefinem como boas
Sunday, May 26, 2024
Ninguém merece sofrer
Muito tem se falado sobre merecimento. Eu também, por vezes, digo que alguém merece isso ou aquilo. Dou os parabéns, e digo “você merece”, para o campeão que percebo como tendo se esforçado e treinado muito ou para aquele que consegue fazer o que outros não foram capazes, por exemplo.
Mas aí, para esta segunda condição, muitas vezes me pergunto: se o sujeito já teve a sorte de nascer mais capaz ou mais inteligente, por que teria de ter também mais dinheiro?
Mas não costumo dizer que alguém merece sofrer. Porque não concebo o sofrimento como útil, mas somente como evitável ou inevitável. Assim como concebo o sofrimento como sendo o próprio mal. Então penso que ninguém merece sofrer, e que todos merecemos mudar para melhor, para sermos pessoas melhores, para nós mesmos e para os outros, ajudando assim a diminuir o sofrimento no mundo.
Sinto que ninguém merece ser tratado como rei, rainha ou deus. Ninguém merece ser deusificado. Porque ninguém é perfeito. Merecemos ser amados e lembrados. Mas não merecemos mais do que diz respeito ao que é humano.
E também não vejo sentido em alguém merecer luxos que custam o sangue e a vida de gente pobre e miserável. E, no mundo em que vivemos, ainda é geralmente, ou mesmo inevitavelmente, esse o custo de uma vida luxuosa.
Monday, May 06, 2024
Os juristas e o conceito de livre-arbítrio
Existe livre-arbítrio? Do modo como talvez a maioria das pessoas compreende essa questão, realmente não existe isso. É um conceito que é geralmente adotado no senso comum com tons de autoajuda, ou de um elogio cego de uma liberdade absoluta, que simplesmente não se sustenta na realidade. Porque trata a vida humana como totalmente capaz de liberdade, como se cada ser humano fosse uma constante escolha de si mesmo.
Pensar dessa maneira é acreditar que temos a capacidade de produzir escolhas totalmente acima das circunstâncias. E as circunstâncias não são simplesmente o que nos determinam. Nós somos o somatório ou a interação orgânica, multiplicativa e complexa, de nossas circunstâncias. Nossas circunstâncias definem o que somos. Nós somos isso. A crença de que se pode pairar acima das circunstâncias é no mínimo algo da ordem de uma ingenuidade narcisista. É ilusão, é narcose.
E eu também percebo uma preocupação muito grande, na área do Direito, em relação à necessidade de que exista o conceito de liberdade ou de livre-arbítrio, calcado inclusive na capacidade de se escolher constantemente o que somos. Juristas, de modo geral, são sequestrados pela necessidade da existência do livre-arbítrio, porque se não houver esse tipo de conceito como é que poderíamos atribuir responsabilidade ou mérito a quem quer que seja?
Contudo não tem nada a ver uma coisa com a outra. Podemos muito bem abrir mão desse tipo de conceito metafísico e continuar compreendendo muito bem as devidas responsabilidades relacionadas ao que as pessoas fazem. Compreender que todos somos determinados pelas circunstâncias ou que cada um tem seus motivos ajuda a entender, mas não transforma delitos e crimes em algo razoável ou justo Porque entender explica, mas não justifica. Quando explicamos estamos encontrando as causas, os motivos, mas não estamos tornando algo justo ou razoável.
A ordem da justiça e das justificações é completamente diferente da ordem das explicações. Não se misturam. Alguém que tenha sido abusado e depois passa também a cometer abusos não transforma assim seus crimes em algo justificável. Crimes não se justificam. Podem até ter alguns atenuantes, mas continuam sendo crimes, independentemente dos motivos de cada um.
Como hoje mesmo pude ler, e recomendo, em um texto de Carlos Orsi, sobre um dos principais livros de Daniel Dennett, ele cita uma frase muito emblemática a respeito dessa discussão, atribuída a John Austin:
“Entendimento pode apenas acrescentar desprezo ao ódio”.
Monday, November 08, 2021
Os limites da comunicação não-violenta (CNV)
Comunicação não-violenta não resolve tudo.
É o que existe de mais eficaz para se quebrar com o ciclo da violência, nas interações em que é possível ocorrer um mínimo de comunicação. Contudo, há alguns casos nos quais algumas pessoas aumentam sua agressividade, mesmo quando são abordadas da forma mais pacífica possível, inclusive com as técnicas de comunicação não-violenta.
