Saturday, September 17, 2005

ESTÓRIAS DE VÔ TENOR 5

Meu avô era muito severo e conservador. Chegava na minha casa e desautorizava minha mãe, não permitindo que nós, os meninos, lavássemos a louça, pois isto era serviço de mulher. Sempre fora conhecido como um sujeito forte, de compleição robusta. Há um ano encontrei um senhor de seus sessenta anos de idade, amigo de infância de meu pai, o qual disse: “Seu avô era um sujeito muito forte. Carregava mais de cem quilos na cabeça”, fazendo gesto de força com os braços e inflando o peito.

E o patriarca, além de forte e grande, era muito severo e bravo. Tinha uma voz muito grave e firme. Era conhecido como o Véio Trovão. Então daí já dá para imaginar o respeito e temor que tínhamos por ele. Aquele filho de italiano era o poderoso chefão.

Quando criança, eu fugia de sua mão pesada e de seus sermões: “Bota mão de homem nisso aí, rapaz!”, fazendo um gesto que ameaçava um safanão na orelha. Bichinho ouvia isso e saia cabisbaixo, com o rabo entre as pernas, para que o velho completasse decentemente o serviço. Era difícil se sentir macho perto do “alfa dominante” (como são chamados os machos dominantes e detentores das fêmeas entre os primatas superiores). Conseguíamos no mínimo não ser nada, passar despercebido, ou ficar mesmo parecendo maricas.

Entretanto, nós, o netos, fomos ficando mais velhos, maiores, mais fortes também, e mais malandros. O capeta do meu irmão mais novo não perdia a oportunidade de rir do avô. Aliás, já fazia isso desde pequeno, e com todo mundo. “Bota mão de macho nisso aí!”, dizia ao velho, pegando-o de surpresa. E o Véio Trovão fitava-o com expressão austera, hesitando entre o riso e o safanão. Todos em volta, por sua vez, não conseguiam deixar de rir da situação. Um olhando feio e ameaçador e o outro com olhar meio risonho de quem se prepara pra levar porrada ou fugir.

Então fui fazer amizade com o Véio Trovão já na maioridade. Perguntava a ele tudo o que podia sobre a história da cidade e do mundo, de como eram as ruas, bairros, o que ainda não existia, os tempos da revolução de 32, da segunda guerra. Enfim, história não faltava e o Véio era bom contador: a voz grave, firme, pausada.

Criava muitos passarinhos. Tinha mais de quarenta gaiolas e alguns viveiros em seu quintal.

“Vô, é verdade que a semente da maconha serve de ração pra passarinho?”

“Serve. Eu dava pros meus canário e eles ficavam afinadinho.”

“Mas essa era uma semente que se plantada, vingava?”

“Vingava. Eu dava muito pros meus passarinho. Tanto que foi caindo no quintal e quando me dei conta, nasceram uns pé. Já tavam bem grande quando um vizinho passou, viu, e disse que isso dava cadeia.

Cortei tudo e botei no varal pra secar.

Quando já tava tudo bem seco, de noite, quando todo mundo já tava dormindo, botei no fogão à lenha”, apontando para o fogão que ainda existia, no fundo do quintal. “A fumaça foi subindo, e eu puxava”, fazendo o gesto de quem aspira profundamente uma fumaça que se eleva aos borbotões.

Fiquei hesitante com o que seria o final dessa história: se faria um sermão conservador, se eu podia continuar perguntando, se me trataria mal. Mas, resolvi arriscar:

“E aí, vô, o que é que deu?”

Sutilmente fechei a guarda, encolhi-me um pouco, como em um impulso de auto-proteção, porque viria uma porrada.

Olhou-me profunda e austeramente. Pensei: estou frito...

Veio então a resposta fatal, com voz grave e enérgica:

“Eu fiquei louco!”


Wednesday, September 07, 2005

UM SENTIDO PRA VIDA

(Antologia do Prêmio Sesc-DF de Contos, 2005)


