Thursday, December 19, 2019

Quando agem com insensatez e falta de polidez

Quando agem com insensatez e falta de polidez, fico sem saber se é somente equívoco ou falta de habilidades sociais. Ou os dois. Porque tem gente que além de burra é também sem educação. Mas há pessoas tão sem educação que parecem que são burras. E em muitos casos a rispidez e a agressividade servem como um escudo para se afirmar na vida, embora pouco eficaz como camuflagem para a burrice.

Um pouco antes da espécie humana ser extinta

Pelo visto, um pouco antes da espécie humana ser extinta, os últimos traços humanos (os mais resistentes) a desaparecerem serão a idiotia, a irracionalidade e a falta de caráter de pessoas poderosas.

Monday, December 16, 2019

A sua vida não está ruim porque você está descontrolado emocionalmente

Ouço bastante as pessoas falando que seus problemas são devido a seu estado emocional, psicológico. E às vezes até me canso de tentar demonstrar que os estados psicológicos não são causa, mas efeito, consequência.

Sentimos o que sentimos porque interagimos constantemente com o mundo, das mais variadas formas. E aí vejo que muitas dessas pessoas, que estão tendo sintomas de ansiedade e depressão, estão levando uma vida de merda.

- Não se alimentam direito. Sua dieta é pobre em vegetais. Ingerem grande quantidade de açúcar e alimentos processados.

- Não têm rotina de sono. Frequentam baladas várias vezes na semana, tendo dias em que dormem muito tarde e outros não, ou então fazendo o uso abusivo principalmente de bebidas alcoólicas e tabaco. Ou com frequência ficam jogando videogame, assistindo televisão ou na internet até 4 horas da manhã, para depois acordar uma hora da tarde. Outras simplesmente trocam o dia pela noite e, convenhamos, trocar o dia pela noite é algo que contraria completamente uma série de recomendações para uma vida saudável.

- Não fazem qualquer tipo de atividade física, e se expõem muito pouco à luminosidade natural e espaços ao ar livre.

- Fora as pessoas que estão muito atribuladas, estressadas, com uma série de atividades e compromissos que tomaram para si, e não estão dando conta. É óbvio que isso não acaba bem...

- Sem contar uma série de situações que são produtoras de ansiedade: desemprego, assédio no ambiente de trabalho, relacionamentos abusivos, vínculos frágeis e instáveis, conflitos familiares intensos e frequentes.

Enfim, a sua vida não está uma bosta porque você está descontrolado emocionalmente. Você está descontrolado emocionalmente porque a sua vida é que está uma bosta.

Thursday, November 28, 2019

"Chega de CAPS! Agora é Deus e Herbalife!"

A mãe do paciente chegou ao CAPS esgotada e bastante aflita, relatando diversas dificuldades com o filho em casa. Ele já era nosso paciente, mas havia ficado um tempo afastado, e nisso acabou se perdendo um pouco, se distanciando de algumas práticas que o mantinham estável. Estava em casa, em crise, sem tomar sua medicação de rotina, agitado, quase sem dormir, falando alto o tempo todo, dia e noite, e se recusando a ir ao CAPS ou a qualquer outro lugar que fosse sugerido pela família.

- Minha rotina agora é somente essa aqui: da casa pra igreja e da igreja pra casa. Os médicos que ficaram comigo a vida inteira morreram e de nada adiantou. Não tenho mais toxina em meu corpo. Meu médico agora é Jesus! Sou representante da Herbalife. Minha cura vem de Deus e da natureza!

Debruçado sobre a janela, nos avistou de longe, conforme fomos nos aproximando de sua casa, com o carro da secretaria de saúde.

- Puta que pariu! O que esse povo veio fazer aqui? Não quero mais saber de CAPS!

Continuou esbravejando, e ralhava bastante com sua mãe, que seria a grande culpada por estarmos ali. Falava alto, com raiva, quase gritando, praticamente sozinho, e gesticulando muito, com quase resposta alguma das pessoas em volta.

- Agora eu tô só na fé e no sangue de Cristo. É somente disso que um ser humano precisa! Minha pastora tá de prova que eu sou a prova viva da cura divina. Os homens falham. Deus não!

Parecia que essa pastora tinha bastante influência sobre ele. Ela tinha um quiosque, a poucas quadras dali, no qual servia algumas refeições, bebidas e petiscos em geral. Fomos até lá.

Recebeu-nos com panelas no fogo, rádio em volume alto, tocando sermões de pastores e uma bíblia velha, desbotada, aberta no balcão, em meio a copos, pratos e outras tralhas que compõem um bar.

A pastora gritava, todos gritavam. Ninguém se agredia fisicamente. Mas imperava a poluição sonora de sermões no rádio misturados com pessoas tentando conversar, praticamente todas gritando, porque era somente assim que se faziam ouvir. O paciente gritava mais alto. As pessoas na rua paravam para observar, tentando entender o que estava acontecendo.

 Um casal - o homem com a aparência de alguém quase sexagenário e a mulher desdentada, com um corpo magro, bem magro - queria comer. Pediram pastel. A pastora serviu. A mulher puxou-lhe o pastel da mão e parecia querer engoli-lo inteiro. Voracidade bêbada. Casal pra lá de Bagdá, etilicamente tentando participar da contenda, concordando com a mãe da paciente, de que ele deveria trabalhar e se bancar.

- Isso! Tem que trabalhar e se sustentar! – dizia a mulher, claramente bêbada, e possivelmente alguém que estava em condição social muito próxima a do paciente.

Pessoas perdidas, e condenando umas às outras. Engole o pastel, toma o café e come o pão de queijo, quase tudo de uma vez só, com unhas compridas, quebradas e preenchidas de sujeira. O paciente me abraçou e me beijou no pescoço, tentando demonstrar alguma gratidão de dentro do olho do caos. Depois me abraçou novamente, me beijou no queixo, quase na boca, e anunciou:

- Eu gosto muito de você, Adriano. Mas pro CAPS eu não volto não! 

A pastora acusa a mãe do paciente de negligência.

- Mas você nunca foi lá na nossa casa ver a situação dele. E olha que é pertinho. Dá pra ir de pé... – retruca a mãe.

E ninguém ali foi capaz de convencer o paciente a ir conosco até o CAPS, para podermos ouvi-lo com mais calma, e entender melhor sua situação. Porque agora, segundo ele, é só com Deus e com a Herbalife.

Daqui a alguns dias tentaremos novamente...

Thursday, November 21, 2019

Liberdade é depender do maior número possível de pessoas. Porque é menos livre quem depende de poucas ou de uma pessoa só. É também mais livre quem faz mais por amor do que por medo.

Flores ou chocolate?

Chocolate. Porque as flores murcham e morrem. Deterioração? Basta a que ocorre com nosso próprio corpo e nossa vida. E que a beleza seja, como qualquer coisa, também consumida. Mas de barriga cheia e feliz da vida.

Monday, November 18, 2019

Nunca ter tesão pode ser frigidez. Mas achar que sempre tem que se ter tesão, para se fazer sexo com quem se ama, pode ser ingenuidade. Ou somente rigidez mesmo.

Masculinidades doentias e sexualidade

Tenho visto muita gente tentando dar aulas de sexo para homens, com toda aquela questão das masculinidades doentias, coisa com a qual concordo bastante. Mas também tenho a impressão de que muito do que está emergindo nesse campo tem relação com um certo mercantilismo de terapias. Porque estão surgindo grupos terapêuticos alternativos, holísticos, de terapeutas que não tiveram uma formação sólida, tentando oferecer serviços nesta área, porque parece que aí está mesmo surgindo um filão saboroso de mercado.

E aí hoje me peguei lendo um texto, com um sujeito que, com um tom magistral, tenta dar uma aula, uma lição, para toda uma geração que estaria perdida por ter assistido demais a filmes pornográficos. 

