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Sunday, June 22, 2025

Pessoas que se autodefinem como boas

As pessoas que se veem como pessoas boas assim se percebem em virtude do fato de serem boas somente para si, quem é de sua família, de seu espectro político, de seu gênero, etnia, orientação sexual, religião ou de sua própria espécie. Egoísmo, racismo, machismo, etnocentrismo, fanatismo e especismo propiciam esse tipo de percepção.

Quando alguém se autodefine como uma pessoa boa, resta saber qual é o limite dessa benevolência. Algumas pessoas não passam do próprio umbigo e a quase totalidade é especista.

Sunday, May 26, 2024

Ninguém merece sofrer

Muito tem se falado sobre merecimento. Eu também, por vezes, digo que alguém merece isso ou aquilo. Dou os parabéns, e digo “você merece”, para o campeão que percebo como tendo se esforçado e treinado muito ou para aquele que consegue fazer o que outros não foram capazes, por exemplo.

Mas aí, para esta segunda condição, muitas vezes me pergunto: se o sujeito já teve a sorte de nascer mais capaz ou mais inteligente, por que teria de ter também mais dinheiro? 

Mas não costumo dizer que alguém merece sofrer. Porque não concebo o sofrimento como útil, mas somente como evitável ou inevitável. Assim como concebo o sofrimento como sendo o próprio mal. Então penso que ninguém merece sofrer, e que todos merecemos mudar para melhor, para sermos pessoas melhores, para nós mesmos e para os outros, ajudando assim a diminuir o sofrimento no mundo.

Sinto que ninguém merece ser tratado como rei, rainha ou deus. Ninguém merece ser deusificado. Porque ninguém é perfeito. Merecemos ser amados e lembrados. Mas não merecemos mais do que diz respeito ao que é humano. 

E também não vejo sentido em alguém merecer luxos que custam o sangue e a vida de gente pobre e miserável. E, no mundo em que vivemos, ainda é geralmente, ou mesmo inevitavelmente, esse o custo de uma vida luxuosa.

Monday, May 06, 2024

Os juristas e o conceito de livre-arbítrio

Existe livre-arbítrio? Do modo como talvez a maioria das pessoas compreende essa questão, realmente não existe isso. É um conceito que é geralmente adotado no senso comum com tons de autoajuda, ou de um elogio cego de uma liberdade absoluta, que simplesmente não se sustenta na realidade. Porque trata a vida humana como totalmente capaz de liberdade, como se cada ser humano fosse uma constante escolha de si mesmo. 

Pensar dessa maneira é acreditar que temos a capacidade de produzir escolhas totalmente acima das circunstâncias. E as circunstâncias não são simplesmente o que nos determinam. Nós somos o somatório ou a interação orgânica, multiplicativa e complexa, de nossas circunstâncias. Nossas circunstâncias definem o que somos. Nós somos isso. A crença de que se pode pairar acima das circunstâncias é no mínimo algo da ordem de uma ingenuidade narcisista. É ilusão, é narcose.

E eu também percebo uma preocupação muito grande, na área do Direito, em relação à necessidade de que exista o conceito de liberdade ou de livre-arbítrio, calcado inclusive na capacidade de se escolher constantemente o que somos. Juristas, de modo geral, são sequestrados pela necessidade da existência do livre-arbítrio, porque se não houver esse tipo de conceito como é que poderíamos atribuir responsabilidade ou mérito a quem quer que seja? 

Contudo não tem nada a ver uma coisa com a outra. Podemos muito bem abrir mão desse tipo de conceito metafísico e continuar compreendendo muito bem as devidas responsabilidades relacionadas ao que as pessoas fazem. Compreender que todos somos determinados pelas circunstâncias ou que cada um tem seus motivos ajuda a entender, mas não transforma delitos e crimes em algo razoável ou justo Porque entender explica, mas não justifica. Quando explicamos estamos encontrando as causas, os motivos, mas não estamos tornando algo justo ou razoável.

A ordem da justiça e das justificações é completamente diferente da ordem das explicações. Não se misturam. Alguém que tenha sido abusado e depois passa também a cometer abusos não transforma assim seus crimes em algo justificável. Crimes não se justificam. Podem até ter alguns atenuantes, mas continuam sendo crimes, independentemente dos motivos de cada um.

Como hoje mesmo pude ler, e recomendo, em um texto de Carlos Orsi, sobre um dos principais livros de Daniel Dennett, ele cita uma frase muito emblemática a respeito dessa discussão, atribuída a John Austin: 

“Entendimento pode apenas acrescentar desprezo ao ódio”.

Monday, November 08, 2021

Os limites da comunicação não-violenta (CNV)

Comunicação não-violenta não resolve tudo. 

É o que existe de mais eficaz para se quebrar com o ciclo da violência, nas interações em que é possível ocorrer um mínimo de comunicação. Contudo, há alguns casos nos quais algumas pessoas aumentam sua agressividade, mesmo quando são abordadas da forma mais pacífica possível, inclusive com as técnicas de comunicação não-violenta.

Eu fazia parte de um grupo virtual, no qual havia umas 40 pessoas, pelas quais, em sua maioria, eu tinha grande apreço e respeito. 

Porém, infelizmente, houve um dia em que um das pessoas do grupo ficou bastante irritada comigo e muito agressiva.

Eu estava transtornado com um evento trágico que havia ocorrido em alguma cidade do Brasil, e que estava sendo noticiado pelos jornais. E eu também estava revoltado, porque aquele aquela tragédia podia ter sido evitada. Havia claramente negligência e egoísmo envolvidos.

Porém, para tentar sensibilizar as pessoas para aqueles fatos, e do que podia ser feito, eu narrei a tragédia da forma mais realista possível.