Fico muito introspectivo quando caminho. Certo dia, daqueles que brilham de forma diferente e em que já estamos introspectivos, estava a caminhar e alguns pensamentos muito intensos surgiram em meu ser. Resistiam a qualquer questionamento: percebi o quanto é inútil viver somente para si mesmo; o quanto a vaidade e uma ambição demasiadamente narcisista geralmente toma conta da vida de todos, senão de quase todo mundo. Percebi o quanto minha existência era e estava sendo absurdamente medíocre na tentativa de alcançar algum sucesso nessa vida, como a maioria das pessoas. Sonhava em ter sucesso no que faço e consumia boa parte de minha vida em devaneios acerca de mim mesmo e do que eu poderia ser. Resumindo, a conclusão fatal era de que tudo nessa vida funciona para o nosso próprio egoísmo e vaidade. E nesse dia outra idéia fixa, decorrente desta, pungente, tomou conta de minha alma e fez que eu enlouquecesse, por algum tempo.
A idéia era a seguinte: esta vida só vale a pena se vivermos para o outro, e é isto que é o amor em sua essência. Ajudar os outros, sem pedir nada em troca. Isto justificaria uma existência de paz, de iluminação. Não me peçam mais razões, quero simplesmente salientar que uma idéia tomou conta de mim e aqui narrar os enormes efeitos que produziu.
Fiquei tão possuído por tais pensamentos, que resolvi começar a agir naquele mesmo instante. Mãos à obra! Pensei: “quero ajudar, não importa onde, nem quem, nem como”. Continuei andando e não voltei pra casa, era muito trabalho a ser realizado por esse mundão a fora. Uma senhora carregava compras, parecia pesado. Ofereci-me para ajudá-la a levá-las em casa. Olhou-me bem desconfiada e surpresa. Mas diante de minha insistência e de minha aparência ingênua e naturalmente solícita, deixou que a acompanhasse até sua casa.
Depois dessa senhora, naquele mesmo dia, ajudei a empurrar um fusquinha velho, devo ter consolado umas duas ou três pessoas, gastei todo o meu dinheiro com jujubas, panos de prato, panos de chão, doces e quaisquer outras coisas que ambulantes vendessem nas ruas; cumprimentei muita gente e continuei andando. Quando dei por mim, estava a muitos quilômetros de casa e sem um tostão, morto de fome e sede, mas muito feliz. Feliz de um modo tão sereno e puro como nunca havia sentido.
O que fiz então? Comecei a esmolar, a pedir aqui e ali um trocado para inteirar na passagem do ônibus e para um marmitex. As pessoas, em princípio, mostravam-se bem assustadas, pois afinal eu não tinha a menor aparência de mendigo, pelo contrário. O dinheiro que consegui, comprei um lanche e nem pensei em voltar pra casa. Fiquei na rua até bem tarde e acabei dormindo no banco de uma praça. Acordei no dia seguinte com o canto dos pássaros, com a natureza brilhando sua vida pra mim como nunca. Eu era um homem realizado, feliz. Pensei, não volto nunca mais pra casa. Serei um andarilho, um mendigo, mas darei à minha vida o seu verdadeiro sentido e finalidade. Para que serve esta vida? Por que estamos aqui? Para isso, para amar o próximo, sem qualquer interesse, para ajudar os outros.
Continuei minhas andanças. Minha barba e cabelo cresceram. Arranjei uma escovinha de dente, uma mochilinha toda surrada e suja, um potinho pra comida, e sempre improvisava um cantinho para tomar um banho de vez em quando. Mas estar na rua o tempo todo é assim, não tem jeito, a gente fede mesmo. Mas eu nem percebia mais, estava feliz com a vidinha que levava, e orgulhoso de saber que aquele era meu destino, que tudo o que havia feito até ali não havia sido em vão, mas somente uma soma que levasse o caldo a entornar e fazer com que tivesse a visão divina do verdadeiro sentido da vida. Para muitos eu era somente um derrotado, um mendigo. Mas, para mim mesmo, eu era o máximo sendo o mínimo possível. Tive o mérito de poder me esquecer. Tirei férias de meu próprio ego.
Não sei o que aconteceu, mas o desapego de mim mesmo fez com que enfrentasse os maiores perigos, agressões e enfermidades com tanta serenidade que nem podia me reconhecer naquele corpo, naquele ser. Eu simplesmente era. Era sujo, fedido e repugnante, mas exalava luz, e as pessoas percebiam, pois onde quer que eu chegasse ofuscava o evento que ocorria: tudo parava e todos subitamente olhavam pra mim. Aliás, eu chamava muito a atenção, inclusive pelos sete vira-latas que sempre me acompanhavam.
Depois de um ano nesta vida divina e iluminada, estava andando, sempre sem saber para onde ir e, de repente, quando vejo, estava na rua de minha casa, em direção à ela. Para minha surpresa, minha mãe estava na porta do prédio, sentada num banco, fazendo tricô, de costas para a portaria, e não me viu. Andei instintivamente (como sempre) em sua direção. Passei por detrás dela e entrei no prédio. Devagarinho fui subindo as escadas e cheguei ao meu andar. Abri a porta. Fui até a cozinha. Nossa, que beleza, a geladeira estava cheia. Peguei tudo o que podia e fui para a sala. Em meia hora comi o que poderia ter comido o dia todo, como um rei, bem tranqüilo e recostado no sofá, assistindo televisão: “a serenidade é a minha morada”. Tendo já comido bastante, feito um leão, peguei uma toalha no varal e fui para o chuveiro.
Tomei um banho daqueles, como há muito tempo não o fazia. Cheguei à porta de meu quarto e tudo estava como antes: caminha arrumadinha, tudo cheiroso, limpinho, meu aparelho de som num canto. Exceto por um detalhe muito desagradável: Bife, meu cachorro, estava dormindo em minha cama. Nunca suportei e nem permiti isso. Culpa da minha mãe que não soube educá-lo. “Saia daqui, seu porco filho-da-mãe!”. Dei-lhe uma bofetada no traseiro e o bichinho percebeu rápido que o dono do pedaço estava de volta.
Botei uma roupa fresquinha, liguei o som e deitei na cama. Adormeci esplendidamente. Acordei cedinho e tudo em silêncio, tudo macio, cheiroso e fofo. “Ah, como é bom estar em casa novamente. Como é bom ter uma casa e uma família. Como é bom ter para onde voltar...”


