Saturday, October 29, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 2 (O Ninja)

Hans era um holandês muito gente boa e exótico. Tinha teorias pouco comuns e interessantes sobre o ser humano, a vida. Vivia de modo saudável e sempre o mais próximo possível da natureza. Meditava e fazia yoga já bem tarde da noite. Às vezes já era uma ou duas horas da manhã e lá estava Hans, concentrado, se contorcendo todo nas mais diversas e bizarras posições de yoga, com influências de várias outras práticas orientais, em um ecletismo cheio de estórias de mestres, livros, filmes e referências das mais variadas espécies.
Também havia praticado diversas artes marciais. Além do fato de saber como sobreviver na selva, no mar, com pouco alimento e recursos, pois fora do exército de elite da Holanda. Sabia manejar tudo quanto é tipo de arma e conhecia as mais diversas formas de defender-se ou matar. Hans era alto, forte, uns 45 anos de idade, mas com um corpo uns quinze anos mais jovem. Por outro lado, bebia e fumava feito um louco, inclusive maconha. Já havia experimentado tudo quanto é tipo de drogas: maconha, haxixe, cocaína (inclusive a folha), ecstasy, chá de cogumelos, absinto, ayahuasca, peiote, LSD, ópio, heroína e várias outras porcarias. Também conhecia todos os cinco continentes: comera churrasquinho de grilos na Tailândia, baiacu na Coréia e macaloba em uma tribo indígena daqui do Brasil.
O baiacu, para quem não sabe, é aquele peixe venenoso, extremamente difícil de se preparar e que serve de sofisticada refeição para os orientais que pretendem almoçar bem perto da morte. Pois, diante de qualquer pequeno erro em seu preparo, este peixe pode matar a quem se atreve a comê-lo. São cerca de setecentas mortes ao ano, de pessoas envenenadas por baiacu, somente na Coréia do Sul. E a macaloba é uma bebida alcoólica indígena, fruto da fermentação de milho com cuspe, pois no seu preparo, este deve ser intensamente mastigado e misturado à saliva.
Hans era uma pessoa vivida, experiente e sangue bom. Era o nosso mestre shaolin. Costumávamos chamá-lo de “O Ninja”. O apelido surgiu de uma história que ele mesmo nos contou. Como Hans conhecia diversas artes marciais, houve quem exagerasse por demais as expectativas acerca de suas habilidades. Jorge, um sujeito de uns trinta anos de idade, o conhecera e ficara tão surpreendido com as estórias de Hans, que propunha seriamente levá-lo a participar de um campeonato de vale-tudo. Queria e acreditava que Hans pudesse enfrentar e vencer quaisquer brutamontes nascidos para matar e cerca de vinte anos mais jovens.
“Hans, você não me engana, conhece a fundo o ninjutsu. Você possui muitos conhecimentos sobre sociedades secretas, ocultismo e não revela facilmente o que sabe. É, aquela história: o sábio não diz o que sabe e o tolo não sabe o que diz. Por favor, ensina-me da arte, mestre...”
E Hans deu-lhe uma forte bofetada no rosto, estridente, de mão aberta, rápida e inusitada.
“Então, cale-se, seu tolo!”
Jorge, em princípio, ficou um pouco assustado, pois fora um ataque fulminante, repentino. E doera bastante. Colocou a mão sobre a face avermelhada, marcada fortemente pela bofetada. Fez primeiramente uma expressão de dor e desapontamento, da qual brotou surpreendente e espontaneamente um sorriso. Um sorriso de satisfação, de quem cresce com um tapa na cara: fora seu primeiro ensinamento ninja.