E meu texto narrativo atuou como um gatilho para algumas das pessoas mais sensíveis do grupo. Era como se esse texto contivesse imagens muito fortes. Alguns ali não deram conta de ler sem ficar muito abalados.

Em poucas horas, em privado, comunicaram-se entre si, sobre meu texto, que ele continha excessos, que talvez eu não devesse me expressar daquele modo, ou que eu deveria ter deixado ali um aviso de gatilho para os mais sensíveis.

Até aí tudo bem. Porque qualquer pessoa mais serena teria plenas condições de me comunicar em privado, ou mesmo em público, dentro do grupo, de forma polida, como eu deveria ter procedido, como eles gostariam que eu tivesse procedido. Desse modo tudo teria sido resolvido da forma mais tranquila possível.

Porém  infelizmente, não foi isso o que ocorreu. Um dos membros do grupo tomou a palavra, em público, e me repreendeu de modo muito ríspido e truculento.

Confesso que nos primeiros minutos eu simplesmente não sabia o que falar ou o que responder. Fiquei bastante atônito com aquela reação tão desproporcionalmente agressiva. Foi assim que eu senti o contexto do ocorrido. Pode até ser que eu tenho me enganado. Mas meu sentimento, até hoje, é o de que a agressividade daquela pessoa foi muito grande e muito desproporcional.

Então a primeira coisa que fiz, sempre dentro da perspectiva de uma cultura da paz, foi a de pedir as minhas sinceras desculpa para todos os presentes, em virtude dos possíveis efeitos que aquele texto poderia ter provocado na sensibilidade de alguns.

Contudo, para a minha surpresa, isso fez com que essa pessoa aumentasse ainda mais o nível de sua agressividade. Ela pegou minha resposta e retrucou, fazendo trocadilhos e jogos de linguagem, ao ponto de transformar nossa interação, em público, em uma grande humilhação.

Eu me senti totalmente massacrado e humilhado. Confesso que tive muita vontade de também partir para a agressão franca. Eu teria poucas e boas para escrever para aquela pessoa. Mas, como venho há alguns anos fortemente cultivando uma cultura da paz, achei melhor me conter, e continuar com a minha pobre e quase inútil comunicação não-violenta.

Escrevi mais umas duas frases, em tom ainda bastante apaziguador, e me despedi do grupo.

E depois, como em outras vezes em que isso ocorreu em minha vida, eu sentei e chorei. Porque é muito difícil ser tão intensamente agredido, não reagir, se sentir absolutamente humilhado, em público, e ainda assim achar que não vamos sentir nada. Machuca, machuca muito. Dói, e fica doendo durante muito tempo. Isso ocorreu há quase dois anos, e quando começo a me lembrar ainda sinto a mesma dor. 

E uma das coisas que também fiz questão de fazer foi a de bloquear essa pessoa, em pelo menos uma de minhas redes sociais, que era a qual utilizávamos algumas vezes para nos comunicar, das poucas vezes em que nos comunicamos em privado, na vida.

Meu sentimento é o de que essa pessoa foi muito covarde. E eu jamais diria isso a ela ali, naquele contexto, porque não é assim que se faz uma comunicação não-violenta. Não é assim se faz redução de danos em interações com potencial para a violência. 

Ela percebeu que eu não revidei, que não houve troca de agressões, que houve um pedido de desculpas, e mesmo assim intensificou sua agressividade em cima de mim.

Eu somente soltei mais duas ou três frases, e me despedi do grupo. E não pretendo voltar, apesar da grande maioria das pessoas ali serem fantásticas.

É um grupo de WhatsApp, e eu detesto grupos de WhatsApp. Só faço parte mesmo dos grupos de trabalho, dos quais não há como fugir. E eu estava mesmo um pouco deslocado naquele grupo, me sentindo um completo estranho. Eu não conseguia me manifestar ou me sentir como uma pessoa que agradasse às outras naquele contexto, apesar, como já disse, da grande maioria delas serem pessoas fantásticas.

Horas depois de minha saída, alguns dos membros me enviaram mensagens, em privado, perguntando como eu estava. Perceberam que a agressão havia sido grande. Tiveram compaixão.

Mas ninguém, pelo visto, teve coragem de intervir enquanto as coisas estavam ocorrendo, dentro do grupo. Deixaram rolar, talvez pensando que eu fosse me defender, possivelmente revidando. Não foi isso o que ocorreu, e a humilhação foi completa. 

E quem está lendo esse texto pode até pensar que sou um completo idiota, uma pessoa resignada e tola, ou qualquer coisa parecida. Mas a cultura da paz que conheço não é algo que tirei da cartola, não é uma opinião. Está fundamentada pela contribuição de trabalhos acadêmicos. É uma técnica amplamente aceita e adotada, como instrumento de base para abordagens em mediação de conflitos e consultas com pacientes em variadas especialidades. E serve também para a vida diária.

Porém, como já disse, não é infalível. Diante de padrões de comportamento covardes e sádicos talvez seja completamente inútil, e possivelmente em muitos desses contextos não exista outro modo de nos comportarmos. Porque simplesmente revidar é sempre mais arriscado, e provavelmente mais danoso. A agressividade mútua pode se intensificar. E dependendo do contexto, e das pessoas envolvidas, os danos podem ser muito grandes e irreversíveis.

Uma das melhores coisas a se fazer em situações como essa é fugir, escapar, o mais rápido possível. E foi, de certo modo, o que fiz. 

Sim, dói, dói bastante. Mas minha experiência de vida me diz que foi o melhor a ser feito. Em várias outras situações, nos últimos 30 anos, atuei de modo bastante agressivo, conseguindo inclusive agredir muito mais a quem me agrediu, revidando, e os resultados, as consequências, não foram nada boas. Foi muito mais doloroso do que ser agredido, não revidar, e fugir. 

