Wednesday, December 13, 2006

QUESTÃO DE ESTILO

"Estilo é uma deficiência que faz com que um autor consiga escrever como pode"
Mário Quintana

Dizem que esta frase é do Quintana. Importa menos sua autoria do que seu valor provocativo e até esclarecedor. Ela sugere de fato algumas verdades fundamentais sobre o que é o estilo.
É mais uma deficiência do que uma potência. Ter estilo é chegar pela porta dos fundos e sair, com todos os louros e méritos, pela porta da frente. É a deficiência aceita ou assumida, e transformada em uma marca pessoal. É tirar proveito de nossos próprios defeitos. É saber perder. Quem não sabe perder, está longe de ter estilo.
Vem à minha memória Bukowski, dizendo que alguns cachorros têm mais estilo do que muitas pessoas. Falta estilo a quem deseja ser o que não é. Um modelo a ser seguido pode tanto nos inspirar como expor essa falta de autenticidade.
Joel Birman, psicanalista brasileiro, propõe que a análise deve trabalhar no sentido da produção de uma estilística da existência. Toda psicoterapia que se preze deve contemplar tal fato: a transformação de desvios e falhas em marca pessoal. O defeito a serviço de algo novo e único. Aquilo que nos distingue como únicos.
Drummond: “Todo ser humano é um estranho ímpar”. Sim, mas somente sob duas condições: se for observado bem de perto, em detalhes. Percebemos sua singularidade somente quando conhecemos de fato as pessoas. Ou quando é permitido ao sujeito ser quem ele é. Se não se comportar o tempo todo na inútil busca de se conformar perfeitamente a um padrão tirânico. E o ser humano é mais ímpar ainda quanto mais estilo tem.
Porém, convenhamos, ter estilo não é simplesmente ser único. O estilo é uma singularidade percebida e geralmente admirada. É admirável o feio sem pudor e cheio de charme ou graça; o maltrapilho cheio de postura e elegância; enfim, todo aquele que não se escondeu de seus defeitos, mas os utilizou como um tempero: o contragosto gerando sabor, fazendo a diferença.
Dali: passou bosta por todo o corpo e foi até Gala. Se ela o aceitasse, apesar da merda, ficaria com ela para o resto da vida. Ele sabia muito bem o que era estilo. Fazia-se engolir com merda e tudo. Ter estilo é isto: aceitar antes de tudo a nossa merda fundamental.
Uma vez ouvi esta aqui: a melhor maneira de levar a vida é igual cavalo no desfile de 7 de setembro. Caga e anda, e ainda recebe aplausos de todo mundo. Pra ter estilo tem que aprender a cagar e andar. Saber que é impossível agradar a todos ou ser amigo de todo mundo.
A assertividade está ali, juntinho do estilo. Mas a humildade e a desapego também. No primeiro caso é a capacidade de manter-se firme, digno. Era a grande diferença entre Romário e a maioria dos atacantes que vi jogando. Errava um gol e ficava indiferente, de cabeça erguida. Não se deixava abalar com as vaias da torcida. Esperava menos, talvez. Não tinha medo de errar, de perder. Mais desapegado da vitória. Talvez pensasse: “Não fiz agora, mas daqui a pouco surge outra oportunidade”. Desperdiçava menos energia com lamentações. O estilo é a beleza do imperfeito, do tortuoso, refuncionalizado.
Garrincha era mais estiloso do que Pelé. Pelé era perfeito, nada lhe faltava. Para ser estiloso é necessário faltar alguma coisa e daí brotar a grande ironia: nossa incrível capacidade de auto-aceitação. É uma receita de bolo que combina auto-aceitação com assertividade. Ou seja, deve haver um pensamento mais ou menos assim: certas coisas não podem ser mudadas e meus recursos terão de ser outros, fora do padrão. É a capacidade de se afirmar pela diferença. É ser diferente, não corresponder a nenhuma forma ideal e, apesar disso, propor algo novo. O estilo cria e propõe novas formas de ser. Há uma relação indissolúvel com a criatividade.
Ter estilo é essencialmente não ter medo. Provém de um profundo respeito por si mesmo. O último rincão da auto-estima é o respeito por si mesmo. Amor próprio é fundamental, seja na verdade (o que é bem mais raro) ou na auto-ilusão. É a gordinha banguela sorrindo, e dizendo que se acha linda. Vi esse personagem numa entrevista de televisão. fico me indagando sobre a estruturação psíquica destas pessoas. Daquelas que inclusive ganham dinheiro com sua feiúra em programas humorísticos. E não estou falando somente de personagens miseráveis dos quais o público ri em virtude de seu excesso de ingenuidade e muitas vezes até de incapacidade. Estou também falando de gente comoSoares, o qual tirou charme e elegância da obesidade. O qual demonstra talento e desenvoltura em cima de mais de 100 quilos de gordura.
O respeito por nossos limites e deficiências pode demandar tempo. O processo de auto-aceitação às vezes precisa ir amadurecendo. É uma certa boa aceitação da derrota e do fracasso. Ou simplesmente a falta de auto-avaliação constante, como no caso dos animais e das crianças. Simplesmente fazem o que têm vontade e espontaneamente. São mais impermeáveis ao massacre moral.