E eu sempre fico me perguntando o seguinte: se o sujeito baseou todo seu repertório de comportamentos sexuais em filmes pornográficos, ou ele tem pouquíssima experiência na coisa (é talvez simplesmente alguém que acabou de perder sua virgindade), ou então é alguém que não tem um mínimo de inteligência para aprender por meio de seus relacionamentos amorosos. É sério que existe toda uma geração que está tão tosca assim? 

E talvez eu não consiga entender muito bem tudo isso, porque não sou eu que me relaciono sexualmente com essas pessoas. Parece-me que somente quem tem relacionamentos íntimos e sexuais com essas pessoas é que percebem isso. E isso geralmente se dá com as mulheres. Quem está percebendo isso são as mulheres e talvez sejam as mulheres quem mais tenham algo a dizer sobre o assunto, e não esses homens que estão dando cursos para outros homens. 

Talvez fosse melhor que muitos desses homens fizessem esses cursos não somente com outros homens, mas também com mulheres. E aí também eu já fico muito confuso porque fico sem entender algumas coisas. Por exemplo, que história é essa de agora os filmes pornográficos estarem se transformando em grandes vilões? 

Acho tão esquisito quando filmes, desenhos animados ou jogos de videogame se transformam em vilões, como se as pessoas fossem zumbis, que simplesmente imitam de uma forma muito burra o que vêem nesse tipo de produção.

E outra coisa também que não consegui engolir no referido texto, foi ele dizendo que sexo não tem nada a ver com uma performance esportiva, que sexo só tem relação com algo muito suave e sublime. 

Olha, me desculpem, mas eu acho que pode ter relação com as duas coisas. Sexo pode ser muito bom se você pensar nele como uma atividade física, esportiva, não de desempenho sexual, não de fazer a pessoa gozar mil vezes e gozar também mil vezes. Mas creio que, em alguns contextos, conceber a atividade sexual como também uma atividade física pode ajudar a melhorar a relação sexual de alguns casais. 

Porque já pude ouvir de muitas pessoas que o sexo como atividade física, como atividade que faz a pessoa ter um aumento de frequência cardíaca, se exercitar, no sentido de aquilo demandar um esforço físico (que essa pode ser uma conjunção muito boa, do orgasmo com a produção de endorfinas dele e da própria atividade sexual) é algo que as ajudou, no sentido de ter também mais vontade de fazer sexo (e não cair na mesmice) também em função disso, de ser algo que faz muito bem para a saúde, e depois produz uma sensação de relaxamento maravilhosa. Aliás, aproveito aqui para dar uma dica bem específica: relações sexuais em pé, quase como se fossem uma espécie de exercício de agachamento mais suave, são muito legais. Fazem muito bem para as pernas e para o coração rs.

Então o sexo não precisa ser somente uma atividade serena. Pode também ser visto como uma atividade física. E claro que sexo não é somente penetração. Pode ocorrer sem penetração e não deve haver esse compromisso com a penetração. 

Obviamente que deve haver sempre esse compromisso com o carinho, o respeito e o cuidado com o outro, e que isso também favorece a interação saudável de um casal, e que pode dessa maneira (com foco no cuidado para com o outro) despertar mais a libido. 

Mas não existe somente um caminho. Claro que o caminho tem que sempre ser  o do cuidado com o outro. Mas não quer dizer necessariamente que isso só implica em algo suave ou sublime. Necessariamente temos de ficar atentos para cada contexto específico. E é cada contexto específico das inúmeras interações que um casal tem que vai de certo modo ditar o que deverá ser feito. Porque não adianta nada ficar falando de masculinidades doentias com receitinhas.

Sou calculista

Eu tenho que confessar uma coisa aqui para vocês. Sou calculista. E não sou maquiavélico. E muito mais pessoas do que a gente imagina são assim. As que não são, acabam caindo em golpes, ou em armadilhas nas quais elas mesmas se enfiaram, por não terem pensado antes, com serenidade, com um mínimo de cálculo de que aquilo iria produzir muito mais danos do que benefícios.

Saturday, November 16, 2019

Uma criança na UTI

Havia um paciente na UTI, recém-chegado, que ainda estava inconsciente. Pela leitura das evoluções de seu caso, em seu prontuário, vi que se tratava de um homem de 44 anos de idade, portador de necessidades especiais. "Retardo mental moderado", era o que estava escrito.

No horário de visitas, fiz a ronda de rotina, indo de leito em leito, para ouvir, orientar e ajudar as pessoas que estavam ali, visitando seus familiares ou entes próximos.

Esse paciente ainda dormia e do lado de seu leito estava sua irmã, que era mais jovem do que ele, mas tão preocupada e aflita quanto a mãe de uma criança.

- Eu e meus irmãos estamos muito tensos com a situação dele. Se ele acordar, e nós não estivermos aqui, ele vai entrar em pânico...

Ela estava bastante aflita, porque já havia conversado com a equipe, e não haviam autorizado que ela ou qualquer outro familiar permanecessem junto ao leito, depois do horário de visitas.

- Ele tem a idade mental de 8 anos. É como uma criança. E eu sei que crianças têm o direito a um acompanhante por tempo integral.

Tínhamos então ali um paciente em uma condição especial, que demandava um cuidado especial, diferenciado. Porque se tratava na verdade de alguém que sentia e percebia o mundo como uma criança, e que portanto deveria ser tratado como uma criança.

Ouvindo sua queixa, e percebendo seu desespero, que era real e fundamentado, não hesitei. Recomendei que fosse à ouvidoria, e se isso não fosse suficiente, que acionasse o ministério público.

Tentei orientá-la nesse sentido, da forma mais sutil e discreta possível, para que ninguém da equipe percebesse o que eu estava fazendo.

Mas infelizmente não teve jeito. Minha chefe percebeu o que eu estava fazendo, e em poucos segundos estávamos cercados por umas três ou quatro pessoas da equipe, que tentavam justificar para ela por que estavam adotando aqueles procedimentos.

E eu mesmo não conseguia entender e nem aceitar aquilo. Mas me mantive em silêncio, com um olhar cúmplice para ela, imaginando que eu havia feito o que era eticamente correto. Apesar de saber que aquele seria mais um incidente complicado em meu histórico naquele ambiente, que já estava bastante perdido em relação à humanização.

Essa não foi a primeira nem a última vez que eu me colocava em um posicionamento tão desconfortável para com o restante da equipe, e isso gerou para mim um clima muito ruim de interação social e profissional com essas pessoas. Era péssimo e às vezes torturante ter de trabalhar ali em alguns dias da semana, porque no restante deles eu estava no CAPS e na Escola Superior de Ciências da Saúde.

Por sorte já estou fora daquele ambiente há mais de 3 anos, e não quero nunca mais trabalhar em um hospital.

Estou numa fase muito CNV...

Estou numa fase muito CNV (comunicação não violenta) e CVV (centro de valorização da vida). Depois que quebrei o pau aqui em meu condomínio com alguns vizinhos, por causa de política (e depois consegui me reconciliar para continuarmos tendo uma interação minimamente cordial), fiquei vacinado e não estou caindo mais em uma série de armadilhas que podem despertar a minha agressividade, e fazer com que eu me perca em um volume e tom de fala um pouco mais agressivos, ou até mesmo em uma comunicação, em termos de conteúdo, um pouco mais agressiva. Estou vacinado e não estou caindo também na armadilha de que viver assim é viver de um modo mais sem graça. Para ser engraçado não precisa agredir ninguém. Para ser engraçado não precisa bancar o louco descontrolado. E eu gosto muitas vezes de bancar o engraçadinho (defendi uma tese de doutorado sobre ironia, lembram?). Mas sei que existem muitas formas para fazer com que as pessoas riam e que possamos rir junto com elas. E quem não está entendendo o que estou dizendo, abra o Google Assistente e peça à mulher do Google para contar piadas. São várias as piadinhas ali, de conteúdo livre, para qualquer criança acessar, e há sim muitas coisas engraçadinhas que operam principalmente com duplo sentido. Então a base do humor não é necessariamente a agressividade. É brincar com duplos sentidos. Isso pode ser feito de uma forma suave, e conseguir assim despertar o riso.