É isso também não quer dizer que eu sempre consigo atuar de modo pacífico. Algumas vezes eu revido, e parto mesmo para a agressão, o que deixa inclusive algumas pessoas bastante assustadas, porque não imaginavam que eu era capaz de tanta violência verbal e termos de bem baixo calão.

Porém, conscientemente, se alguém me perguntar qual é a opção que eu geralmente tento perseguir, ela é esta, a de uma cultura da paz e da comunicação não-violenta. E, sim, em muitos casos eu prefiro fugir. Podem me chamar de fujão.

Saturday, May 15, 2021

Ajudar alguém que amamos a viver e a morrer...

Outubro de 2012.

Tive uma conversa importante com minha mãe esses dias. Ela está com uma doença crônica que muitas vezes a incapacita quase que totalmente, prostrando-a na cama durante todo o dia, em várias ocasiões.

Ela tem quase 66 anos. Vive sozinha e com uma rede de apoio social e familiar deficitária. Eu estou vivendo a 720 km dela e meu irmão mora na Inglaterra.

Quando está em crise, ela sempre se queixa e muitas vezes diz que preferia deixar de viver. O fato de seu filho mais velho (meu irmão mais velho) ter cometido suicídio em 1998, com 28 anos de idade, não produziu nela qualquer espécie de repúdio pelo suicídio ou pelos suicidas. Pelo contrário. Ela muitas vezes se refere ao meu irmão como alguém de coragem, como alguém que aproveitou bastante de sua juventude e se foi dessa vida sem envelhecer, sem viver todos os dramas da velhice.

Assim como meu irmão, sei que minha mãe é também muito bem capaz de cometer suicídio. Esta possibilidade me aterroriza mais do que se ela tivesse uma morte natural ou acidental. Assim como o era com meu irmão, conviver com essa possibilidade de minha mãe fazer o mesmo era muito perturbador para mim até termos essa conversa, há poucos dias. Hoje minha angústia e meu medo são bem menores. Nessa conversa franca, a qual não fui capaz de ter com meu irmão, eu lhe disse mais ou menos assim:

“Mãe, por favor, não tome uma decisão drástica como a do Edu sem antes pedir socorro, sem falar comigo, sem abrir o jogo. Se você quiser morrer, me fale, porque aí eu largo tudo e vou fazer de tudo para ajudar a aliviar a sua dor. Pego um avião e vou correndo praí. Faremos tudo o que for possível para seu conforto, para a sua felicidade. 

E se mesmo assim não conseguirmos contornar a sua dor, e você ainda quiser morrer, se não tiver mesmo remédio, se for de fato o fim da linha, também estarei com você. Mas, por favor, não faça como o Edu. Não tome esta decisão sozinha. Se não tiver mesmo jeito, aí eu aceitarei e vou querer me despedir de você, lhe abraçar, dizer o quanto a amo, o quanto sentirei sua falta, e o quanto você representa e sempre representou o absurdo de tudo o que existe de bom na minha existência. 

Se morrer for de fato o caso, eu lhe ajudarei, minha mãe, com unhas e dentes, por mais que isso me cause uma dor absolutamente profunda e não dimensionável. Pegaremos um avião e irei junto com você para a Suíça; ou, se não houver essa possibilidade, eu sei como encontrar o caminho menos doloroso para tal, para que você possa partir em paz e com todas as despedidas e carinhos necessários em um momento tão delicado e crucial para você e todos nós que tanto te amamos. 

No que depender de mim, minha mãe, você não sofrerá os absurdos que eu mesmo testemunho em meu cotidiano. Com certeza não. Não deixarei e você sabe que pode confiar em mim. Isso é o mínimo que posso fazer pela pessoa mais importante da minha vida. O mínimo.”

Ela compreendeu e se sentiu mais segura. E eu também, acima de tudo. Hoje estamos bem mais leves e tranquilos em relação aos seus desejos de morrer ou qualquer coisa análoga.

O suicídio é um ato muito solitário e horrivelmente triste. É um horror angustiante no seio de qualquer família que o experimenta. Falar abertamente sobre ele, tentando diminuir o tabu e sua proibição absoluta, é o que hoje faço como parte de minhas estratégias de prevenção.

O suicida precisa de vínculo, apoio, cumplicidade, carinho, amor, companhia, e muita conversa franca e transparente sobre seus desejos e planos para morrer. Sem desafios nem chantagens e sabendo sempre que ele é o dono e responsável por sua própria vida. 

Estou somente lutando pela vida e pela morte digna, minha e de quem amo. Acho isso absolutamente justificável, prudente e totalmente dotado de sentido e amor. 

Mas já estou me cansando de tratar disso no mundo em que vivo... Talvez essa luta só renda frutos e direitos (liberdades individuais, autonomia) para quem está mais próximo de mim. Uma pena... 

Deixo alguns pontos mais claros em minha vídeo-aula sobre o tema, a qual também posto aqui nesse grupo.

Tuesday, October 06, 2020

Quando um paciente roubou meu celular

 Há cerca de 4 anos um paciente roubou meu celular. Eu estava com um pequeno grupo, em uma sala do CAPS. Ele fazia parte desse pequeno grupo, e era o único ali que tinha passagens pela polícia, por roubo. Dando falta do celular, minutos depois voltei à sala, correndo, na qual não havia mais ninguém. E o celular simplesmente havia desaparecido. Peguei o celular de um colega, e liguei para meu próprio número.

Ele mesmo, esse paciente, que tem uma voz e um jeito de falar inconfundíveis, atendeu. Vou aqui chamá-lo de Josimar (nome fictício):

- Josimar, você está com meu celular. Volte aqui para o CAPS! Traga ele de volta pra mim, por favor!

