Tuesday, January 18, 2022

A gata de olho no banho

É divertido ir para o banho, e deixar a porta do banheiro um pouquinho aberta. Lua, nossa gatinha, ouve o barulho da água caindo e sai, de onde estiver, para atentamente assistir a todo o nosso banho. Chega de mansinho, se senta bem comportadinha em frente à porta do box, e fica observando tudo o que fazemos, e cada gota d'água que cai no chão ou escorre pelo vidro.

Gatos, assim como todo e qualquer felino, são programados para se dirigir a tudo o que se mexe, seja para caçar ou para interagir de modo fortuito ou lúdico. 

E água caindo costuma despertar muito a atenção desses animais. Lua muitas vezes tenta caçar cada uma das gotinhas que escorre pelo vidro, e está sempre atenta, até mesmo quando o chuveiro já foi desligado e cai uma ou outra gota.

Quando entro para o banho, e que ela fica me assistindo, sinto que entrei em em um espaço de alta tecnologia, uma câmara da construção de uma outra dimensão. 

Porque um box de banho produz algo parecido. De um lado há vapores, corpos nus, água caindo e uma temperatura geralmente bem mais quente. Do outro estamos com roupas, o ambiente é totalmente seco e com outra temperatura. 

O que ali ocorre parece estar cozinhando uma outra realidade. E isso de certo modo ocorre. Porque a expressão "tomar um banho" geralmente se liga a alguma transformação. Saímos diferentes. Não saímos somente nos sentindo mais limpos. Saímos com outra temperatura, com outras sensações, nos sentindo, amiúde,  um pouco renovados pelo banho.

E a gatinha permanece ali, totalmente atenta, com seu olhar aparentemente enigmático, mergulhado em seu mundo sem palavras. Esse mundo, de um presente constante, de comunhões rápidas, do esquecimento como regra, da escuridão dos silêncios eternos, da singela e atenta audiência de banhos como se fossem espetáculos milenares.

Monday, January 10, 2022

Gatos e Clarices

Gato é um bicho misterioso e  engraçado. Veio a esse mundo para confundir e desencontrar. É a Clarice Lispector dos animais de estimação. 

Quando se pensa que está num canto, está no outro. Quando se imagina que ficará agressivo, nos despreza. Quando fazemos de tudo para sermos desprezados, percebem até mesmo uma pena caindo ao chão.

Os encontros humanos com esse pequeno felino são muitas vezes desencontrados. Quando o chamamos, não vem. E quando não queremos que venha, vem correndo. Quando tentamos não fazer barulho algum, e passar completamente desapercebidos, ele nos pega. E quando estamos totalmente relaxados, tropeçando e derrubando o mundo, ele nem se liga, não está nem aí, não acorda e nem nos dá atenção. 

Um dia acordei de manhã, e vi que minha gatinha estava encostada na parede mas, como a luz do sol estava contra meus olhos, somente vi sua silhueta, e imaginei que ela estava ali, encostada na parede, olhando para mim, obviamente. Porque um predador jamais vira as costas para qualquer coisa que esteja se aproximando.

Cheguei perto. Ela estava completamente imóvel, como uma estátua, e parecia contemplar algo, ou em uma espécie de estado hipnótico, com os olhos abertos, a olhar para a própria parede, vazia, sem qualquer tipo de estímulo que chame a atenção de qualquer outro ser vivo.

O bichano entra num ambiente que nos contraria, em um lugar que não era para entrar. Aí esperneamos e gritamos, e ele ignora solenemente nosso chilique. Não se assusta com grito algum ou com ameaça alguma de violência. Mas baterá aterrorizado, em fuga, se somente dermos uma sopradinha suave em seu focinho.

E não adianta achar que esse bichinho irá se esquecer de explorar qualquer mínimo canto possível, e impossível, da casa. É um bicho absurdamente xereta. Quer cheirar tudo, e saber absolutamente de tudo o que está acontecendo em cada canto mínimo de um universo, que nunca nem pensamos em explorar antes de ter um gato.

E aí começam também meus próprios dramas pessoais e neuroses em relação a animais de estimação.

Fui criado a vida toda e condicionado a pensar que animais de estimação devem ser criados no quintal, e que jamais devem habitar o mesmo o ambiente interno que nós humanos.

Tive um único cachorro durante toda minha vida. Ele vivia no quintal, comia mais ou menos o que todo mundo na casa comia. Tinha passe livre para a rua, para sair e entrar quando quisesse. Passeava e namorava bastante, e corria obviamente diversos riscos. Mas tudo isso era concebido como algo que fazia parte da vida desses bichinhos naquele contexto de década de 80 e início da década de 90, em um bairro de periferia do interior de São Paulo.
Até o cocô e o xixi que meu cachorro fazia não era em casa. Nem víamos e nem sabíamos onde ele fazia xixi e cocô. Foi atropelado e teve fraturas, tomou facada de bandido, e também havia tomado tiros, porque conseguíamos apalpar o chumbinho, em formato diabolô, que ele tinha perto do pescoço.

