Cheguei à UTI e observei, do posto de enfermagem, que Luciano chorava. Tinha uma expressão de extrema angústia, de desespero.
Contudo, mal eu tinha chegado, já fui logo advertido pela enfermeira que chefiava o plantão:
- Deixa ele quieto! Não vá até o leito! Esse paciente é poliqueixoso, e tá dando um trabalho enorme pra todos nós.
- Me desculpe, Alessandra, mas é também minha função estar junto dos pacientes e tentar ajudá-los com o que posso, dentro das minhas possibilidades técnicas...
Acho que com essa justificativa não havia muito o que a enfermeira pudesse fazer para me manter longe daquele paciente. Assim, então, me aproximei de seu leito para tentar entender o que estava acontecendo. Porém, antes de falar de minha interação específica com ele, naquele momento, quero traçar algumas breves considerações sobre seu histórico.
Antes de sua internação na UTI Luciano tinha uma vida com muitas características próximas ou similares à vida de muitos profissionais que atuavam em nossa unidade. A vida de Luciano era talvez até parecida com o que costumava ser retratado tradicionalmente em propagandas de margarina. Vivia com sua mulher e seus dois filhos pequenos, de 6 e 4 anos de idade. Tinha carro e casa próprios, e uma vida financeira humilde, mas relativamente estável.
Resumindo: era um pai de família de classe média, talvez de classe média baixa, pois não tinha plano de saúde. Mas, como mencionei, tinha uma família estruturada, uma vida organizada, com uma certa estabilidade.
O problema é que Luciano, de repente, aos 37 anos de idade, teve um acidente vascular cerebral e, na UTI, estava paralisado do pescoço para baixo. Somente conseguia movimentar sua cabeça, e nada mais.
Eu já acompanhava o caso de Luciano há umas duas semanas. Tinha o humor gravemente comprometido. Nunca sorria, e sua expressão facial era de constante insatisfação, sofrimento. Mesmo após as intervenções mais trabalhosas, na tentativa de aliviar um pouco os sofrimentos dos quais padecia, Luciano jamais apresentou para mim qualquer expressão de alívio ou de um vínculo mais profundo comigo ou com quaisquer outras pessoas da equipe.
Luciano sofria muito e estava distante de todos. Seu sofrimento certamente era intensificado pela sensação de isolamento, de solidão. Seu único vínculo era de fato com sua esposa, a qual o visitava diariamente. Porém havia somente dois horários para visitas, um no período da tarde e outro à noite, os quais duravam uma hora cada. Ela o visitava somente durante a tarde, das 17 horas às 18 horas, pois morava muito longe e no período noturno, na periferia, era muito perigoso estar por ali, naquela região.
Se havia um vínculo profundo com sua esposa, obviamente Luciano tinha a capacidade de desenvolver vínculos com outras pessoas, de desenvolver algum tipo de vínculo mais efetivo com alguns membros da equipe. Era uma questão de tempo, e de tempo também para que eu, por exemplo, pudesse me dedicar mais a estar com ele, e ir aos poucos desenvolvendo esse vínculo.
Porém, como eu estava narrando no início, nesse dia cheguei ao seu leito e ele chorava, apresentando essa expressão de extrema angústia.
Parece que Luciano estava se sentindo extremamente desconfortável com absolutamente tudo nessa vida, dos pés à cabeça. Seus lábios se movimentavam, em uma tentativa desesperada de me comunicar o que estava sentindo, o que estava acontecendo. Era possível fazer a leitura labial e o que ele repetidamente dizia era muito claro:
- Me ajude!
Era um pedido simples e desesperado de socorro. Comecei então a perscrutar sobre o que ele estava precisando naquele momento. Assim fui perguntando sobre várias coisas, e ele foi me respondendo com "sim" ou "não", por meio de acenos de cabeça, para cada coisa que eu perguntava.
Após várias perguntas enfim consegui descobrir que ele queria que a cama fosse um pouco reclinada. Mal comecei a reclinar sua cama, conforme o que ele pedia, e fui interrompido pela enfermeira, bem brava comigo:
- Pode parar com isso agora! Eu não falei pra você não mexer com ele? Eu não falei pra você deixar ele quieto? Olha só o que você tá fazendo? Se você reclinar a cama, ele vai aspirar!
- Nossa, me desculpe! Foi mal... Eu não sabia...
Foi constrangedor, porque ela ficou realmente alterada, realmente brava comigo, e eu fiquei morrendo de vergonha, imaginando que de fato estava prestes a cometer um erro tosco.
Por outro lado achei que ela se irritou de um modo desproporcional ao erro que eu estava prestes a cometer e a todo o contexto no qual era clara a minha intenção em ajudar. Aliás nem sei se de fato eu estava prestes a cometer um erro, pois nem mesmo fui verificar essa informação com outros colegas médicos ou enfermeiros.
O problema é que me senti muito intimidado, do começo ao fim da interação com essa enfermeira, e tudo ficou, a partir disso, muito atravancado. E no contexto em que me encontrava, sendo o único psicólogo de todo o hospital, não era fácil enfrentar, se contrapor a como age e pensa a maioria das pessoas.
Há também o fato de que em plantões nos quais costumam ocorrer muitas intercorrências, e há muito o que se fazer, com um nível grande de estresse, no final das contas acabamos evitando o contato com pessoas cuja interação ficou assim tão comprometida. E infelizmente foi isso que passou a ocorrer em minha interação com essa enfermeira a qual, pelo que eu podia observar, não vinha apresentando um nível adequado de humanização no contato com os pacientes.
Eu sentia que ela era, além de pouco humanizada na assistência, também negligente, e isso foi ficando mais claro conforme fui ouvindo de outros colegas da equipe sobre o que relatavam de seu trabalho. Ela vinha cometendo muitas falhas e faltas sérias, de caráter ético e técnico, há alguns meses, desde que havia sido lotada em nossa unidade.
Portanto, nesse dia não tive disposição para continuar ali, no mesmo espaço que essa enfermeira chefiava. Pedi desculpas e me retirei. Mesmo assim debati o caso desse paciente com um médico que era mais humanizado. Ele me disse que estava acompanhando o caso de Luciano. Descreveu-me alguns episódios, nos quais percebeu que esse paciente estava sendo negligenciado quanto aos cuidados paliativos, relatando que havia intervido com os medicamentos necessários para que Luciano tivesse mais conforto, mais paz.
O final dessa história marca com clareza um ponto importante: Luciano não era poliqueixoso, e esse termo costuma ser utilizado de forma abusiva por alguns profissionais de saúde.
Não era poliqueixoso. Era um paciente terminal, em sofrimento extremo e incurável. Veio a falecer cerca de uma semana depois de nossa triste e sofrida interação. Por sorte teve seus últimos dias sob os cuidados desse médico mais humanizado, o qual tinha mais coração, mais compaixão, se colocava um pouco mais no lugar dos pacientes, e lhe ajudou a morrer com os devidos cuidados paliativos.
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