Friday, December 08, 2023

Quando ser psicótico é mais adaptativo do que ser neurótico

Em minha experiência clínica observei alguns pacientes migrando de posições neuróticas para psicóticas. Um desses casos é curioso porque começou com uma alteração na pronúncia das palavras. O paciente acrescentava a letra r a todas as sílabas que podia. 

- Brom dria Aradrianoro cromro vrai? Vrocerê estara brem?

Esse paciente não tinha um quadro característicamente psicótico e tinhas muitos conflitos pessoais, dentro e fora do CAPS, inclusive com membros da própria equipe. Era um caso de difícil manejo, com grande vulnerabilidade socioeconômica, muita irritabilidade e agressividade verbal, e às vezes até física.

Esse novo modo de se comunicar, com uma pronúncia diferente, fez com que esse paciente ficasse um pouco mais afável. As pessoas passaram a reagir a ele de um modo diferente. Passou a haver mais interações, nas quais as pessoas tentavam falar com a mesma pronúncia que ele utilizava. As pessoas passaram a sentir que essa interação era mais prazerosa e até divertida, e esse paciente passou assim a ser mais intensamente gratificado pelo modo como estava se comportando.

Esse caso ainda está em observação e eu penso que irá se estabilizar nesse padrão de comportamento psicótico, completamente diferente do que houve durante toda a vida desse paciente, que tem mais de 40 anos de idade.

Assim como existe seleção natural de espécies, também existe uma seleção dos comportamentos que apresentamos em nossas interações e durante nossa história de vida. O ambiente sempre seleciona aquilo que é mais adaptativo. Esse paciente tem agora um comportamento muito mais adaptativo do que tinha antes. Sua vida agora, em plena psicose, está muito mais repleta de interações prazerosas do que antes, quando era somente mais uma pessoa neurótica dentre tantas outras.

Wednesday, December 06, 2023

"Está tudo interligado"?

Alguns místicos costumam dizer que “tudo está interligado”, como se isso fosse uma revelação. Mas não passa de truísmo, de uma verdade banal. E, a partir desse truísmo, dão um salto (que mais adiante muitos vão até apelar, chamando-o de “salto quântico”), para fazer associações espúrias. Como tudo está interligado se permitem o salto, que transforma contiguidade em contingência, para praticamente qualquer coisa que lhes desperte algum fascínio. E assim brotam as superstições: tudo está interligado, tudo tem relação com tudo, logo tudo faz sentido! Alcançando-se então o ponto culminante em que se sabe tudo, mas não se resolve nada. E nesse ponto algumas pessoas literalmente entram numa espécie de transe anestésico, como se fluíssem em consonância com os movimentos e as oscilações do universo. Eis seu sentimento oceânico, sua iluminação! Nesse ponto, nessa culminância e nesse estado de plena ignorância, muitas aparentemente morrem em paz.

A regra é não existir

A regra é a extinção. Há mais espécies extintas do que não-extintas. A não-existência é a regra. Cada pessoa nascida é aquele único espermatozoide, dentre bilhões de outros (mortos), que um dia alcançou um óvulo. É exceção. Outros bilhões pereceram. A regra é não existir. Viver é esse constante desafio a essa regra fundamental. Viver pode ser luminoso, mas raramente é fácil.