Eu fazia parte de um grupo virtual, no qual havia umas 40 pessoas, pelas quais, em sua maioria, eu tinha grande apreço e respeito.
Porém, infelizmente, houve um dia em que um das pessoas do grupo ficou bastante irritada comigo e muito agressiva.
Eu estava transtornado com um evento trágico que havia ocorrido em alguma cidade do Brasil, e que estava sendo noticiado pelos jornais. E eu também estava revoltado, porque aquele aquela tragédia podia ter sido evitada. Havia claramente negligência e egoísmo envolvidos.
Porém, para tentar sensibilizar as pessoas para aqueles fatos, e do que podia ser feito, eu narrei a tragédia da forma mais realista possível.
E meu texto narrativo atuou como um gatilho para algumas das pessoas mais sensíveis do grupo. Era como se esse texto contivesse imagens muito fortes. Alguns ali não deram conta de ler sem ficar muito abalados.
Em poucas horas, em privado, comunicaram-se entre si, sobre meu texto, que ele continha excessos, que talvez eu não devesse me expressar daquele modo, ou que eu deveria ter deixado ali um aviso de gatilho para os mais sensíveis.
Até aí tudo bem. Porque qualquer pessoa mais serena teria plenas condições de me comunicar em privado, ou mesmo em público, dentro do grupo, de forma polida, como eu deveria ter procedido, como eles gostariam que eu tivesse procedido. Desse modo tudo teria sido resolvido da forma mais tranquila possível.
Porém infelizmente, não foi isso o que ocorreu. Um dos membros do grupo tomou a palavra, em público, e me repreendeu de modo muito ríspido e truculento.
Confesso que nos primeiros minutos eu simplesmente não sabia o que falar ou o que responder. Fiquei bastante atônito com aquela reação tão desproporcionalmente agressiva. Foi assim que eu senti o contexto do ocorrido. Pode até ser que eu tenho me enganado. Mas meu sentimento, até hoje, é o de que a agressividade daquela pessoa foi muito grande e muito desproporcional.
Então a primeira coisa que fiz, sempre dentro da perspectiva de uma cultura da paz, foi a de pedir as minhas sinceras desculpa para todos os presentes, em virtude dos possíveis efeitos que aquele texto poderia ter provocado na sensibilidade de alguns.
Contudo, para a minha surpresa, isso fez com que essa pessoa aumentasse ainda mais o nível de sua agressividade. Ela pegou minha resposta e retrucou, fazendo trocadilhos e jogos de linguagem, ao ponto de transformar nossa interação, em público, em uma grande humilhação.
Eu me senti totalmente massacrado e humilhado. Confesso que tive muita vontade de também partir para a agressão franca. Eu teria poucas e boas para escrever para aquela pessoa. Mas, como venho há alguns anos fortemente cultivando uma cultura da paz, achei melhor me conter, e continuar com a minha pobre e quase inútil comunicação não-violenta.
Escrevi mais umas duas frases, em tom ainda bastante apaziguador, e me despedi do grupo.
E depois, como em outras vezes em que isso ocorreu em minha vida, eu sentei e chorei. Porque é muito difícil ser tão intensamente agredido, não reagir, se sentir absolutamente humilhado, em público, e ainda assim achar que não vamos sentir nada. Machuca, machuca muito. Dói, e fica doendo durante muito tempo. Isso ocorreu há quase dois anos, e quando começo a me lembrar ainda sinto a mesma dor.
E uma das coisas que também fiz questão de fazer foi a de bloquear essa pessoa, em pelo menos uma de minhas redes sociais, que era a qual utilizávamos algumas vezes para nos comunicar, das poucas vezes em que nos comunicamos em privado, na vida.
Meu sentimento é o de que essa pessoa foi muito covarde. E eu jamais diria isso a ela ali, naquele contexto, porque não é assim que se faz uma comunicação não-violenta. Não é assim se faz redução de danos em interações com potencial para a violência.
Ela percebeu que eu não revidei, que não houve troca de agressões, que houve um pedido de desculpas, e mesmo assim intensificou sua agressividade em cima de mim.
Eu somente soltei mais duas ou três frases, e me despedi do grupo. E não pretendo voltar, apesar da grande maioria das pessoas ali serem fantásticas.