Tuesday, September 06, 2005

CACHORROS E PESSOAS

Saindo do supermercado, não pude deixar de reparar. Um cachorrinho, talvez um vira-lata, mistura de duas raças nanicas, pintcher com bassé, provavelmente. Feição lambida, angustiado, orelhas baixas, olhar fixo para dentro do recinto, preso na entrada. O dono fora fazer compras e deixara o pobre e engraçado cachorrinho lambido que o esperava para ser resgatado do fundo do inferno de ficar sozinho nas fronteiras entre dois mundos: o seu, encolhido num canto, e o dos homens, a transbordar em gente que entrava e saia do prédio.

Cachorro tem uma qualidade: sabe pedir. E quem não sabe, passa fome ou fica sozinho. O olhar de um cachorro carente é o melhor modelo de sedução tácita. Estamos logo rendidos a fazer-lhe um carinho. E poucos seres humanos tem a mesma sorte dos cachorros: a de serem espontaneamente afagados. E tanto uma espécie quanto a outra precisa de carinho. Eles sabem pedir e receber. Nós, entre nós, não sabemos pedir e nem dar.

Olhei em volta, e observei a multidão. Veio-me a seguinte imagem à cabeça: eu afagando todas as pessoas que via. Tinha um velhinho. Em termos de idade, crianças e velhinhos são bem mais parecidos com cachorros. E eu estava lá, fazendo um carinho no tiozinho, como se fosse um cachorrinho indefeso. Mas, transformar velhinhos em cachorros é muito fácil. Passei a procurar desafios maiores para minha imaginação. Sim, aquele homem de terno. Parecia imponente, muito seguro de si, talvez alguém muito poderoso, deputado, quem sabe. Agora era um cachorrinho sem palavras nem gesto de autoridade, comendo em minha mão.

E fui assim, desafiando minha imaginação, e tomando como vítimas de meus afagos pessoas cada vez mais improváveis e inacessíveis. Senhoras de muita coisa nessa vida, menos do que eu podia imaginar delas. Para ficar mais insólito era necessário ir fundo. Que o carinho fosse o mais próximo possível do que fazemos com os cães. Mãos firmes sobre a cabeça, alisando do pescoço até as costas. E as pessoas foram ficando cada vez mais parecidas com cachorros.

Um bom modo de quebrar distâncias entre eu e algumas temidas pessoas, autoridades incrustadas no meu imaginário como algozes de minha alegria e desprendimento. Não, não impeçam que eu respira livremente. Vocês são cachorrinhos carentes, precisando de carinho. Todos somos, em algum canto de nossa existência; ou no auditório escancarado da nossa perdição constante, na vida pública ordinária.

Como se uma figura de autoridade, uma pessoa muito poderosa, senhora de todos e de si, dissesse: “Não serei objeto de nada nem de ninguém. Também desejo ser amado, mas que o amor venha de baixo pra cima e não o contrário. Vocês devem me amar como a um deus, não como a um cachorro”. E assim o amor nunca se rende verdadeiramente ao que é de carne, osso, cócegas e risos: não alcança a alegria dos corpos sorridentes que pulam e brincam entre si. Se esquece de ser feito de mordidas de mentirinha, de coisas que não tem nome, e de que o amor pode brotar sem razão, na esquina da alegria, sem precisar de uma bíblia pesada para prometê-lo em sacrifícios por toda a história da humanidade. O amor que sentimos somente ali, naquele ínfimo momento de carinho e compaixão, por um cachorrinho lambido que ansiosamente espera seu dono na porta de um supermercado.