Ele nem se atrevia a entrar em casa. Vivia no quintal, e a vida era muito separada, entre a vida de humanos e a vida de bicho. Desde quando éramos pequenos minha mãe sempre nos alertava, repetidamente, por inúmeras vezes, que os animais poderiam transmitir uma série de doenças e que, após tocá-los, deveríamos lavar as mãos.

Então Fred, nosso cãozinho, recebia muitos carinhos, e depois a gente lavava bem a mão.
Hoje, já há quase 2 meses, me vejo convivendo, em um apartamento pequeno, com uma gatinha preta, que foi por mim resgatada das ruas. 

Parei o carro para atender o celular. Vi que um filhote de gato, pretinho, ao longe, me avistou e fixou o olhar em mim, sendo que eu estava dentro do carro. Essa gatinha, bem pequenina, com apenas um mês e meio de vida, foi capaz de me visualizar, bem de longe, e perceber que eu estava dentro de um carro parado, e vir até a minha direção, como se estivesse mesmo pedindo ajuda, e assim entrou debaixo do veículo.

Não tive escapatória. Fui pego por esse predador implacável. Seus dois olhos, amarelinhos, brilhavam na escuridão de seus pelos. Mas um deles parecia estar fora do lugar, como se o globo ocular tivesse sido arrancado de sua órbita. 

Sou míope, e o entardecer já não permitia que eu conseguisse compreender muito bem o que havia nos olhos do bichinho. Eu tinha até receio de tentar entender claramente o que estava ocorrendo. Minha impressão é a de que ela estava mesmo com um dos olhos arrancados. Aquilo cortou meu coração, e só consegui pensar que a única coisa a ser feita era levá-la imediatamente a um veterinário, para ver o que era possível fazer em relação à sua vida.

Por sorte estava tudo tranquilo com a saúde dela, e o segundo passo era então tentar encontrar alguém que pudesse de fato ficar e conviver com esse bichinho. Porque eu não tinha, nenhum nunca tive planos de ter animais de estimação dentro de meu apartamento.
Não encontramos quem quisesse ficar com a gatinha. E assim o tempo foi passando, e minha filha foi se afeiçoando ao bichinho. O resultado é que agora esse animalzinho realmente habita o mesmo espaço que eu, que foi durante toda a vida condicionado a pensar que lugar de animal de estimação é no quintal.

E no começo o que mais me angustiava era essa gatinha descobrindo os cantos mais esquecidos e imundos da casa. Porque o problema é ela se sujar em algum canto desses, e levar a sujeira para o restante da casa inclusive para locais que não me sinto confortável em imaginar que estarão se sujando um pouco mais a partir disso, tais como o sofá, por exemplo.

E essas minhas neuroses só fazem com que eu me lembre de uma conversa um pouco engraçada que tive com a veterinária, logo nos primeiros dias em que a gatinha habitava nossa casa:

- Confesso que sou um pouco nojento, e tenho dificuldades para assimilar a convivência com um bichinho de estimação dentro de casa. Fico imaginando que ele acabou de fazer cocô, e logo em seguida senta no sofá.

- Ah, mas gatos são muito limpinhos. Eles se lambem o tempo todo, até ficarem bem limpinhos.

- E depois que ele faz cocô, ele lambe o quê? - perguntei, em um estilo um pouco mais socrático.

- Ele se lambe, e fica bem limpinho.

- Então ele lambe o cocô, e vai engolindo esse cocô, até ficar totalmente limpinho?

- É... - respondeu a veterinária, com um sorriso um pouco amarelo, e eu também.

E então, para amenizar um pouco essa minha angústia com alguns cantinhos sujos da casa, resolvi fazer uma faxina um pouco mais pesada. 

Comecei pelo banheiro. Lavei, muito bem lavadinho, tudo o que eu podia. E quem é que acompanhou, atentamente, toda a faxina?

A gatinha.

Ficou o tempo todo sentadinha, com sua cabecinha se mexendo para lá e para cá, olhando tudo que eu fazia, sem se atrever a botar suas patinhas na água.

Eu fazia aquela faxina pesada, olhava para a gatinha, e somente ouvia internamente um novo esquema de organização para o universo, que me dizia assim: "os gatos são os animais mais limpos que existem!"