É um grupo de WhatsApp, e eu detesto grupos de WhatsApp. Só faço parte mesmo dos grupos de trabalho, dos quais não há como fugir. E eu estava mesmo um pouco deslocado naquele grupo, me sentindo um completo estranho. Eu não conseguia me manifestar ou me sentir como uma pessoa que agradasse às outras naquele contexto, apesar, como já disse, da grande maioria delas serem pessoas fantásticas.
Horas depois de minha saída, alguns dos membros me enviaram mensagens, em privado, perguntando como eu estava. Perceberam que a agressão havia sido grande. Tiveram compaixão.
Mas ninguém, pelo visto, teve coragem de intervir enquanto as coisas estavam ocorrendo, dentro do grupo. Deixaram rolar, talvez pensando que eu fosse me defender, possivelmente revidando. Não foi isso o que ocorreu, e a humilhação foi completa.
E quem está lendo esse texto pode até pensar que sou um completo idiota, uma pessoa resignada e tola, ou qualquer coisa parecida. Mas a cultura da paz que conheço não é algo que tirei da cartola, não é uma opinião. Está fundamentada pela contribuição de trabalhos acadêmicos. É uma técnica amplamente aceita e adotada, como instrumento de base para abordagens em mediação de conflitos e consultas com pacientes em variadas especialidades. E serve também para a vida diária.
Porém, como já disse, não é infalível. Diante de padrões de comportamento covardes e sádicos talvez seja completamente inútil, e possivelmente em muitos desses contextos não exista outro modo de nos comportarmos. Porque simplesmente revidar é sempre mais arriscado, e provavelmente mais danoso. A agressividade mútua pode se intensificar. E dependendo do contexto, e das pessoas envolvidas, os danos podem ser muito grandes e irreversíveis.
Uma das melhores coisas a se fazer em situações como essa é fugir, escapar, o mais rápido possível. E foi, de certo modo, o que fiz.
Sim, dói, dói bastante. Mas minha experiência de vida me diz que foi o melhor a ser feito. Em várias outras situações, nos últimos 30 anos, atuei de modo bastante agressivo, conseguindo inclusive agredir muito mais a quem me agrediu, revidando, e os resultados, as consequências, não foram nada boas. Foi muito mais doloroso do que ser agredido, não revidar, e fugir.
É isso também não quer dizer que eu sempre consigo atuar de modo pacífico. Algumas vezes eu revido, e parto mesmo para a agressão, o que deixa inclusive algumas pessoas bastante assustadas, porque não imaginavam que eu era capaz de tanta violência verbal e termos de bem baixo calão.
Porém, conscientemente, se alguém me perguntar qual é a opção que eu geralmente tento perseguir, ela é esta, a de uma cultura da paz e da comunicação não-violenta. E, sim, em muitos casos eu prefiro fugir. Podem me chamar de fujão.
Saturday, May 15, 2021
Ajudar alguém que amamos a viver e a morrer...
Outubro de 2012.
Tive uma conversa importante com minha mãe esses dias. Ela está com uma doença crônica que muitas vezes a incapacita quase que totalmente, prostrando-a na cama durante todo o dia, em várias ocasiões.
Ela tem quase 66 anos. Vive sozinha e com uma rede de apoio social e familiar deficitária. Eu estou vivendo a 720 km dela e meu irmão mora na Inglaterra.
Quando está em crise, ela sempre se queixa e muitas vezes diz que preferia deixar de viver. O fato de seu filho mais velho (meu irmão mais velho) ter cometido suicídio em 1998, com 28 anos de idade, não produziu nela qualquer espécie de repúdio pelo suicídio ou pelos suicidas. Pelo contrário. Ela muitas vezes se refere ao meu irmão como alguém de coragem, como alguém que aproveitou bastante de sua juventude e se foi dessa vida sem envelhecer, sem viver todos os dramas da velhice.
Assim como meu irmão, sei que minha mãe é também muito bem capaz de cometer suicídio. Esta possibilidade me aterroriza mais do que se ela tivesse uma morte natural ou acidental. Assim como o era com meu irmão, conviver com essa possibilidade de minha mãe fazer o mesmo era muito perturbador para mim até termos essa conversa, há poucos dias. Hoje minha angústia e meu medo são bem menores. Nessa conversa franca, a qual não fui capaz de ter com meu irmão, eu lhe disse mais ou menos assim:
“Mãe, por favor, não tome uma decisão drástica como a do Edu sem antes pedir socorro, sem falar comigo, sem abrir o jogo. Se você quiser morrer, me fale, porque aí eu largo tudo e vou fazer de tudo para ajudar a aliviar a sua dor. Pego um avião e vou correndo praí. Faremos tudo o que for possível para seu conforto, para a sua felicidade.