Thursday, October 20, 2005

COLEGAS DE REPÚBLICA 1


Havia sido enfim convocado para assumir uma vaga na tão famigerada e disputada moradia da universidade. Recebi as chaves das mãos de um sujeito baixo, moreno escuro, olhos esbugalhados e grandes, sotaque e trejeitos de gente do interior. Cheio de pulseiras douradas nos braços, gola da camisa aberta, mostrando os pelos do peito. Barrigudinho, com uma voz aguda, de gente pequena. Falava sempre chamando pra perto, às vezes sussurrando, como se guardasse segredos de estado, ou aquelas falas de malandro, cheio das pulseiras, dos relógios grandes e dourados. Estava saindo do apartamento para o qual eu iria:
“Seguinte, estou saindo, vou para um outro apartamento, onde tenho amigos. Você vai dividir quarto com um sujeito meio complicado.”
“Como assim, complicado?”
“Sabe o que é, o rapaz é bissexual.”
“E daí? Isso, por si só, não é problema.”
“Não sei, não suportei. Acho meio complicado esse tipo de coisa.”
“Ele fez alguma coisa de errado? Deu em cima de você, desrespeitou, ou coisa semelhante?”
“Não, não...”
“Então não vejo problema. Preconceito seu.”
Pensei: coisa de caipira, de gente grossa. Vindo de um sujeito cheio de pulseiras douradas e que fazia questão de exibir os cabelos do peito era a atitude mais esperada.
No dia em que cheguei para a mudança, o sujeito veio me receber. Alto, meio gordo e olhos claros. Recebeu-me com formalidade e excesso de perguntas. Fez uma espécie de entrevista. Queria saber de todos os meus gostos e manias. Dizia que era importante esta conversa para que tivéssemos um bom convívio. Achei excessivo, meio neurótico. Contudo, como sou muito tolerante, deixei que perguntasse e falasse o que quisesse. Tinha um olhar siderado. Gostava de olhar de forma profunda e um pouco mais demorada que o usual, como se pretendesse impor respeito. A verdade é que tinha um olhar meio doente. E logo percebi que era uma figura dominadora.
Infelizmente, Reginaldo (este era seu nome) foi adquirindo liberdade. Era cheio de estórias que aumentavam seus talentos, tinha um prazer enorme em gabar-se, em mentir (o que fui perceber depois). Porque “ganhava muito dinheiro, tinha patrimônio e havia morado na Europa.” E foi logo se entregando:
“Vou abrir logo o jogo, baby. Porque detesto o clima de suspeitas, a tensão no ar. Sou gay.”
“Tudo bem e daí?”
“Não, somente para deixarmos as coisas em pratos limpos. Não gosto de fofoca, de diz-que-diz. Jogo limpo e já vi que você é uma pessoa legal, pra frente, tranqüila, liberal. Espero que sejamos bons amigos. É isso.”
Dias depois resolveu fazer uma feijoada. Disse que havia convidado os outros três moradores. Que seria bom para confraternizarmos.
No dia da tal feijoada, chego da universidade e percebo que o apartamento, além de vazio, estava imundo. O sujeito havia emporcalhado toda a casa para cozinhar. Tudo muito sujo e cheirando a feijoada. O apartamento estava fechado, abafado. Aquele ar gorduroso para todo e qualquer canto. Roupas no varal cheirando gordura. Aquilo foi suficiente para abalar meu humor. Não gostei nada, nada. Fiquei irritado.
“Onde estão todos?”, perguntei.
“Devem estar chegando. Enquanto isso vamos ouvir uma música.”
O cara amava Roberto Carlos. Botou “Fera ferida”. E começou um longo discurso sobre sua vida e a relação com esta música. Ele era uma fera ferida, “animal arisco”. Um bicho, uma fera mordida. Uma bicha louca, solta no mundo, ameaçando a ordem, a razão, o bom senso, os bons costumes.
Passou-me o prato de modo a pegar em minha mão em um gesto de envolvimento. Esquivei-me. Ele estava mais afetado do que nunca. Peguei rapidamente o prato e procurei sentar-me à distância. Continuava loucamente a contar tudo quanto é estória de sua vida. E a música não parava de tocar. Apertou o botão de “repeat”. Tocaria indefinidamente. E a feijoada gordurosa, salgada.
“Está gostoso?”, perguntava, com olhar insano, fixo e extremamente ameaçador.
“Ah, sim, sim.”
Terminou sua refeição e começou a dançar, sozinho, como se tivesse um par. Portava uma tanguinha ridiculamente pequena diante daquele monte de banhas. E ficou ali, rebolando, rodando por toda a sala. Pensei: “Deus do céu, eu não mereço uma coisa dessas”.
Como se não bastasse, convidou-me para dançar, puxando-me pelo braço.
“Vem, vem. Deixa de ser machista, rapaz! Seja mais alegre, mais libertário.”
Para a loucura geral daquele dia, deixou que a mesma música tocasse repetidamente por quase uma hora. Dançava, rodava, rebolava. Ora como se fosse balé, forró, valsa ou como uma stripper de prostíbulo de beira de estrada. Estava surtado. Encarnou a bicha mais louca do mundo e resolveu traduzir isso em dança. E uma bicha louca é isso: o feminino inflamado, em estado de bicho, regorgitando loucuras.
Comi o mais rapidamente que podia. Sem que ele percebesse joguei fora a maior parte da feijoada que estava em meu prato. Aquilo era uma bomba para uma congestão: gordura e sal em excesso; “Fera ferida” comendo solto (e alto pra caralho); calor e falta de luz. “Deus do céu, dai-me uma luz.”
Eu já estava no quarto, correndo, preparando minhas coisas para fugir imediatamente dali, quando ouvi um rugido de alguém que passava mal, vomitava. Corri a até a sala e lá estava Reginaldo, debruçado, botando os bofes pra fora. Vomitou toda a feijoada e, desesperado, dizia sentir falta de ar e fortes dores no peito.
“Adriano, pelo amor de Deus, me salva! Preciso de um médico, urgente! Sou muito jovem pra morrer”. Chorava como uma criança, implorando socorro.
Neste exato momento chegava um outro morador. Tentamos os dois carregar o enfermo. Mas era muito pesado. Chamamos outros colegas, de outros apartamentos. Por fim conseguimos colocar aquele mamute no carro e sair voando para o pronto-socorro mais próximo. Lá foi atendido prontamente, por um médico muito gentil e bem humorado, o qual soube acalmar a fera.
“Foi mais o susto do que tudo, Reginaldo.”
“Doutor, o senhor salvou minha vida, é uma pessoa iluminada. Serei eternamente grato por isso. Deus abençoe o senhor e toda a sua família.”
No caminho de volta pra casa, Reginaldo era o porta voz da gratidão universal e infinita.
“Vocês provaram o que é ser amigo. Eu amo vocês, sabia. São minha família.”
Durante todo o percurso contou mais estórias de sua vida e também foi capaz de contar piadas, de dar risadas. Chegando em casa, abraçava a todos que o socorreram. Um abraço longo, meio constrangedor, de corpo inteiro. As pessoas ficavam meio sem jeito. Mas aquilo era o Reginaldo
<>Queria se mostrar como uma pessoa grata, resolvida e carinhosa.

Entrou no apartamento e qual foi a primeira coisa que fez, como disse, “em homenagem” aos amigos? Colocou uma outra música para tocar, no repeat, indefinidamente. Bem alto, para que todos os outros moradores do prédio também ouvissem, principalmente os desafetos: “Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito...”.