- Perdeu, playboy! Perdeu! - e desligou na minha cara.

Não consegui recuperar meu celular, porque dali do CAPS ele foi diretamente a algum local, para vendê-lo a um receptador.

Também não acionei polícia. Tentei somente conversar com sua mãe e seu tutor, que era um vizinho dele.

Sua mãe, por telefone, lamentou o fato, e disse que fez o que pôde, tentando conversar com ele, mas ele jamais admitiu que cometeu tal delito. 

Seu tutor, um senhor entre 50 e 60 anos de idade, foi com ele até o CAPS, para que pudéssemos fazê-lo se convencer de que seu ato não poderia se repetir, e que era algo condenável.

Josimar, mesmo após ter atendido a ligação telefônica, jamais confessou que cometeu tal crime.

Ele frequentava o CAPS porque a justiça assim o obrigava. O juiz havia definido que ele somente se manteria em liberdade se não houvesse reincidência de seus crimes (no caso, roubo), e que ele obrigatoriamente frequentasse um CAPS.

Josimar tem retardo mental. Nasceu em um estado do Nordeste, e veio para Brasília quando tinha nove anos de idade. Uma das versões sobre sua história, registrada em seu prontuário, era a de que ele teria caído de uma rede, e batido fortemente com a cabeça no chão, quando tinha somente alguns meses de idade. As lesões cerebrais produzidas por esse acidente teriam resultado posteriormente no sério comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo.

Do que eu conseguia me lembrar, após leituras de seu prontuário, era que ele havia sido pego pela polícia em alguma tentativa de roubo, na qual vinha sendo repetidamente instrumentalizado por seus irmãos, já que era inimputável.

Colocavam um deficiente mental para roubar para que assim não fossem penalizados. A culpa recairia sempre sobre o deficiente. 

Josimar, contudo, deixou de frequentar o CAPS nos últimos 3 anos. Porque reincidiu e acabou novamente sendo preso. Ficou três anos em reclusão em um manicômio judicial.

Há poucos dias ele reapareceu no CAPS em companhia de um irmão. Havia sido solto, e agora devia obrigatoriamente voltar a frequentar nosso serviço.

Para minha surpresa Josimar não tinha vários irmãos. Tinha somente aquele irmão, com quem estava agora diante de mim, em uma avaliação para sua reinserção no CAPS. 

Ele é 15 anos mais velho que esse irmão, que não tem retardo mental, e também ficou preso por cerca de três anos, por ter sido condenado por furto ou roubo.

Seu irmão, Rodrigo (nome fictício), tem 34 anos, tem três filhas e uma neta, de 5 meses de idade. Acho que Rodrigo é o avô mais jovem que já vi nessa vida.

Entrevistei-os do modo mais completo possível, inclusive em relação aos fatores sócio-financeiros.

Josimar é analfabeto e o irmão estudou somente até a quinta série. Sua filha, de 17 anos, ainda cursa a sexta série do ensino fundamental. Ainda conseguem pagar água e luz. Mas ninguém na casa tem telefone celular, e também não há telefone fixo. Nunca tiveram carteira assinada, e têm dificuldades inclusive para ter comida em casa. 

- Lá em casa é eu, minha mãe, Josimar, minha filha e minha neta. (...) Levantamos de manhã bem cedo, e viemos para cá, a pé. Não tem nada de comida lá. Nem pão, café, nem açúcar. (...) Pra comer tamo saindo de casa. Cada dia a gente vai na casa de uma pessoa diferente. Ontem almoçamos na casa da madrinha de minha filha.

No final do atendimento Rodrigo me interpelou:

- Desculpa o incômodo aí, mas será que você não teria aí uns R$10 pra emprestar pra gente, pra nós passar na padaria e comprar uns pão, pra levar pro café da manhã?

- Rodrigo, eu não tenho dinheiro na carteira. Tenho somente o cartão. Vou com vocês até a padaria. Pode ser?

- Sim!

Saí com os dois, e caminhamos uns 200 ou 300 metros, até a padaria mais próxima.

Chegando lá pediram pães com mortadela e um refrigerante de 2 litros. Estavam loucos para saborear pães com mortadela com refrigerante, de café da manhã. Comprei-lhes açúcar, pó de café, margarina e leite. 

Agradeceram-me, animados, contentes, como se tivessem descoberto um novo parça.

Despedi-me deles rapidamente, para voltar logo ao trabalho. No meio do caminho senti o sol brilhando como se não fosse real, como se eu fosse capaz de ver cada um dos raios a penetrar no mundo das coisas e de seres que sofrem, como se tudo aquilo fosse um cenário calculadamente armado de modo excessivamente luminoso naquela manhã. Por alguns instantes parecia que eu havia feito uso de alguma substância anestésica e alucinógena

Foi um sentimento breve de estar fora de mim, e de ser tomado pela sensação, emotiva, de que tudo podia com muita facilidade ser completamente diferente e muito melhor para muito mais pessoas.

Mas isso durou somente alguns segundos. Metros depois o sol voltou impiedosamente a rachar na cabeça.

Sunday, August 02, 2020

Humildade

Para ser humilde, amiúde, basta ser acessível, respeitoso e polido (com todo mundo, sem distinção), se expressar de modo simples e claro, e compreender que o acaso desempenha um papel relevante em nossas conquistas, que ninguém é produto de si mesmo. O humilde também é grato. Sabe que sem os outros não somos nada. A construção do eu, dos indivíduos, em suas venturas e desventuras, é sempre coletiva.

Wednesday, June 24, 2020

A covardia

Algumas pessoas, diria Gandhi, de tão fracas que são, para se sentirem fortes, precisam humilhar outras.