Um pequeno resumo das notícias de 2019

Desmatamento recorde na Amazônia (quase o dobro de 2018) porque "quem se preocupa com o meio ambiente é vegano", e depois assumiu que potencializou os desmatamentos e queimadas na Amazônia; porque "o Ibama é indústria de multas"; "não é por causa da porra da árvore"; negação de evidências científicas; amizades com milicianos, defesas e homenagens a milicianos há mais de 15 anos, vizinhos de milicianos, milicianos e parentes de milicianos trabalhando no gabinete do 01 (Fabrício Queiroz e a mãe e a esposa do chefe do escritório do crime, organização suspeita de ter executado Marielle e Anderson); "milícia é a solução", milícia no café da manhã, no almoço e no jantar; filha do miliciano (suspeito, já preso, de ter matado Marielle e Anderson) que namorava seu filho; "imposto é roubo" e agora quer o Brasil com mais imposto (na cacunda dos pobres); menos dinheiro para educação e saúde e mais dinheiro para generais e juízes; durante 30 anos empregando familiares, e depois ainda querendo colocar o filho em uma embaixada porque "se eu tiver de dar filé mignon, eu vou dar filé mignon para o meu filho, oras"; aposentou-se aos 33 anos de idade e ferrou com a aposentadoria da população pobre; quase o dobro das queimadas de 2018, e teve a cara de pau de querer comparar isso com a média dos últimos 15 anos, sendo que em 2010 houve a pior seca da história da Amazônia; chama madeireiros e garimpeiros ilegais (além de grileiros) de trabalhadores; quer acabar com o porte de armas para fiscais do Ibama, mas quer o porte de armas para todos os outros habitantes do país; acabou com a secretaria de mudanças climáticas; retirou várias diretorias do Ibama e não repôs (ou seja, desmontou completamente o Ibama, e fez isso também dentro do próprio ministério do meio ambiente e na Funai; fora as inúmeras nomeações de PMs para vários cargos que antes eram ocupados por especialistas); ministros do meio ambiente, de vários governos anteriores, incluindo Collor, Itamar e FHC, se reunindo para protestar contra os absurdos que estão sendo feitos pelo atual ministro do meio ambiente (que é condenado, em primeira instância, por crime ambiental); cortou o orçamento da educação superior em 2 bilhões, afirmando que transferiria isso para a educação básica, mas aí acabou cortando também mais 400 milhões da educação básica; depois liberou o dinheiro aos 45 minutos do segundo tempo, com um prazo que não dá nem para fazer licitações, e aí esse orçamento no final das contas não será usufruído, para em 2020 alegar mentirosamente que tinha mais dinheiro do que a demanda (ou seja, em 2020 o orçamento cairá drasticamente); cortou drasticamente recursos de ciência e tecnologia, sucateando a produção científica nacional; tentou censurar órgãos científicos como INPE e Fiocruz; confunde maconha medicinal com maconha recreativa, e boicota uma série de iniciativas e projetos que visam produzir medicamentos para milhares de crianças com epilepsia, autismo e diversas outras enfermidades, desprezando o sofrimento de milhares de famílias; cortou recursos para as universidades federais alegando mentirosamente que os estudantes são drogados e vagabundos, se esquecendo que diversos hospitais universitários são dirigidos por essas universidades, que oferecem um serviço importantíssimo à população, além de inúmeras pesquisas importantes para a saúde da população e desenvolvimento do país...
Que mais???

A perspectiva de que não haverá exclusão pura e simples

Sim, o Chile tem uma renda per capita que é quase o dobro da brasileira. Mas tem o mesmo nível de desigualdade, e saber que se tem direito a saúde e educação faz toda a diferença. É a perspectiva de que não haverá exclusão pura e simples.
É tanta coisa absurda que a gente vem observando nesses últimos 3 anos... Mas, convenhamos, não dá para esperar boa coisa do país que mais utilizou mão de obra escrava na história do planeta.

Crescer em um ambiente machista

Crescer em um ambiente machista é péssimo para as mulheres e também muito ruim para boa parte dos homens, e eu me incluo nessa parte. Fui um bebê que chorava muito, e um dia minha mãe me levou ao médico:

- Seu filho não tem problema algum. É um bebê sensível, que está assimilando tudo o que ocorre dentro de casa. Você e seu marido não estão bem, e ele está percebendo tudo...

Isso ajudou minha mãe a compreender um pouquinho mais o que estava ocorrendo comigo, mas não me poupou de um mundo machista, que maltrata intensamente meninas e também meninos sensíveis.

A luta para engolir o choro foi uma luta de toda a minha infância, e também de parte de minha adolescência, quando enfim consegui fazer com que minhas lágrimas secassem e hoje eu tenho (por outros motivos, obviamente, mas de forma coincidentemente irônica) disfunção da glândula meibomiana, que provoca ressecamento ocular, devido à falta de lágrimas mesmo.

Mas o problema de perder a capacidade de chorar em público, ou de conseguir demonstrar claramente o que está ocorrendo conosco (com toda a série de códigos e de linguagens corporais necessárias para que o outro entenda que não estamos bem) é que as pessoas simplesmente não percebem que estamos angustiados, desesperados e passando por um momento muito difícil em nossas vidas.

E isso, no meu caso, se expressa com bastante clareza em meus ambientes de trabalho, nos quais a maioria das pessoas é composta por mulheres. Muitas delas se assustam ao perceber que sou também uma pessoa sensível.

Porque para muitas delas é difícil de perceber a sensibilidade do outro se o outro está o tempo todo com aparência de pedra, de algo que aprendeu sem perceber, aprendeu a segurar aquela aparência de que não está mal, de que não está desesperado.

E é muito difícil aprender ou tentar reaprender a ter novamente uma linguagem corporal que consiga transmitir o que está acontecendo, sem que as pessoas nos desqualifiquem completamente em função disso. Porque foi exatamente isso que ocorreu em toda a minha vida: uma desqualificação dolorosa em função de ficar muito facilmente estampada na minha cara o meu desespero, a minha angústia, a minha tristeza.

Então para mim uma coisa é clara. O progresso em relação à igualdade de gêneros foi, em minha vida, uma coisa também muito boa. Viva o feminismo!

Ansiedade e provas

Já pude acompanhar muitos estudantes com ansiedade de desempenho. Em período de prova entram em crise e chegam até mim muitas vezes com diagnósticos que lhe foram imputados no passado: "Fui diagnosticada com TDAH", "Tenho depressão", "Fui diagnosticado transtorno de ansiedade generalizada"...

E também me relatam as mais variadas formas e tentativas de enfrentamento: homeopatia, coaching, pensamento positivo, meditação, controle da respiração, "porque eu acho que eu tenho que aprender a me controlar", "meu problema é minha falta de autocontrole", "porque eu preciso ser mais otimista", etc.

Como estão em época de prova, de avaliações, o principal sintoma, obviamente, é a ansiedade. A maioria dos métodos que as pessoas utilizam nessas situações são meramente paliativos. A melhor forma de tratar ansiedade de desempenho é ter um treinamento sólido, que se desenrola no tempo, e vai gradualmente fazendo com que a pessoa adquira mais autoconfiança em relação à habilidade que será testada.