Ela devia na verdade estar olhando atentamente para mim para estudar quais eram aqueles métodos de limpeza que eu estava utilizando, que eram muito diferentes dos dela. E pensava, consigo mesma:

"Olha o quanto esse ser humano está despendendo de energia, e se perdendo, em um processo que pode ser na verdade muito mais rápido e simples. Basta lamber tudo e se lamber, seu trouxa. Pra quê que você tem cuspe?"

O banheiro ficou um brinco. Ficou completamente desinfetado. Dava até para lamber o chão. Estava tão limpo que, se fosse lambido, nada seria engolido.

E aos poucos vou engolindo, assimilando essa nova realidade, pequenina, fofinha, estranha e misteriosa, que hoje circula, todos os dias, por vários cantinhos de nossa casa.

Banho quente pra quem é gente

Nunca tive nem cuidei de gatos. Em casa somente tivemos dois vira-latas, nas décadas de 80 e 90. Um deles, inclusive, cujo nome era Fred, nos deixou maravilhosas lembranças. 

Fred nasceu em 1987 e desapareceu 7 anos depois, em 1994. Era um típico vira-lata, querido da vizinhança, de periferia. 

Comia muito da comida que sobrava em nossos pratos e também um pouquinho de ração. O portão vivia trancado, mas havia uma abertura pela qual ele podia entrar e sair quando quisesse. Foi atropelado uma vez, tomou facada de bandido, que pulou dentro do nosso quintal. Tomou tiro de chumbinho, que não sabemos quem foi que deu. Mas sabíamos que ele tinha um chumbinho no corpo, porque dava para apalpar e sentir certinho o formato do chumbinho diabolô em sua pele.

Tomava banho de mangueira. Era um cachorro de quintal, e jamais entrava dentro de casa. Lembro-me bem que ele ficava bastante abatido durante o banho, ou tranquilo, não sei. E que Ribeirão Preto sempre foi muito quente. 

Então hoje tenho dificuldades para saber se aquele banho de água fria era muito sofrido ou não. Porque a água em Ribeirão não era, de modo geral, fria. Durante o verão a água não ficava muito fria, e era possível tomar banho frio normalmente, dentro de casa. Isso ajudava a refrescar.

Mas sei muito bem que naquela época eu era muito mais tosco do que hoje, e bem menos sensível ao fato de que, se estamos tomando banho quente, logo nossos animais de estimação também têm de tomar banho quente.

Sabendo muito bem disso, hoje fiz uma coisa que nunca fiz na vida, porque nunca tive gatos. Entrei dentro do box com a gatinha que peguei na rua, e dei um banho quente, presumo eu, bem gostoso nela. 

Porque ela ficou muito molinha. Ao ponto de eu enrolá-la na toalha, e ficar com ela no colo, olhando para a carinha dela, e sentindo que ela ronronava o tempo todo, e quase dormia. 

E tentamos fazer tudo baseados nos protocolos atuais, com shampoo especial, e todos os detalhes necessários para que não houvesse nenhum contratempo.

Mas eu jamais me imaginei em tal situação. Ontem, quando esse animalzinho entrou debaixo de meu carro, eu simplesmente não tinha a menor ideia do que fazer. Porque eu não tinha nem coragem de pegá-lo em minhas mãos. Fazia mais de 20 anos que eu não pegava um gato no colo.

E hoje foi isso. Tomamos banho juntos.

Sunday, January 09, 2022

"Não existe ateu quando o avião está caindo"?

Volta e meia vejo alguém dizer que não existe ateu quando o avião está caindo. Porque nessa hora as pessoas gritam "Meu Deus!", ou até mesmo oram para que o pior não aconteça.

Dizer uma coisa dessas talvez sirva como piada, para poder se descontrair um pouco. Porém, creio que a realidade seja um pouco mais complexa.

Primeiramente porque existem expressões que são na verdade automatismos, e que não podem ser tomadas como literais.

Quando alguém diz "você poderia me passar o sal?", não está perguntando para a outra pessoa se ela é capaz de passar o sal. Se a outra pessoa entender assim, irá somente responder "sim, posso", e não irá passar o sal para ela.

Se alguém grita para você "olha o cachorro!", você não vai somente ficar observando o cachorro. Você vai tentar se proteger.

Então se alguém diz "meu deus", "vai com deus", "pelo amor de deus" ou qualquer coisa parecida, isso não quer dizer necessariamente que a pessoa acredita em uma entidade sobrenatural, onisciente, onipresente, onipotente e criadora de tudo.

Porque acreditar não é definido somente por declarações ou pela utilização de expressões fixadas pelo uso comum.

Mas aí o crente insiste, e diz que a pessoa que, em um momento de desespero, começa a rezar, é alguém que na verdade acredita no deus cristão. E que se ela se declarou antes como ateia, isso que ocorreu antes não era verdade.