Não é covarde quem tem medo de alguma coisa da qual ninguém tem. Não é covarde quem tem algum tipo de fobia ou medo de algo em específico. Isso está mais para as definições de sensível ou medroso.

Covarde é o sádico, o opressor, que lambe botas de quem é mais poderoso e massacra quem tem menos poder. Lambe botas dos chefes, dos superiores, e massacra subordinados. É comum que bajuladores sejam também covardes. Além de falso apreço, com comportamento interesseiro, são altamente propensos à traição, porque prestam fidelidade somente ao poder.

A crueldade é o ápice da covardia. Bater em alguém no chão, já rendido, em quem todo mundo já está batendo, é covardia. Linchadores são fundamentalmente covardes.

Até os omissos poderiam ser vistos, em boa parte das vezes, não como covardes, mas sim como medíocres, medrosos ou temerários, cúmplices da covardia de pessoas que amiúde esses omissos também obedecerão. Porque sempre se contentaram em fazer parte de um rebanho mudo e acuado.

O contrário da covardia não é simplesmente a coragem. É, antes de tudo, a justiça, a compaixão e a generosidade. O covarde padece de uma profunda mesquinhez de espírito.

Sunday, May 17, 2020

O direito de matar

Para quem gosta de comer carne e fica incomodado com a superioridade moral dos veganos, a qual é um fato, a qual realmente existe, posso dizer uma coisa, que talvez tranquilize um pouco essas pessoas: sob determinadas condições não é antiético comer alimentos de origem animal. Sim, você tem o direito moral de matar algumas espécies de animais.

Há seres que sofrem (sencientes) que não têm o direito à vida. E não faz sentido ético que o tenham. Porque não possuem um nível de sociabilidade ou consciência reflexiva que justifique isso. Adaptam-se facilmente à ausência de outros de sua própria espécie, que lhe são próximos, e não têm consciência de que são mortais, por exemplo.

Talvez somente alguns primatas e cetáceos devam ter o direito à vida. Cito esses dois grupos de animais, porque estão entre os mais sociais e conscientes de si mesmos e de sua própria finitude. Quando um indivíduo dessas espécies morre geralmente deixa para trás de si um rastro enorme de memórias e sofrimento naqueles que faziam parte de seus círculos sociais ou afetivos.

O direito à vida não serve para proteger, a posteriori, quem vier a falecer. Porque, em tese, depois da morte não existe sofrimento. Não faz sentido lamentar, para o próprio indivíduo, o que ele seria depois de sua morte. Depois que alguém morre não se perde, para si mesmo, nada.

O direito à vida serve para, antecipadamente, proteger os que ficam, e podem sofrer muito em função da perda de um ente querido. Sem o direito à vida há o risco grande de rompimento do tecido social, de desorganização da vida em sociedade, do surgimento do caos.

O direito à vida, portanto, serve para proteger toda a sociedade. Serve para proteger a sociedade como um todo. Ao proteger a vida de indivíduos, protegemos todos, toda a sociedade.

O direito à vida instaura a estabilidade nas relações entre as pessoas e a paz, inibindo inúmeros tipos de sofrimentos, e permitindo assim um melhor planejamento da vida em sociedade.

A vida humana, e de muitas espécies que nos são próximas, em termos do nível de consciência, depende bastante de laços afetivos e sociais. Um ser humano sozinho é, via de regra, um ser humano morto.

A própria existência de nossa espécie depende disso, da vida social e afetiva. A existência de muitas outras espécies não depende disso. Muitos animais vivem tranquilamente, de modo muito saudável, muito bem, sem a necessidade de laços sociais e afetivos.

Um ser humano, contudo, via de regra, não é capaz de suportar uma vida em completo isolamento. Os seres humanos perecem quando perdem seus laços afetivos. E isso se aplica a muitas espécies que, em termos de consciência e sociabilidade, nos são mais próximas.

Isso quer dizer que temos o direito de matar a maioria dos seres vivos, inclusive das espécies sencientes, para sobreviver ou satisfazer nossas necessidades e desejos.

Mas não podemos torturá-los, prolongar seu sofrimento. Não podemos, por exemplo, matá-los de modo doloroso, ou criá-los em espaços minúsculos, insalubres, em ambientes que no final das contas são torturantes. Isso é impor-lhes uma vida miserável, extremamente sofrida. E esses sofrimentos são todos evitáveis.

É então um imperativo ético que os métodos de criação se tornem menos sofridos e mais próximos do ambiente natural desses animais, e que o abate seja rápido e, na medida do possível, indolor.

É isso. Podemos matar dezenas de bilhões de animais, como já o fazemos todos os anos. Só não podemos torturá-los, que é o que infelizmente ainda ocorre, devido principalmente às formas de criação e abate.

Matar não é necessariamente antiético. É muitas vezes um dever, uma necessidade. Antiético é fazer sofrer, ou permitir o sofrimento, sendo que isso poderia ser evitado.

Monday, March 02, 2020

Bicicleta elétrica compensa!

No final de março fará três anos e meio que comprei minha bicicleta elétrica pedal assistido. Compensou demais. Passei a ir para o trabalho de bicicleta, o que corresponde a aproximadamente 50 km rodados por semana, somente nesse trajeto de casa para o trabalho. Isso corresponde, desde que comprei minha bicicleta, a mais ou menos 10 mil km rodados. Equivale a mais de mil litros de combustível que deixei de queimar (o equivalente a quase R$ 5 mil, sendo que minha bicicleta custou R$ 400 a menos que isso). O volume de poluentes, de gases estufa, que deixei de jogar na atmosfera, é considerável. Sem contar que tirei um carro das ruas, e passei a ter uma vida muito mais saudável. Porque ir para o trabalho de bicicleta é minha atividade física rotineira. Pedalo em meu limite máximo de capacidade física, e não suo, pois o vento não permite. Ou seja: faz bem para a saúde das pessoas e para o mundo!