Pouco serve meditar, controlar a respiração ou pensar positivo se o treinamento não foi bem feito. Quando um treinamento é muito bem feito, todas essas técnicas paliativas acabam se tornando desnecessárias. Porque, de tanto que treinou, ficou automático. Não há muito sobre o que pensar, e não há porque haver medo ou pensamentos negativos, por exemplo. A pessoa simplesmente vai lá e faz.

"Ele não consegue se concentrar porque tem depressão"

"Ele não consegue se concentrar porque tem depressão".

"Ela não tem paciência com os filhos porque tem transtorno de ansiedade generalizada."

Muitas pessoas simplesmente param de pensar a partir do momento em que têm o nome de um transtorno mental na mão, para responsabilizar esse transtorno por toda e qualquer coisa de errado que ocorre.

Problemas tais como concentração, irritabilidade e dificuldades de aprendizagem podem ter inúmeras e as mais variadas causas. Proferir o nome de algum transtorno mental, achando que isso resolve o problema, é ingenuidade.
Volta e meia vejo pessoas conversando sobre o que será o futuro para as próximas gerações, e dizendo que temem muito, em relação a seus filhos, pelo uso de drogas, questões referentes à sexualidade, gravidez na adolescência, DSTs ou relacionamentos abusivos. Outros se dizem bastante preocupados com o futuro das democracias e possíveis regimes totalitários. No meu caso minha principal preocupação é a questão ambiental. O restante para mim parece muito pequeno, ou somente consequência dos grandes desastres ambientais com quais teremos de lidar. Já em função das mudanças climáticas, as secas que acometeram a Síria tiveram um papel determinante no desenrolar de acontecimentos que culminaram em sua guerra civil, e em todo sofrimento e miséria que tomou conta daquele país. E agora sabemos que as mudanças climáticas estão ocorrendo em intensidade e velocidade maiores do que anteriormente fora previsto. Então é muito simples a dedução de que, se as coisas continuarem como estão, se não houver mudanças drásticas para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, teremos um futuro marcadamente determinado pelas alterações ambientais resultantes. O futuro de nossos filhos, as amizades que terão e todos os problemas que enfrentarão serão em boa medida determinados pela degradação ambiental que estamos produzindo hoje.

Ninguém nasce canalha

Ninguém nasce canalha e muitos, nessa vida, se degeneram quando já estão velhos. Fico observando as pessoas que hoje estão mergulhadas em guerras cegas, imundas e sanguinolentas pelo poder, e nunca deixo de me perguntar sobre quando se perderam nisso. Navegam em oceanos de mentiras, da batalha cega e incessante para se manter no topo, sobre as montanhas de cadáveres da verdade, da realidade, de qualquer grão de poeira que dê razão a seus inimigos, para de fato começarem a colecionar mortes reais que, para os canalhas, não têm peso algum sobre suas costas.
Há pessoas a pensar que irão resolver o problema do aquecimento global ligando o ar-condicionado. Ratinhos que apertam botões.

Tuesday, October 22, 2019

Mundo virtual e mundo não-virtual

É uma vida contrastante. Estar aqui nessa bolha, compartilhando o que é comum, é muito confortável. E de vez em quando, claro, aparece um ou outro revisor, alguém que se apresenta com o contraditório. Mas o espaço virtual permite ponderação, permite que respiremos fundo, que pensemos antes de nos pronunciarmos. E aí de repente eu acordo aqui das redes sociais, e me vejo em uma reunião de trabalho, tendo que enfrentar mentalidades extremamente mesquinhas e retrógradas, ou então mesmo ali, no convívio com meus vizinhos. E ontem, quando acabei perdendo a compostura, foi porque eu já estava um pouco cansado de me sentir rodeado de pessoas que ainda apoiam fascistas. Eu tenho me sentido sufocado pelas pessoas que ainda estão coadunando com as atrocidades que estão ocorrendo. No mundo real vivo com bastante frequência rodeado por apoiadores desse governo abominável. Às vezes é sufocante.

A realidade presa na bolha de sabão

No que se transformou a realidade, na era da pós-verdade? Também numa bolha. Numa frágil bolha, que alguns poucos tentam habitar. E ela dura isso: o tempo de uma bolha de sabão. Se despedaça diante da consistência do poder, que está mais, muito mais, nas mãos de pastores evangélicos do que no trabalho de pesquisadores ou divulgadores científicos, que quase ninguém sabe o que são, quem são. Somos somente bolhas que se desfazem, constantemente, aqui e ali. Para quem está no poder é somente bonitinho ou irritante. Pouco ou quase nada além disso.
Uma hora a tristeza vem e bate na porta, e regurgita o desespero de se perceber como um completo estranho no deserto da vida.

Saturday, October 19, 2019

A estética do filme Coringa

Coringa é um filme com cenas belíssimas, mas não porque se traduzem em beleza natural. Em vez disso trabalha com uma estética da feiura, do contraste e da dor.

Na expressão da feiura, o caos, a desordem, o desconjuntamento dançam no olho do furacão de uma música crescente e grandiosa, com imagens de câmera rodando e subindo para a onisciência, para mostrar que é possível garimpar beleza mesmo ali, no lixo, nos becos da existência.

Na representação de contrastes alguns quadros mostram a urbanização desenfreada, o entardecer poluído, que são quase fotografias em preto e branco, para machucar o olhar de quem assiste com a aridez de cidades descontroladas, estéreis e sem fim.

E a dor aparece em cada lance de escada que não termina, nos poucos segundos em que isso foi representado, repetidamente, por várias vezes, nos passos moucos, quase mancos, de alguém que está sendo cotidianamente massacrado pelo mundo desde o dia em que nasceu. Porém com alguns respiros insanos de fumaça de tabaco e psicotrópicos a lhe entupir as veias, para poder dançar ridícula e inebriadamente, em sonhos de amor, no final de mais um dia em que o universo desabou sobre sua cabeça.

Coringa versus Bolsonaro

Jogos ou filmes podem incentivar ou legitimar a violência? Há muitas pesquisas a respeito, e até hoje não se produziram evidências sólidas que sustentem esta associação. Então, via de regra, por enquanto, jogos ou filmes não funcionam como estimulantes para a violência.

Porque, convenhamos, matar pessoas, de modo precipitado, é algo que exige planejamento e treinamento. Exige um cultivo, uma cultura do que irá se realizar. Não é algo trivial. E a melhor forma de produzir uma cultura assim, voltada para isso, é o militarismo.

Então um presidente militarista, que faz sinal de arminha pra tudo, que diz com orgulho “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”, que tem torturadores como ídolos, que diz que a ditadura matou pouco, que para melhorar o Brasil teríamos de matar umas 30 mil pessoas, é muito mais incentivador ou legitimador de violência e de uma cultura da morte do que o filme do Coringa, tá bom?

Coringa é um filme perigoso?

Quando começo a pensar na situação específica de alguns de meus pacientes, confesso que fico um pouco apreensivo de que eles assistam ao filme. E, por sorte, acho que muitos deles, se vierem a assistir, irão falar do que viram e de como estão se sentindo. E isso é muito importante para que possamos intervir de modo a deixar claro que as consequências para crimes graves, para quem padece de transtornos mentais, no Brasil, são também bastante graves e muito sofridas.

Porque, na prática, existe prisão perpétua no Brasil. Ela ocorre quando alguém que é pobre, e comprovadamente padece de transtornos mentais, comete um crime de grande gravidade. Basicamente irá permanecer, para o resto de sua vida, na ala psiquiátrica de algum presídio. E se não for pobre, ficará também em regime de reclusão, por um bom tempo, em alguma clínica psiquiátrica particular, com doping forçado. Ou seja, sofrerá, durante muito tempo (possivelmente para o resto da vida), um controle químico severo, terá uma vida de zumbi, e terá sua vida em sociedade completamente arruinada, por mais que haja toda uma estrutura técnica e social avançada no setor de reabilitação psicossocial. Porque os casos de pessoas com transtornos mentais, que cometem crimes graves, talvez sejam os mais delicados e severos.