E se mesmo assim não conseguirmos contornar a sua dor, e você ainda quiser morrer, se não tiver mesmo remédio, se for de fato o fim da linha, também estarei com você. Mas, por favor, não faça como o Edu. Não tome esta decisão sozinha. Se não tiver mesmo jeito, aí eu aceitarei e vou querer me despedir de você, lhe abraçar, dizer o quanto a amo, o quanto sentirei sua falta, e o quanto você representa e sempre representou o absurdo de tudo o que existe de bom na minha existência.
Se morrer for de fato o caso, eu lhe ajudarei, minha mãe, com unhas e dentes, por mais que isso me cause uma dor absolutamente profunda e não dimensionável. Pegaremos um avião e irei junto com você para a Suíça; ou, se não houver essa possibilidade, eu sei como encontrar o caminho menos doloroso para tal, para que você possa partir em paz e com todas as despedidas e carinhos necessários em um momento tão delicado e crucial para você e todos nós que tanto te amamos.
No que depender de mim, minha mãe, você não sofrerá os absurdos que eu mesmo testemunho em meu cotidiano. Com certeza não. Não deixarei e você sabe que pode confiar em mim. Isso é o mínimo que posso fazer pela pessoa mais importante da minha vida. O mínimo.”
Ela compreendeu e se sentiu mais segura. E eu também, acima de tudo. Hoje estamos bem mais leves e tranquilos em relação aos seus desejos de morrer ou qualquer coisa análoga.
O suicídio é um ato muito solitário e horrivelmente triste. É um horror angustiante no seio de qualquer família que o experimenta. Falar abertamente sobre ele, tentando diminuir o tabu e sua proibição absoluta, é o que hoje faço como parte de minhas estratégias de prevenção.
O suicida precisa de vínculo, apoio, cumplicidade, carinho, amor, companhia, e muita conversa franca e transparente sobre seus desejos e planos para morrer. Sem desafios nem chantagens e sabendo sempre que ele é o dono e responsável por sua própria vida.
Estou somente lutando pela vida e pela morte digna, minha e de quem amo. Acho isso absolutamente justificável, prudente e totalmente dotado de sentido e amor.
Mas já estou me cansando de tratar disso no mundo em que vivo... Talvez essa luta só renda frutos e direitos (liberdades individuais, autonomia) para quem está mais próximo de mim. Uma pena...
Deixo alguns pontos mais claros em minha vídeo-aula sobre o tema, a qual também posto aqui nesse grupo.
Tuesday, October 06, 2020
Quando um paciente roubou meu celular
Há cerca de 4 anos um paciente roubou meu celular. Eu estava com um pequeno grupo, em uma sala do CAPS. Ele fazia parte desse pequeno grupo, e era o único ali que tinha passagens pela polícia, por roubo. Dando falta do celular, minutos depois voltei à sala, correndo, na qual não havia mais ninguém. E o celular simplesmente havia desaparecido. Peguei o celular de um colega, e liguei para meu próprio número.
Ele mesmo, esse paciente, que tem uma voz e um jeito de falar inconfundíveis, atendeu. Vou aqui chamá-lo de Josimar (nome fictício):
- Josimar, você está com meu celular. Volte aqui para o CAPS! Traga ele de volta pra mim, por favor!
- Perdeu, playboy! Perdeu! - e desligou na minha cara.
Não consegui recuperar meu celular, porque dali do CAPS ele foi diretamente a algum local, para vendê-lo a um receptador.
Também não acionei polícia. Tentei somente conversar com sua mãe e seu tutor, que era um vizinho dele.
Sua mãe, por telefone, lamentou o fato, e disse que fez o que pôde, tentando conversar com ele, mas ele jamais admitiu que cometeu tal delito.
Seu tutor, um senhor entre 50 e 60 anos de idade, foi com ele até o CAPS, para que pudéssemos fazê-lo se convencer de que seu ato não poderia se repetir, e que era algo condenável.