Saturday, January 04, 2020

Para ir longe

Há um provérbio africano que diz assim: "‪Se quer ir rápido, vá sozinho. ‬‪Se quer ir longe, vá em grupo".‬ E isso se torna cada dia mais claro para mim.

Meu apreço por uma cultura da paz

Quem me vê escrevendo sobre o quanto prezo por uma cultura da paz, deve pensar que minha história de vida foi toda serena e pacífica. Muito pelo contrário. Acho que cresci em um ambiente violento, tanto verbal quanto fisicamente, incluindo minha família, vizinhança e escola. Tive de brigar, com socos e chutes, algumas vezes na minha infância e início da adolescência, fora de casa. E dentro de casa havia também obviamente muita briga assim, com violência física e verbal, com meus irmãos e meus pais.E quem nunca esteve, fora de casa, em uma briga com um estranho, com socos e pontapés, sem ter ideia no que isso pode resultar, não sabe como isso, nas primeiras vezes, é extremamente ansiogênico. É assim, de modo geral, para a maioria das pessoas que se envolveram em brigas. Fora todas as outras práticas violentas que se dão nas interações entre as pessoas, e e que são em sua maioria verbais, as quais implicam em humilhações, ameaças, tortura psicológica, assédios, bullying, etc. Sem contar nas diversas vezes que em ambiente acadêmico, ou de trabalho, plantei dificuldades enormes para a minha vida, em função de comunicações violentas de minha parte. E é justamente por ter sofrido e cometido, por várias vezes, atos violentos, e também por ter testemunhado diversos atos violentos, com diversas pessoas, que tenho apreço por uma cultura da paz, juntamente obviamente, com todas as evidências científicas favoráveis a esse tipo de postura.

PS: E tem gente que acha também a ironia uma coisa linda. É, muitas vezes é uma coisa linda, e eu inclusive fui fazer um doutorado sobre ela. Fiz meu doutorado sobre ironia. E eu conquistei muitos inimigos com minha ironia. Que belezura! Que alegria!

Thursday, December 19, 2019

Um pouco antes da espécie humana ser extinta

Pelo visto, um pouco antes da espécie humana ser extinta, os últimos traços humanos (os mais resistentes) a desaparecerem serão a idiotia, a irracionalidade e a falta de caráter de pessoas poderosas.

Saturday, November 16, 2019

Uma criança na UTI

Havia um paciente na UTI, recém-chegado, que ainda estava inconsciente. Pela leitura das evoluções de seu caso, em seu prontuário, vi que se tratava de um homem de 44 anos de idade, portador de necessidades especiais. "Retardo mental moderado", era o que estava escrito.

No horário de visitas, fiz a ronda de rotina, indo de leito em leito, para ouvir, orientar e ajudar as pessoas que estavam ali, visitando seus familiares ou entes próximos.

Esse paciente ainda dormia e do lado de seu leito estava sua irmã, que era mais jovem do que ele, mas tão preocupada e aflita quanto a mãe de uma criança.

- Eu e meus irmãos estamos muito tensos com a situação dele. Se ele acordar, e nós não estivermos aqui, ele vai entrar em pânico...

Ela estava bastante aflita, porque já havia conversado com a equipe, e não haviam autorizado que ela ou qualquer outro familiar permanecessem junto ao leito, depois do horário de visitas.

- Ele tem a idade mental de 8 anos. É como uma criança. E eu sei que crianças têm o direito a um acompanhante por tempo integral.

Tínhamos então ali um paciente em uma condição especial, que demandava um cuidado especial, diferenciado. Porque se tratava na verdade de alguém que sentia e percebia o mundo como uma criança, e que portanto deveria ser tratado como uma criança.

Ouvindo sua queixa, e percebendo seu desespero, que era real e fundamentado, não hesitei. Recomendei que fosse à ouvidoria, e se isso não fosse suficiente, que acionasse o ministério público.

Tentei orientá-la nesse sentido, da forma mais sutil e discreta possível, para que ninguém da equipe percebesse o que eu estava fazendo.

Mas infelizmente não teve jeito. Minha chefe percebeu o que eu estava fazendo, e em poucos segundos estávamos cercados por umas três ou quatro pessoas da equipe, que tentavam justificar para ela por que estavam adotando aqueles procedimentos.

E eu mesmo não conseguia entender e nem aceitar aquilo. Mas me mantive em silêncio, com um olhar cúmplice para ela, imaginando que eu havia feito o que era eticamente correto. Apesar de saber que aquele seria mais um incidente complicado em meu histórico naquele ambiente, que já estava bastante perdido em relação à humanização.

Essa não foi a primeira nem a última vez que eu me colocava em um posicionamento tão desconfortável para com o restante da equipe, e isso gerou para mim um clima muito ruim de interação social e profissional com essas pessoas. Era péssimo e às vezes torturante ter de trabalhar ali em alguns dias da semana, porque no restante deles eu estava no CAPS e na Escola Superior de Ciências da Saúde.