Já atendi muitos pacientes que me comunicaram desejos genocidas, de sair matando pessoas a esmo, ou de matar a própria família e se matar. Quando atendo a casos assim, nos quais existe esse tipo de desejo ou ameaça, faço o que posso para mostrar a gravidade das consequências, e do quanto de sofrimento que produzirão, para si e para diversas pessoas.

Porque é fundamental informar. Não basta somente ouvir, demonstrar empatia e acabar, no final das contas, sem querer, gratificando intenções e planos para cometer atrocidades. O manejo técnico, nessas e em várias situações clínicas, se dá nos detalhes. É fundamental ouvir a maioria das coisas que os pacientes dizem, mas não tudo o que dizem ou pretendem dizer. É necessário saber certinho se estamos entrando em detalhes desnecessários e talvez nefastos, perigosos. Se estamos, sem querer, adentrando um terreno no qual o paciente se regozija em narrar para nós os detalhes de seus desejos e de como cometerá suas atrocidades. Temos de ser companheiros sem sermos cúmplices.

E fico também preocupado com aqueles que não estão mais em um espaço terapêutico, em um espaço de terapia pela fala, e com pessoas que estão na iminência de uma crise psicótica, e possam se sentir inspiradas a cometer algum ato de violência grave depois de assistirem a um filme como Coringa.

Mas as fontes para inspiração são muitas. Não podemos conceder essa onipotência a esse filme. As pessoas também se inspiram, e muito, quando veem alguma notícia de atentados em massa, de alguém que entrou em algum lugar armado e matou diversas pessoas a esmo, e se matou, ou de pessoas que mataram suas famílias e se mataram. E sei que algumas pessoas ficam particularmente inspiradas pela possibilidade de depois serem classificadas como incapazes, como doentes. E por isso, reitero, que sempre deixo claro a meus pacientes que doença não é álibi.

Mas outro problema crucial também é o acesso facilitado a armas de fogo. O desastre, de modo geral, somente se completa se houver acesso facilitado a armas de fogo, como ficou também muito bem ilustrado pelo filme. Dificilmente alguém consegue cometer um crime grave, e de grandes proporções, se não houver acesso a armas de fogo. E neste aspecto os norte-americanos estão ainda muito mais suscetíveis do que nós brasileiros, simplesmente porque lá é muito mais fácil ter o porte de armas de fogo.

Coringa e a gênese da loucura (sem spoilers)

Se você ainda não assistiu ao filme Coringa, uma sugestão para intensificar a experiência de imersão: vá sozinho(a), e saia sozinho(a) da sala de cinema

É um filme para se assistir sozinho, porque constantemente cutuca, mexe, mobiliza toda e qualquer parte nossa que pode estar se sentindo ou já se sentiu sozinha nessa vida.

E se ao sair do cinema sozinho(a), caminhando por onde você tiver de caminhar, você não se sentir, pelo menos durante alguns minutos, como alguém completamente estranho ao mundo e às pessoas que nele habitam, talvez seja bom repensar um pouco sobre sua capacidade de se colocar no lugar de pessoas que estão em uma situação de completo estranhamento e rejeição em sua relação com os outros.

Ou então talvez seja eu que esteja sendo muito moralista e exigente para com a singularidade da experiência que cada pessoa terá ao ser exposta a esta obra de arte.

Esse filme é uma obra de arte, uma obra prima. Tem o poder de fazer com que muitas pessoas se sensibilizem para o drama de ser diferente, e o quanto que uma sociedade socioculturalmente pobre (intolerante) pode transformar pessoas diferentes em pessoas com transtornos mentais.

Sei que o filme não trata especificamente disso, mas quero retomar dois parágrafos que escrevi aqui no Facebook, em 2012, inspirados na interação que tive com muitos de meus pacientes psicóticos:

"Se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente socioculturalmente rico (tolerante), o mundo fará de você um artista.

Contudo, se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente socioculturalmente pobre, o mundo fará de você um esquizofrênico."

Porque muito antes das pessoas adoecerem seriamente, elas muitas vezes são somente pessoas que estão se expressando de um modo um pouco diferente do usual. É comum, principalmente profissionais de saúde mental, apontarem para o problema da intolerância, para o problema de como a sociedade lida com quem tem transtornos mentais, e que é importante lutarmos para que essas pessoas sejam mais inseridas e menos discriminadas.

Sim, é muito importante todo esse movimento de maior inclusão das pessoas com transtornos mentais nos espaços públicos, na comunidade, porque é justamente esse movimento que vai facilitar todo o processo de recuperação. A luta antimanicomial é uma luta contra a mentalidade manicomial, de que essas pessoas devem ser isoladas, afastadas do convívio social. E isso concretamente se expressa na existência de hospitais psiquiátricos (manicômios) que tradicionalmente sempre se situaram distantes, fora da comunidade.

Porém algo que passou a chamar muito a minha atenção, conforme fui mergulhando mais no cotidiano de pacientes pré-psicóticos, é em como muito provavelmente a intolerância às diferenças e às singularidades é algo importante na produção de transtornos mentais tais como as psicoses.

Somos produto do meio

É muito comum a afirmação de que somos produto, o resultado de nossas escolhas. Contudo, se uma pessoa é produto das escolhas dela, fica a questão: de onde provem essas escolhas? Por que ela escolhe x e não y? Quais são os determinantes das escolhas de alguém?

Responder que estas escolhas provém de dentro, que provém da própria pessoa, não explica nada, não é uma resposta racional. É somente uma resposta circular. Não é muito diferente de responder que tudo existe porque Deus criou, e se esquecer de que a racionalidade sempre pergunta assim: se Deus criou tudo, então quem criou Deus?

O mais racional é formular hipóteses (e que podem ser inúmeras) sobre os motivos de alguém escolher x e não y. Não fazer isso, afirmando que a escolha brota da própria pessoa, de dentro dela, é se negar a trilhar caminhos para conhecer melhor quem essa pessoa é, e como, se for o caso, pode ser ajudada para poder futuramente fazer melhores escolhas.

Coringa como produto do meio

Uma das leituras possíveis para o filme Coringa diz respeito à noção de causalidade, de determinação do que somos. E uma coisa para mim é clara, e pode ser muito bem ilustrada por esse filme: somos sempre produto do meio, porque não há como ser produto de si mesmo. E por meio entenda-se inclusive as condições biológicas que atuaram para produzir o que somos. A concepção de self-made man é, acima de tudo, anticientífica.

Existem pessoas boas no mundo

Conheci jovens e adolescentes, principalmente em minha prática clínica, desiludidos com o caráter das pessoas, com o amor. E a maioria desses jovens é composta por celibatários involuntários (incels), geralmente homens que pensam, por exemplo, que "as mulheres não estão interessadas em homens honestos, de caráter, que sejam cidadãos de bem". Pensam que "mulher gosta é de bandido, de dinheiro".

E isso acaba sempre fazendo com que eu me lembre de quando entrei na USP, em 1991. Antes de entrar na USP eu tinha meu círculo de amizades e paqueras, e muitas vezes eu tinha o sentimento de que os caras com grana sempre estavam em vantagem.

Eu não chegava o ponto de pensar que mulher gosta de dinheiro ou que não havia qualquer espaço para mim no mundo. Eu não chegava a esse ponto, mas eu não sabia que era possível existir no mundo espaços e contextos onde claramente o caráter valesse mais do que o dinheiro.

E quando entrei na USP, para a minha surpresa, não era assim que funcionavam as coisas. Pelo menos ali, naquele contexto de centro acadêmico de Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto (a Filô), não era esse o padrão. Era outro, completamente diferente. Quando cheguei à USP, senti que havia chegado a um universo muito diferente. Meu círculo de convívio na USP era composto por pessoas que valorizavam, acima de tudo, capacidade de reflexão e caráter.