Friday, October 13, 2006

Exercitando o nonsense

Aviso: fique tranqüilo, leitor, este texto não será non-sense.

Quero falar um pouco de minha história com o non-sense. Meus primeiros contatos conscientes com tal fenômeno foi com cerca de uns doze anos de idade. Lembro-me bem, era um filme de comédia: Top Secret. Coisa da década de 80. Não chegava a ser um Monty Python, com sua fama e chiqueza. Porque Monty Python é uma coisa fina, respeitada. Não, filmes como Top Secret, Apertem os cintos que o piloto sumiu!, Top Gang, Corra que a policia vem , e outros mais do mesmo estilo, estavam mais para o trash movie do que a finesse e a sutileza consagrada de Monty Python.

Mas foi meu primeiro contato com o non-sense. Tudo valia. Misturar alhos com bugalhos e mostrar sempre que possível algo que não tem nada a ver: no meio da confusão em que o avião está caindo, uma mulher balançando os seios para a câmera; depois de uma série de explosões, um carro velho aparece do nada e explode muito pior ainda; ou extraterrestres, vindo do espaço, do nada, que de repente, sem o menor sentido, salvam o protagonista no momento fatal - essa é da Vida de Brian (Monty Python).

O humor era algo absurdamente valioso em minha família. Meu pai era tido como um sujeito engraçado e Cako, meu irmão mais novo, foi simplesmente o sujeito mais engraçado que eu e muita gente conheceu nessa vida. , desde muito cedo, eu também queria ser engraçado como Cako. Mas tive de desenvolver meu próprio estilo. Não bastava imitar. Ficava muito limitado e não tinha a mesma graça. E meu próprio estilo, nessa história de humor, se é que um dia ele existiu, começou a brotar com uma grande inspiração no non-sense. Achava aquilo o máximo: não ter a obrigação de fazer ninguém rir. Fazer humor de cara séria, sem sorrisos desnecessários, sem abrir os dentes para que a maldade do mundo se aproveitasse e lhe desse um soco na boca.

Comecei a entender tudo, assistindo a filmes non-sense. Melhor não ser compreendido, do que ser compreendido na falta de graça. Era não depender de ter uma cara de palhaço. Não precisar aproveitar-se de um defeito físico ou uma medida excessiva (narigudo, cabeçudo, orelhudo...). É fazer humor de cara limpa e com sobriedade. Criar tensão. Deixar algo no ar. Não completar. E claro, surpreender, sempre. É um exercício constante de descontinuidade.

Essa coisa do non-sense é tão pungente em mim que vez ou outra eu toquei, cultivei, estudei, escrevi e exercitei o negócio. Tanto no meu mestrado, sobre a experiência poética, quanto no meu doutorado, sobre a ironia, escrevi tópicos inteiros sobre o non-sense. E também quando fui supervisor de uma oficina de criatividade na universidade, estava o bichinho. Fora o fato de eu sempre ter relacionado a poesia com o humor. Sempre pensei que uma poesia, por mais séria que fosse, funcionava de modo parecido com aquilo que nos faz dar risadas. me graduei em Psicologia, e fui para a Unicamp. Entrei no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) e me matriculei emTópicos em Análise do Discurso”. Durante a maior parte desta disciplina estudamos os operadores lingüísticos do humor. Ou seja, o que nos faz rir em uma piada.

Li tudo o que eu era capaz de ler sobre o assunto. E sempre estava a lanterna do non-sense a iluminar meu caminho. “Para fazer boa poesia não procure dizer nada. Se quiser flutuar, tente afundar. O não-sentido é o ninho gerador do sentido”. E assim eu caminhava por entre contra-sensos e não-sensos, fascinado com as dinâmicas insólitas e contraditórias do espírito e do universo.

Muito antes da oficina de criatividade, eu cultivava a comunicação e a expressão non-sense. Para mim, o non-sense é pai do humor e da poesia. Lembro-me de uma vez, com alguns colegas da Psicologia da UnB. Era uma reunião de amigos na chácara de um professor. Descemos até a piscina, e em um grupo de umas cinco pessoas, no escuro, somente sob a luz da lua, começamos a conversar e fazer movimentos corporais non-sense. Aquilo foi magnífico. Muitos deixaram inclusive que o próprio corpo fizesse movimentos non-sense. Houve alguém que correu como um jogador de futebol para o gol, narrando seu próprio jogo e, antes, parou para botar um ovo, antes de fazer o gol. Um lance típico de um Garrincha em tempos de lua e torcida admirada a engolir picolés de alegria e olhos de delírio no gozo um gol samba na alma. Naquele dia muitos de meus colegas psicólogos puderam experimentar uma forma libertadora de expressão.