Por sorte já estou fora daquele ambiente há mais de 3 anos, e não quero nunca mais trabalhar em um hospital.
Volta e meia vejo pessoas conversando sobre o que será o futuro para as próximas gerações, e dizendo que temem muito, em relação a seus filhos, pelo uso de drogas, questões referentes à sexualidade, gravidez na adolescência, DSTs ou relacionamentos abusivos. Outros se dizem bastante preocupados com o futuro das democracias e possíveis regimes totalitários. No meu caso minha principal preocupação é a questão ambiental. O restante para mim parece muito pequeno, ou somente consequência dos grandes desastres ambientais com quais teremos de lidar. Já em função das mudanças climáticas, as secas que acometeram a Síria tiveram um papel determinante no desenrolar de acontecimentos que culminaram em sua guerra civil, e em todo sofrimento e miséria que tomou conta daquele país. E agora sabemos que as mudanças climáticas estão ocorrendo em intensidade e velocidade maiores do que anteriormente fora previsto. Então é muito simples a dedução de que, se as coisas continuarem como estão, se não houver mudanças drásticas para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, teremos um futuro marcadamente determinado pelas alterações ambientais resultantes. O futuro de nossos filhos, as amizades que terão e todos os problemas que enfrentarão serão em boa medida determinados pela degradação ambiental que estamos produzindo hoje.
Há pessoas a pensar que irão resolver o problema do aquecimento global ligando o ar-condicionado. Ratinhos que apertam botões.

Sunday, July 21, 2019

Sobre o direito de matar e o veganismo

Para você que gosta de comer carne e fica incomodado com  a superioridade moral dos veganos, a qual é um fato, a qual realmente existe, posso lhe dizer uma coisa que talvez o tranquilize um pouco: sob determinadas condições não é antiético comer alimentos de origem animal. Sim, você tem o direito moral de matar, e pode exercê-lo com gosto, com tranquilidade.

Há seres que sofrem (sencientes) e que não tem o direito à vida: não faz sentido ético que o tenham. Talvez somente alguns primatas e cetáceos devam ter o direito à vida. Isso quer dizer que podemos matar a maioria dos seres sencientes para sobrevivermos ou satisfazermos nossas necessidades e desejos. 

Mas não podemos torturá-los, prolongar seu sofrimento. Não podemos, por exemplo, criá-los em espaços minúsculos, insalubres, em ambientes que no final das contas são torturantes. Isso é impor-lhes uma vida miserável, extremamente sofrida. 

Que os métodos de criação se tornem menos sofridos e mais próximos do ambiente natural desses animais, e que o abate seja rápido e, na medida do possível, indolor. É isso. Podemos matar dezenas de bilhões de animais, como já o fazemos todos os anos. Só não podemos torturá-los, que é o que infelizmente ainda ocorre, devido principalmente às formas de criação e abate.

Matar não é necessariamente antiético. É muitas vezes um dever, uma necessidade. Antiético é fazer sofrer, ou permitir o sofrimento, sendo que isso poderia ser evitado.

Compaixão pelos animais não-humanos

Então você fica super revoltado(a) quando vem a saber que cães são sacrificados com sedativos (eutanasiados) nos núcleos de zoonoses porque foram abandonados nas ruas e não encontraram ninguém para adotá-los, mas você come frangos quase todos os dias. Esse frango no seu prato, querido(a), teve uma vida horrivelmente sofrida e foi morto sem tanto zelo ou compaixão como esses cães. Então engula sua revoltinha junto com seu franguinho, tá bom?

Monday, August 06, 2018

O sofrimento é do tamanho que as pessoas escolheram para si mesmas?

Essas afirmações de que as pessoas sofrem somente o quanto quiserem, que o sofrimento é do tamanho que elas mesmas escolheram para si, é coisa de autoajuda. Não é algo que esteja presente na Filosofia ou na Psicologia.

Até compreendo que muitas pessoas façam esse tipo de alegação diante de algumas outras que exageram seus sintomas, com expressões exageradas e histéricas, de modo a tentar fazer os outros de reféns de seus caprichos.

É uma tentativa de demonstrar aos chantagista as artimanhas das quais estão se utilizando. Contudo, expressões genéricas tais como "o sofrimento é opcional" ou "você escolhe o tamanho de seu sofrimento" são um franco desrespeito ou muita falta de sensibilidade para com inúmeras pessoas que são ou foram massacradas pelo sofrimento.

Ninguém escolhe sofrer. Não faz o menor sentido esse tipo de afirmação. Sofrimento não é opcional. Quem sofre está em uma condição de submissão. Não é agente de coisa alguma. Por isso é que sofre. E isso não se reverte com expressões e lemas infantis e tolos da literatura de autoajuda.

A maioria das pessoas tem um conceito tão pobre acerca do que seria um masoquista. Acham que uma pessoa masoquista gosta de sofrer. Ninguém gosta de sofrer. Os masoquistas passaram a ter prazer com algumas estimulações que as outras pessoas julgam simplesmente como dolorosas e sofridas. Só isso.

Wednesday, July 04, 2018

Ele não era poliqueixoso

Cheguei à UTI e observei, do posto de enfermagem, que Luciano chorava. Tinha uma expressão de extrema angústia, de desespero. 

Contudo, mal eu tinha chegado, já fui logo advertido pela enfermeira que chefiava o plantão:

- Deixa ele quieto! Não vá até o leito! Esse paciente é poliqueixoso, e tá dando um trabalho enorme pra todos nós.

- Me desculpe, Alessandra, mas é também minha função estar junto dos pacientes e tentar ajudá-los com o que posso, dentro das minhas possibilidades técnicas...

Acho que com essa justificativa não havia muito o que a enfermeira pudesse fazer para me manter longe daquele paciente. Assim, então, me aproximei de seu leito para tentar entender o que estava acontecendo. Porém, antes de falar de minha interação específica com ele, naquele momento, quero traçar algumas breves considerações sobre seu histórico.

Antes de sua internação na UTI Luciano tinha uma vida com muitas características próximas ou similares à vida de muitos profissionais que atuavam em nossa unidade. A vida de Luciano era talvez até parecida com o que costumava ser retratado tradicionalmente em propagandas de margarina. Vivia com sua mulher e seus dois filhos pequenos, de 6 e 4 anos de idade. Tinha carro e casa próprios, e uma vida financeira humilde, mas relativamente estável. 