Os colegas que tinham mais respeito e moral entre nós eram aqueles que demonstravam ser mais desapegados de bens e dinheiro, os mais altruístas, os que tinham uma maior capacidade de reflexão e compreensão da realidade que os circundava e aqueles que demonstravam ter mais autenticidade e criatividade.

Naquele contexto ter um carro ou se vestir com roupas caras era algo que ficava completamente em segundo plano, era algo que era concebido literalmente como desprezível.

Então, de certo modo, ter entrado na USP foi para mim como ter entrado no paraíso, como ter chegado em algum lugar onde eu de fato poderia expandir ao máximo várias de minhas potencialidades como ser humano. Era o espaço privilegiado para que eu vivenciasse e treinasse ao máximo as minhas habilidades referentes aos traços que enumerei acima.

Era de fato um lugar extremamente propício para que eu me transformasse em uma pessoa melhor, em vários sentidos. Nos meios em que eu convivi havia constantemente uma preocupação com uma existência ética. E uma existência ética é algo completamente diferente de uma existência que somente segue as regras de uma moral dominante. Viver eticamente não é somente fazer o que parece ser bom. Viver eticamente é viver constantemente refletindo sobre o bem e o mal, sobre quais são os caminhos, nos mais variados contextos, que de fato vão produzir mais ou menos benefícios e malefícios.

E aí, há poucos dias, quando interagi com um jovem que se queixava do mundo, de que "as mulheres só gostam de bandido", onde "os jovens de hoje não valorizam o caráter", fiquei pensando em como o universo dessa pessoa estava restrito, em como ele não tem ideia de que existem sim nesse mundo muitas pessoas boas.

Fiquei pensando que esse jovem precisa ser acolhido, aceito e tolerado, com todas as intolerâncias que ele já apresenta, como sintomas reativos a um mundo do qual ele não está conseguindo obter amor. Ele, como muitos outros jovens celibatários involuntários, não conseguiu compreender que nem sempre as pessoas são tão ruins assim, que é sim possível um outro mundo, com muito mais amor do que esse mundo ridículo no qual eles estão isolados e presos.

Colegas médicos, atenção...

Há algumas coisas que me deixam bem irritado. Quero falar de quando pacientes chegam ao CAPS, já vindos de alguma Unidade Básica de Saúde.

Muitos, que estão com insônia pela primeira vez na vida, já chegam com prescrições de medicamentos tarja preta (benzodiazepínicos), para uso contínuo. Contudo o médico poderia antes ter tentado várias outras opções menos deletérias, que fazem todo sentido para primeira linha de tratamento para insônia. Somente para citar alguns exemplos, poderia ter tentado antes prescrever algum antialérgico, relaxante muscular ou algum antiemético.

Outra coisa que também me tira um pouco do sério é ver paciente, que nunca tomou medicação psicotrópica na vida, já chegar ao CAPS com prescrição off-label e para uso contínuo.

E para quem não entendeu o termo aí, em inglês, ele se refere a prescrições não aprovadas. Ou seja: o paciente chega ao CAPS, relatando que estava com problemas de constipação ou diarreia, por exemplo, com prescrição de antidepressivo e benzodiazepínico em uso contínuo. E, veja bem, benzodiazepínico se usado continuamente por mais de 20 dias já é suficiente para que a pessoa se transforme em um dependente químico dessa substância.

Certa vez, me lembro claramente, uma senhora chegou o CAPS, e já estava tomando um benzodiazepínico e um antidepressivo, em uso contínuo, há 6 meses, para tratar constipação. E o médico nem mesmo havia tentado prescrever psyllium (Metamucil). Essa senhora nem mesmo sabia o que era o Metamucil.

E reitero o que já escrevi em postagens anteriores: não existe medicação psiquiátrica que cure. Nenhuma das medicações psiquiátricas existentes trabalha segundo parâmetros etiológicos. Para praticamente todo o restante das especialidades médicas trabalhar sem perspectiva etiológica é algo temerário.

Porque não faz o menor sentido ficar indefinidamente prescrevendo medicações que somente atuam sobre os sintomas. É sempre necessário tentar compreender quais são os agentes causadores desses sintomas. Imagine, por exemplo, que alguém esteja gripado, e o médico lhe prescreva repetida e indefinidamente paracetamol.

Agora imagine que o uso não aprovado (off-label) é pior ainda. Porque ocorre a prescrição para sintomas para os quais não há qualquer tipo de evidência consolidada de que esses medicamentos sejam eficazes.

Saturday, September 28, 2019

Epidemia de transtornos mentais

A partir de 1990 houve um crescimento exponencial das taxas de transtornos mentais nos países industrializados.

Tenho estado mais sensível a essa questão depois da leitura de três livros (que estão citados no final desse texto), sendo que dois deles foram publicados pela Fiocruz, e um deles, que não foi publicado pela Fiocruz, é um livro de um autor que é uma referência muito forte no cenário científico mundial.

Estes três livros focam na questão do papel da indústria farmacêutica e da medicalização, implicados no aumento dos transtornos mentais. Apesar de bilhões de dólares terem sido investidos na criação, testagem e produção de diversos medicamentos psicotrópicos, os transtornos mentais somente tiveram seu número aumentado de forma assustadora.

Esses autores associam a epidemia de transtornos mentais aos efeitos dessas novas medicações, que agora são consumidas em nível alarmante. E infelizmente, em muitos casos, às vezes sinto que o trabalho psicossocial, o trabalho que eu e muitos outros profissionais do CAPS realizamos, fica muito enfraquecido diante da monstruosidade da medicalização.

E até agora o que eu pude depreender em relação às evidências científicas trazidas por essas três referências, por esses três livros, é a de que as medicações psiquiátricas deveriam ser prescritas por no máximo seis semanas. Segundo esses dados não se sustenta a alegação de que os pacientes psiquiátricos têm de tomar medicação para o resto da vida.

E boa parte dessas evidências provém de estudos longitudinais, com grupos controle formados por pacientes que não fazem uso de medicação psiquiátrica, mesmo quando estamos falando de psicoses. Há inclusive reiteradas referências à estratégia do "Diálogo Aberto", na Finlândia, que vem ocorrendo nos últimos 30 anos, e demonstrando que é possível a diminuição da medicalização. Nas instituições de saúde que adotaram essa estratégia, no país citado, somente 1/3 dos pacientes psicóticos são medicados, enquanto que no Brasil isso deve se dar por volta de praticamente 100% dos pacientes.

Obviamente que não se trata apenas de excesso de medicamentos no tratamento de pacientes com transtornos mentais produzindo mais transtornos mentais. O termo medicalização se refere à concepção de que os transtornos mentais são somente de ordem biomédica.

O caso, porém, é que os transtornos mentais não são somente um problema biológico e médico. Quando os investimentos se concentram na perspectiva de que esses pacientes irão melhorar somente com idas esporádicas a um consultório médico e com medicamentos há toda uma deturpação da natureza multifacetada do problema.

Os transtornos mentais são fruto também, por exemplo, de planejamento urbano. Cidades com prioridade para carros, com poucos espaços para que as pessoas caminhem e se encontrem, com poucas áreas verdes, centros comunitários e de lazer facilitam enormemente o surgimento de transtornos mentais.

Às vezes em um CAPS é necessário muita paciência e um esforço muito grande para mostrar aos pacientes que a cura não está nas medicações, e que absolutamente nenhuma medicação psiquiátrica cura. As medicações psiquiátricas servem, no máximo, para que o paciente possa tolerar um pouco mais os sintomas de uma crise ou que uma crise possa talvez ser cortada. E, como qualquer medicação, possuem efeitos colaterais. Ou seja: não faz sentido pensar que devem se transformar em primeira linha de tratamento para transtornos mentais.