Ainda antes da oficina, lembro de Diogo, com 12 anos, filho prodígio de uma amiga minha. Era clima de férias, em Pirenópolis, e ele ficou fascinado com a brincadeira. Não queria parar. Ficamos horas e horas falando non-sense. Atingimos outros níveis. Nossa consciência e percepção se alteraram. O mundo se transmutou. Nossa fala fantástica nos conduzia a outras dimensões. Não havia medo do destino de nossa expressão. É um exercício muito interessante e varia muito conforme o tempo em que nele permanecemos. O corpo começa também a participar e, quando percebemos, estamos atuando de forma completamente ridícula ou bizarra, em coreografrias absurdas e livres. Intensamente livres. E este é seu resultado: a fluência, a fluidez, o desbloqueio de energias, no corpo, na cabeça e na língua.

, depois, teve a oficina de criatividade e o tanto que eu e alunos nos deliciamos com aquilo tudo. Hoje, dois anos depois da oficina, eu estava dando aula sobre linguagem e pensamento, mais especificamente sobre a afasia. Vimos dois tipos: a Afasia de Broca e de Wernicke. Na primeira, há deficiência na capacidade sintática. Na segunda, a deficiência é nas palavras de conteúdo ou palavras-chave. Em uma, o sujeito somente fala as palavras-chave e na outra o que falta é justamente isso.

De repente, fui percebendo o quanto a poesia é uma forma de expressão cambeta. É expressar-se como se estivesse faltando algo. Ressaltar somente uma parte da linguagem e daí poder dizer o que nunca foi dito. Enfim, percebi que os haicais sofrem de afasia de Broca e que brincar de esquizofrenês (falar non-senses) tinha algo a ver com a afasia de Wernicke.

Então passei um exercício que gosto muito: escrever uma frase, cheia de sintaxe, complexa, descontínua, non-sense e infinita.

Exemplo:

“Estou agora aqui voltado para os montes claros da minha visão enluarada de sabiás para poder cantar a vida das vacas que rodearam meu sono por toda a eternidade de pastos de alegria e sabor de nuvens por entre as pernas da sabedoria divina dos amores que vivi no horizonte do ventre da rua que se abriu de sua boca para me contar um sonho de amanhã e luz em meu coração de pedra carcomido pelo véu da noite de minha lucidez...”

Ou, como pude escrever antes, em um texto chamado Pornografia:

Olhos de olhar o deserto arrumado na casa das fomes de pedir saladas de peles retorcidas nos lençóis da esperança prometida num instinto esquecido. Sonhos de escalar corpos, vidas de sodomizar vultos, sombras de falos falantes, cavidades obscuras de cheiros e harmonias de tempestivas mucosas flamejantes, cuspidoras de beijos e melodias peristálticas. Tradições ejaculatórias da divina vulva eternizada no arcabouço das ereções indubitáveis do jorrar vulcão das vermelhas entranhas que explodem por entre as pernas escancaradas da memória do primeiro dia de vida.”

, o mais interessante é ver os alunos praticando, estimulá-los. Quando conseguem se entregar, percebem que qualquer um de nós é capaz de expressar-se, de dizer o que pensa e o que não pensa, de ir além do pensamento, de poder comunicar-se de modo mais visceral, mais próximo da riqueza das metáforas e do sentimento. Produzem, com este exercício, a forma bruta da poesia, ainda em estado puro, sem lapidação, e ficam maravilhados, como se tivessem encontrado pepitas de ouro das possíveis expressões humanas. Sentem-se fluidos. Algo saiu. E desse algo, dessa lama de expressão, podemos tirar pérolas. A última vez em que fiz este tipo de exercício foi em uma aula de processos psicológicos básicos, sobre linguagem e pensamento, afasias. Foi uma boa oportunidade para aprender e nos divertir. Tivemos algumas pérolas, algumas locuções insólitas, que deixo aqui registradas:

Gaivotas enluaradas

Boi voando pro arco-íris de meus olhos

No sótão do pensamento de cabelo arrepiado

Jogo de escada

Raio da bondade

No caminho do horror

Brasa fundamental

Rádio aberta da novela da matraca sem fim *

* Esta chamou muito nossa atenção. Foi de Flávia Holanda. Aliás, uma bela definição para sogra.

E assim foram aprendizes para sempre... do caos que nos governa, e das montanhas de sorrisos que construímos em nossa aurora, para podermos às vezes voar nossa mente com os passarinhos da liberdade de expressão...