Josimar, mesmo após ter atendido a ligação telefônica, jamais confessou que cometeu tal crime.
Ele frequentava o CAPS porque a justiça assim o obrigava. O juiz havia definido que ele somente se manteria em liberdade se não houvesse reincidência de seus crimes (no caso, roubo), e que ele obrigatoriamente frequentasse um CAPS.
Josimar tem retardo mental. Nasceu em um estado do Nordeste, e veio para Brasília quando tinha nove anos de idade. Uma das versões sobre sua história, registrada em seu prontuário, era a de que ele teria caído de uma rede, e batido fortemente com a cabeça no chão, quando tinha somente alguns meses de idade. As lesões cerebrais produzidas por esse acidente teriam resultado posteriormente no sério comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo.
Do que eu conseguia me lembrar, após leituras de seu prontuário, era que ele havia sido pego pela polícia em alguma tentativa de roubo, na qual vinha sendo repetidamente instrumentalizado por seus irmãos, já que era inimputável.
Colocavam um deficiente mental para roubar para que assim não fossem penalizados. A culpa recairia sempre sobre o deficiente.
Josimar, contudo, deixou de frequentar o CAPS nos últimos 3 anos. Porque reincidiu e acabou novamente sendo preso. Ficou três anos em reclusão em um manicômio judicial.
Há poucos dias ele reapareceu no CAPS em companhia de um irmão. Havia sido solto, e agora devia obrigatoriamente voltar a frequentar nosso serviço.
Para minha surpresa Josimar não tinha vários irmãos. Tinha somente aquele irmão, com quem estava agora diante de mim, em uma avaliação para sua reinserção no CAPS.
Ele é 15 anos mais velho que esse irmão, que não tem retardo mental, e também ficou preso por cerca de três anos, por ter sido condenado por furto ou roubo.
Seu irmão, Rodrigo (nome fictício), tem 34 anos, tem três filhas e uma neta, de 5 meses de idade. Acho que Rodrigo é o avô mais jovem que já vi nessa vida.
Entrevistei-os do modo mais completo possível, inclusive em relação aos fatores sócio-financeiros.
Josimar é analfabeto e o irmão estudou somente até a quinta série. Sua filha, de 17 anos, ainda cursa a sexta série do ensino fundamental. Ainda conseguem pagar água e luz. Mas ninguém na casa tem telefone celular, e também não há telefone fixo. Nunca tiveram carteira assinada, e têm dificuldades inclusive para ter comida em casa.
- Lá em casa é eu, minha mãe, Josimar, minha filha e minha neta. (...) Levantamos de manhã bem cedo, e viemos para cá, a pé. Não tem nada de comida lá. Nem pão, café, nem açúcar. (...) Pra comer tamo saindo de casa. Cada dia a gente vai na casa de uma pessoa diferente. Ontem almoçamos na casa da madrinha de minha filha.
No final do atendimento Rodrigo me interpelou:
- Desculpa o incômodo aí, mas será que você não teria aí uns R$10 pra emprestar pra gente, pra nós passar na padaria e comprar uns pão, pra levar pro café da manhã?
- Rodrigo, eu não tenho dinheiro na carteira. Tenho somente o cartão. Vou com vocês até a padaria. Pode ser?
- Sim!
Saí com os dois, e caminhamos uns 200 ou 300 metros, até a padaria mais próxima.
Chegando lá pediram pães com mortadela e um refrigerante de 2 litros. Estavam loucos para saborear pães com mortadela com refrigerante, de café da manhã. Comprei-lhes açúcar, pó de café, margarina e leite.
Agradeceram-me, animados, contentes, como se tivessem descoberto um novo parça.
Despedi-me deles rapidamente, para voltar logo ao trabalho. No meio do caminho senti o sol brilhando como se não fosse real, como se eu fosse capaz de ver cada um dos raios a penetrar no mundo das coisas e de seres que sofrem, como se tudo aquilo fosse um cenário calculadamente armado de modo excessivamente luminoso naquela manhã. Por alguns instantes parecia que eu havia feito uso de alguma substância anestésica e alucinógena
Foi um sentimento breve de estar fora de mim, e de ser tomado pela sensação, emotiva, de que tudo podia com muita facilidade ser completamente diferente e muito melhor para muito mais pessoas.
Mas isso durou somente alguns segundos. Metros depois o sol voltou impiedosamente a rachar na cabeça.