Resumindo: era um pai de família de classe média, talvez de classe média baixa, pois não tinha plano de saúde. Mas, como mencionei, tinha uma família estruturada, uma vida organizada, com uma certa estabilidade.

O problema é que Luciano, de repente, aos 37 anos de idade, teve um acidente vascular cerebral e, na UTI, estava paralisado do pescoço para baixo. Somente conseguia movimentar sua cabeça, e nada mais.

Eu já acompanhava o caso de Luciano há umas duas semanas. Tinha o humor gravemente comprometido. Nunca sorria, e sua expressão facial era de constante insatisfação, sofrimento. Mesmo após as intervenções mais trabalhosas, na tentativa de aliviar um pouco os sofrimentos dos quais padecia, Luciano jamais apresentou para mim qualquer expressão de alívio ou de um vínculo mais profundo comigo ou com quaisquer outras pessoas da equipe.

Luciano sofria muito e estava distante de todos. Seu sofrimento certamente era intensificado pela sensação de isolamento, de solidão. Seu único vínculo era de fato com sua esposa, a qual o visitava diariamente. Porém havia somente dois horários para visitas, um no período da tarde e outro à noite, os quais duravam uma hora cada. Ela o visitava somente durante a tarde, das 17 horas às 18 horas, pois morava muito longe e no período noturno, na periferia, era muito perigoso estar por ali, naquela região. 

Se havia um vínculo profundo com sua esposa, obviamente Luciano tinha a capacidade de desenvolver vínculos com outras pessoas, de desenvolver algum tipo de vínculo mais efetivo com alguns membros da equipe. Era uma questão de tempo, e de tempo também para que eu, por exemplo, pudesse me dedicar mais a estar com ele, e ir aos poucos desenvolvendo esse vínculo.

Porém, como eu estava narrando no início, nesse dia cheguei ao seu leito e ele chorava, apresentando essa expressão de extrema angústia. 

Parece que Luciano estava se sentindo extremamente desconfortável com absolutamente tudo nessa vida, dos pés à cabeça. Seus lábios se movimentavam, em uma tentativa desesperada de me comunicar o que estava sentindo, o que estava acontecendo. Era possível fazer a leitura labial e o que ele repetidamente dizia era muito claro:

- Me ajude!

Era um pedido simples e desesperado de socorro. Comecei então a perscrutar sobre o que ele estava precisando naquele momento. Assim fui perguntando sobre várias coisas, e ele foi me respondendo com "sim" ou "não", por meio de acenos de cabeça, para cada coisa que eu perguntava.

Após várias perguntas enfim consegui descobrir que ele queria que a cama fosse um pouco reclinada. Mal comecei a reclinar sua cama, conforme o que ele pedia, e fui interrompido pela enfermeira, bem brava comigo:

- Pode parar com isso agora! Eu não falei pra você não mexer com ele? Eu não falei pra você deixar ele quieto? Olha só o que você tá fazendo? Se você reclinar a cama, ele vai aspirar!

- Nossa, me desculpe! Foi mal... Eu não sabia...

Foi constrangedor, porque ela ficou realmente alterada, realmente brava comigo, e eu fiquei morrendo de vergonha, imaginando que de fato estava prestes a cometer um erro tosco. 

Por outro lado achei que ela se irritou de um modo desproporcional ao erro que eu estava prestes a cometer e a todo o contexto no qual era clara a minha intenção em ajudar. Aliás nem sei se de fato eu estava prestes a cometer um erro, pois nem mesmo fui verificar essa informação com outros colegas médicos ou enfermeiros. 

O problema é que me senti muito intimidado, do começo ao fim da interação com essa enfermeira, e tudo ficou, a partir disso, muito atravancado. E no contexto em que me encontrava, sendo o único psicólogo de todo o hospital, não era fácil enfrentar, se contrapor a como age e pensa a maioria das pessoas.

Há também o fato de que em plantões nos quais costumam ocorrer muitas intercorrências, e há muito o que se fazer, com um nível grande de estresse, no final das contas acabamos evitando o contato com pessoas cuja interação ficou assim tão comprometida. E infelizmente foi isso que passou a ocorrer em minha interação com essa enfermeira a qual, pelo que eu podia observar, não vinha apresentando um nível adequado de humanização no contato com os pacientes. 

Eu sentia que ela era, além de pouco humanizada na assistência, também negligente, e isso foi ficando mais claro conforme fui ouvindo de outros colegas da equipe sobre o que relatavam de seu trabalho. Ela vinha cometendo muitas falhas e faltas sérias, de caráter ético e técnico, há alguns meses, desde que havia sido lotada em nossa unidade.

Portanto, nesse dia não tive disposição para continuar ali, no mesmo espaço que essa enfermeira chefiava. Pedi desculpas e me retirei. Mesmo assim debati o caso desse paciente com um médico que era mais humanizado. Ele me disse que estava acompanhando o caso de Luciano. Descreveu-me alguns episódios, nos quais percebeu que esse paciente estava sendo negligenciado quanto aos cuidados paliativos, relatando que havia intervido com os medicamentos necessários para que Luciano tivesse mais conforto, mais paz.

O final dessa história marca com clareza um ponto importante: Luciano não era poliqueixoso, e esse termo costuma ser utilizado de forma abusiva por alguns profissionais de saúde.

Não era poliqueixoso. Era um paciente terminal, em sofrimento extremo e incurável. Veio a falecer cerca de uma semana depois de nossa triste e sofrida interação. Por sorte teve seus últimos dias sob os cuidados desse médico mais humanizado, o qual tinha mais coração, mais compaixão, se colocava um pouco mais no lugar dos pacientes, e lhe ajudou a morrer com os devidos cuidados paliativos.