De fato. Não basta que uma pessoa declare no que ela acredita se ela não se comporta conforme o que declarou.

Não basta uma pessoa dizer a outra que a ama, se não cuida, não sente falta ou não expressa nenhum tipo de comportamento que esteja em conformidade com o que diz.

Não basta dizer que confia, mas não deixar que a outra pessoa tenha o mínimo de autonomia para fazer o que quer que seja sozinha.

Não basta dizer que acredita em alguma entidade sobrenatural, e que é necessário realizar com frequência rituais e orações de louvor a esta entidade, se não faz isso nunca ou quase nunca.

Assim como não faz muito sentido dizer que não acredita, mas morre de medo da suposta entidade na qual diz não acreditar.

E assim talvez seja importante retomar o conceito de agnosticismo, o qual resguarda para uma determinada crença um intervalo de confiança, sabendo que apesar de majoritariamente se crer em alguma coisa, há também margem para outras possibilidades. Ou então simplesmente não define no que exatamente acredita, porque não vê maior ou menor margem em qualquer um dos lados.

Então é agnóstico todo aquele que não tem convicção de sua crença. Acredita majoritariamente em um determinado aspecto e minoritariamente em outro. Ou então não sabe nem mesmo definir se existe uma crença majoritária. Acredita que ambas as possibilidades tem geralmente o mesmo valor.

Desse modo um agnóstico ambivalente seria aquele que teria como linha mestra somente a sua própria incoerência. Isso então fará com que uma pessoa assim se sinta livre para ser completamente incoerente em relação a determinados assuntos. Em um determinado contexto ela poderá se comportar como alguém que acredita piamente em algumas coisas e em outros poderá manifestar sua completa descrença.

Um agnóstico puro, ou ambivalente, então é alguém que segue à risca a própria etimologia da palavra agnose, que significa não-crença. É alguém que, em termos de entidades sobrenaturais, não acredita que elas existam e também não acredita que elas não existam.

Porém alguém que acredita que uma mesma coisa pode existir e pode não existir, é alguém que também pode tranquilamente se comportar tanto como se aquilo existisse como se aquilo não existisse.

Então para um agnóstico puro, ambivalente, tanto faz se aquilo existe ou deixa de existir, e ele vai, com muita tranquilidade, e até de modo divertido, navegar nessas possibilidades conforme o contexto.

E, a se observar pelo comportamento da maioria das pessoas, dá para se pensar que boa parte delas é muito mais agnóstica do que imagina.

Os que se dizem crentes muitas vezes não se comportam conforme aquilo que dizem acreditar, e o mesmo vale para os não-crentes.

Durante a maior parte do tempo pode ser que uma pessoa se comporte como se ela convictamente acreditasse ou não em alguma coisa. Mas pode ser que ocorra uma mudança em um determinado contexto. 

Uma pessoa que se julga convicta pode ser menos convicta do que imaginava e, em um momento de desespero, pode apostar suas fichas em algo que sempre teve para si mesma como muito improvável. 

Então alguém que sempre se comportou como um descrente pode, em um momento de desespero, apostar suas fichas em algo que talvez tenha uma pequena possibilidade de ajudá-la.

E talvez não seja muito honesto tentar definir uma pessoa a partir de como ela se comportou em um momento de desespero.

Por outro lado, vamos supor que faça sentido a alegação de que não existe ateu quando o avião está caindo.

Se isso faz sentido, logo todos nós acreditamos em uma entidade sobrenatural, onisciente, onipotente onipresente, criadora de tudo o que existe, e que é necessariamente Javé (Jeová), o deus do cristianismo?

Isso não faz o menor sentido quando pensamos em outras culturas, que não tem o cristianismo como base de crença. 

Então afirmar que não existe ateu, quando o avião está caindo, talvez só faça algum sentido se estivermos falando genericamente de crenças em entidades sobrenaturais, e não necessariamente de crenças em algum deus específico.

E mesmo assim podemos continuar explorando essa possibilidade. 

Vamos supor que de fato todas as pessoas tenham crenças sobrenaturais. O que faz alguém pensar que essas crenças estão no mesmo nível para todas as pessoas? O que faz alguém pensar que as crenças sobrenaturais são sempre majoritárias para absolutamente todas as pessoas? É simplesmente um episódio de desespero e descontrole emocional, no qual há completa perda de qualquer possibilidade de avaliação racional do que está acontecendo?

Isso quer dizer então que boa parte das pessoas somente acreditam em coisas sobrenaturais quando estão completamente desesperadas e perdidas? Qual é a validade de uma crença que somente se afirma a partir do desespero e do descontrole emocional de alguém?