As medicações psiquiátricas servem para aliviar sintomas. Os determinantes dos transtornos mentais não são combatidos por essas medicações. Os determinantes estão na infinidade de estímulos com os quais o mundo nos bombardeia. Esses estímulos podem estar no ar que respiramos, na água que ingerimos, nas pessoas com as quais interagimos, na qualidade na quantidade de horas de sono, na luz solar (o quanto ela nos estimula e o quanto fazemos uso disso ou não), em nossa dieta (que precisa ser a mais variada possível, com o menos possível de açúcar), no sedentarismo, nos agrotóxicos (que podem estar contaminando nosso alimento e nossa água), na quantidade de alimentos processados que ingerimos, etc.

Ou seja: há uma infinidade de estímulos que nos afetam. E aí é que estão os determinantes dos transtornos mentais, do que somos. A medicalização atrapalha essa compreensão, porque concentra esses determinantes na concepção de que tudo isso é um problema médico, que poderia ser resolvido com medicamentos, que os transtornos mentais são como quaisquer outras doenças, que possam ter nos acometido sem qualquer participação nossa.

* Os três livros aos quais me referi acima são: "Medicamentos mortais e crime organizado", de Peter Gotzsche; "Medicalização em psiquiatria", de Fernando Freitas Paulo Amarante; e "Anatomia de uma epidemia", de Robert Whitaker.

Pacientes abusivos

É comum que pacientes com comportamentos abusivos e violentos, principalmente com filhos e familiares, muitas vezes se justifiquem, dizendo assim: "eu sou doente".

Creio então que seja importante não nos fiarmos numa distinção rígida entre pessoas doentes e pessoas saudáveis.

O psicólogo lida o tempo todo com pessoas, com as quais sente que na maioria das vezes é capaz de dialogar e realizar alguns acordos. É muito importante entender os limites de cada uma das pessoas em um determinado grupo, e saber como fazer alguns acordos que respeitem esses limites na medida do possível.

E é sempre também importante deixar claro que ninguém está acima da lei, da ética e dos outros. Quando alguém tenta justificar comportamentos abusivos e violentos com seu transtorno mental, e isso é aceito de forma passiva pelos outros, há uma possibilidade grande de que seus sintomas se intensifiquem.

Porque o problema não pode simplesmente se transformar em "tenho transtorno mental, logo posso fazer o que me der na telha, e todos terão de compreender e aceitar passivamente". Porque transtorno mental não é passe-livre para comportamento abusivo e violento.

Faz parte da maturidade a responsabilidade. As pessoas, independentemente de ter transtornos mentais ou não, têm de entender que elas são minimamente responsáveis pelo que fazem. Permitir que alguém não responda por nada é estimular mais transtorno mental. E uma vida sem qualquer tipo de responsabilidade é enlouquecedora.

Então deixo claro para meus pacientes que seus comportamentos possuem consequências morais, afetivas e legais. Um comportamento não deixa de ser eticamente errado ou maléfico a outras pessoas, porque foi cometido por alguém que está doente. Um homicídio é sempre um homicídio, e isso tem consequências legais, mesmo para pacientes com transtornos mentais. Tento sempre deixar claro que as consequências sempre existem, e que medidas de contenção ou de reclusão muitas vezes serão tomadas.

E é também importante saber que as pessoas se machucam com as coisas que falamos e fazemos, e que o amor não é infalível. Acreditar que podemos fazer qualquer coisa que nos dá na telha, e que o outro continuará sempre nos amando, apesar de tudo, de todas as merdas que fizermos, é algo que não diz respeito ao desenvolvimento da maturidade e de uma relação sólida e saudável com as pessoas. Isso não é o caminho para a saúde. É o contrário. Não é assim que se produz uma pessoa mentalmente sã. Não é assim que se gera saúde mental.

O caminho são as relações menos violentas e mais tolerantes e amistosas possíveis. Mas obrigações, cuidado, responsabilidade e compromisso com os outros são também fundamentais.

Trechos interessantes e talvez polêmicos do livro “Medicalização em Psiquiatria”, de Fernando Freitas e Paulo Amarante (Editora Fiocruz, 2015)

“Em 1996, o neurocientista Steven Hyman, que foi diretor do National Institute of Mental Health (NTMH) de 1996 até 2001, publicou um artigo no American Journal of Psychiatry (Hyman, 1996) que sintetiza tudo o que ele havia aprendido a respeito das drogas psiquiátricas. Os “antipsicóticos”, os antidepressivos e as demais drogas psiquiátricas funcionam criando perturbações nas funções dos neurotransmissores. A pessoa submetida à medicação psiquiátrica passa a ter o seu cérebro funcionando anormalmente.”
(...)

“De forma esquemática, os principais componentes do paradigma da ação dos “antipsicóticos” são:

- as medicações psicotrópicas “criam perturbações nas funções dos neurotransmissores”;

- em resposta, o cérebro promove séries de adaptações compensatórias a fim “de manter o seu equilíbrio frente às alterações no ambiente ou mudanças no meio interno”;

- a “administração crônica” das drogas então causa “alterações substanciais a longo prazo na função neural”;

- após algumas semanas, o cérebro passa a funcionar de maneira que é “qualitativa assim como quantitativamente diferente do estado normal” (Hyman, 1996: 151-161).

Há evidências científicas de que os resultados laboratoriais e clínicos são bastante distintos, tomando como referência o uso de “antipsicóticos” a curto e longo prazos.

Evidências laboratoriais:

- a curto prazo (em média, seis semanas), as drogas reduzem os sintomas-alvo de um transtorno melhor do que placebos;

- o que nos leva a considerar que, se um sujeito em surto psicótico apresenta melhoras quando faz uso de medicação antipsicótica, ele deve continuar a ser tratado com aquilo que lhe fez bem;

- o que parece ser confirmado: a longo prazo, existem evidências clínicas e laboratoriais de que quem deixa de tomar as drogas têm recaída em níveis mais elevados que aqueles que mantêm o uso.”
(...)

“Nessas pesquisas não se comparam indivíduos psicóticos que passaram a fazer uso de “antipsicóticos” com o grupo de indivíduos cujo curso natural do seu transtorno foi acompanhado sem uso de “antipsicóticos”. Eis aí uma diferença de metodologia de pesquisa que costuma ser negligenciada grosseiramente! Pela lógica da própria ciência esse problema metodológico deve suscitar questões importantes. Nesse caso, o risco sublinhado de recaída pode ser consequência justamente da alteração que o cérebro sofreu por causa da exposição à própria droga supostamente terapêutica.”
(...)

“Para tentar responder essas questões, é preciso antes de tudo conhecer as formas como esses casos eram conduzidos na época em que não existiam os “antipsicóticos”, para constrastar com a hipótese, hoje dominante, de serem eles a única maneira possível de lidar com a esquizofrenia. Diante disso, começaram a ser feitas investigações que acompanhavam o paciente por um longo período (estudos conhecidos como follow-up), comparando-se os que eram tratados com medição antipsicótica com os que não eram. Ao investigar as formas de tratamento que havia antes dos “antipsicóticos”, constatou-se que pacientes tratados com métodos psicossociais, mesmo nos casos de internação, tinham melhor recuperação, como veremos adiante.”
(...)

“Para avaliar a eficácia dos “antipsicóticos”, em 1967, portanto quase uma década após a administração da clorpromazina, foi realizado o primeiro estudo de follow-up, feito pelo próprio NIMH, que tinha como foco a avaliação da ação da droga a curto prazo em psicoses esquizofrênicas agudas. A pesquisa, que acompanhou um grupo de 299 pacientes psiquiátricos com alta (após serem tratados com “antipsicóticos”), avaliou o ajustamento do paciente na comunidade, os vários aspectos da história pré-mórbida e o seu ajuste comunitário subsequente. Resultados: os pacientes que haviam recebido tratamento placebo no estudo da droga tinham menos probabilidade de serem reospitalizados do que aqueles que haviam recebido um dos três “antipsicóticos” prescritos (Schooler, 1967)”
(...)

“Com relação ao tratamento com drogas, um gigantesco impasse começa a aparecer no cenário da assistência psiquiátrica. Por um lado, as boas razões: o tratamento psicofarmacológico de pacientes esquizofrênicos demonstrava ser uma política eficaz para a redução imediata de sintomas psicóticos, para aliviar a angústia dos pacientes, permitir a desospitalização e a sua permanência na comunidade; tal tratamento dava uma base racional e efetiva com a qual o médico tinha a impressão de poder induzir as mudanças desejadas em seu paciente no contexto do modelo médico. Por outro lado, eram muitos os problemas criados pela própria terapêutica psicofarmacológica. Frequentemente se passou a reconhecer o aparecimento de efeitos colaterais nocivos do tratamento dos esquizofrênicos com neurolépticos, como alterações anatômicas desagradáveis, estranhas alergias e discinesias tardias.

Entretanto, com o tempo passando, após a euforia inicial motivada pelos resultados imediatos da medicação, passou-se a verificar também a relação entre o tratamento medicamentoso e a indução ou reforço dos chamados sintomas negativos (por exemplo: isolamento social, depressão pós-psicótica e síndromes de perda motivacional). À atenção se volta, então, para os possíveis efeitos do uso das drogas a longo prazo sobre a modulação afetiva, a comunicação, a percepção ou outras funções do sistema nervoso central, assim como para os efeitos colaterais secundários, como o impacto no desenvolvimento de uma criança nos casos em que a sua mãe está sendo submetida a uma medicação pesada por um longo período.

O que acontece quando pacientes na fase aguda da esquizofrenia não são tratados com neurolépticos? Tomemos como referência para a nossa análise uma investigação realizada com pacientes em fase de crise psicótica, com ênfase no tratamento psicossocial e forte limitação do emprego de drogas (Carpenter ef al, 1977). Essa pesquisa examinou o rumo da esquizofrenia aguda de 49 pacientes do programa do NIMH que estavam em tratamento de natureza psicossocial preferencialmente sem uso de qualquer neuroléptico, comparando-o com os rumos tomados por 73 pacientes de outro grupo que receberam tratamento usual. Foi feito um estudo de follow-up de um ano para os pacientes do programa do NIMH e de dois anos para os pacientes do tratamento convencional.

Os resultados mostraram que o grupo de pacientes tratados pelo programa experimental do NIMH teve uma melhora de sua saúde superior ao grupo de pacientes tratados com terapêuticas de base medicamentosa. Em outras palavras, como os próprios autores afirmam, não apenas é possível que a crise psicótica seja tratada com abordagem psicossocial sem medicação, mas os resultados a longo prazo são superiores aos obtidos com pacientes que durante a sua crise foram tratados com neurolépticos. Concluindo: “De forma bastante inesperada, esses dados sugerem que as drogas psicotrópicas podem não ser indispensáveis. O seu uso estendido na atenção extra-hospitalar pode prolongar a dependência social de muitos pacientes com alta” (Carpenter et al, 1997: 801).

Outra investigação merece a nossa atenção. Será que existem esquizofrênicos para os quais as drogas sejam desnecessárias ou contraindicadas? Esse é o principal questionamento norteador da investigação de Rappaport e colaboradores (1978), que iremos detalhar a seguir.

Os resultados dessa pesquisa foram divididos em quatro grupos de acordo com medicação prescrita aleatoriamente, e os pacientes foram separados segundo os momentos em que foram observados, durante a hospitalização ou por três anos após a alta. Os pacientes do grupo que durante a hospitalização haviam recebido placebo e que durante os três anos não foram tratados com medicação antipsicótica tiveram resultados significativamente melhores que os demais. Trata-se de um grupo que apresentou a mais elevada melhora clínica e menos patologia durante o follow-up, pacientes com menos reospitalização e menos dificuldades na reinserção e reintegração social, se comparado a outros grupos.

Um follow-up de vinte anos:

Harrow e Thomas (2013) levaram a cabo um estudo de follow-up durante vinte anos, com características absolutamente inovadoras na literatura científica até então. Duas questões orientaram esse estudo: será que todos os pacientes com esquizofrenia necessitam de tratamento contínuo com “antipsicóticos” ao longo das suas vidas? O uso por longo tempo de “antipsicóticos” para pacientes com esquizofrenia reduz ou elimina os sintomas psicóticos?

A grande diferença desse estudo de follow-up para os inúmeros outros já feitos é que ele acompanhou durante vinte anos três subgrupos de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos (seguindo rigorosamente os mesmos critérios): um subgrupo de pacientes esquizofrênicos que fizeram uso contínuo de “antipsicóticos”, o outro de pessoas que fizeram uso intermitente de “antipsicóticos”, e finalmente o terceiro subgrupo formando por sujeitos diagnosticados como esquizofrênicos que nunca fizeram uso de “antipsicóticos”. A idade média dos pacientes quando receberam o diagnóstico de esquizofrenia era de 23 anos. Às variáveis investigadas foram rigorosamente as mesmas durante o estudo de acompanhamento, quer dizer, no 2º, 4,5º, 7,5º, 10º, 15º e 20º anos.

O resultado desse estudo é surpreendente: ao longo dos vinte anos, o subgrupo de pacientes que não tomaram “antipsicóticos “ou outras medicações psiquiátricas apresentou resultados de recuperação significativamente melhores que aqueles que tomaram “antipsicóticos” com ou sem outras drogas psiquiátricas. Para sermos mais precisos: no 4,5º ano, 86% dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ou outras drogas psiquiátricas apresentaram atividade psicótica, ao passo que apenas 23% dos sem medicação a apresentaram, no 10º ano, 79%versus 8%; no 15º ano, 71%versus 8%; e, finalmente, no 20º ano, 68%versus 8%.

Em termos de reospitalização, a diferença é igualmente enorme: no 4,5º ano, 54%dos que estavam tomando “antipsicóticos” e/ ou outras drogas psiquiátricas voltaram para o hospital, contra 13% dos que não tomaram qualquer medicação; no 10º ano, 57% daqueles com medicação versus 0% dos que não tomaram qualquer medicação psiquiátrica; no 15º ano, 43%contra 0%; e, finalmente, no estudo feito no 20º ano, 50%versus 18%.”

Referências:

CARPENTER, W. T. e& al. The treatment of acute schizophrenia without drugs. American Journal of Psychiatry, 134: 14-20, 1977.

HARROW, M. & THOMAS H. J. Does long-term treatment of schizophrenia with antipsychotic medications facilitate tecovery? Schizophrenia Bulletin, 39(5): 962-965, 2013.

HYMAN,S. Initiation and Adaptation: A paradigm for understanding psychotropic drug action. The American Journal of Psychiatry, 153: 151-161, 1996,

RAPPAPORT, M. et al. Are there shizophrenics for whom drugs may be unnecessary or contraindicated? International Pharmacopsychiatry, 13: 100-111, 1978.

SCHOOLER, C. One year after discharge. The American Journal of Psychiatry, 123: 986-995, 1967.

Comportamento de manada

Boa parte das pessoas, e muitas vezes a maioria delas, se comporta como idiotas, irracionais, simplesmente porque querem continuar fazendo parte de um determinado grupo. Não é o desejo pela verdade que, de modo predominante, governa o comportamento humano. É o desejo de ser aceito e amado. Se isso foi fundamental para nossa sobrevivência há alguns milhares de anos, está se mostrando agora como um dos principais fatores que poderão implicar em nossa extinção.