Sunday, May 16, 2010

Felicidade: o papel da autoavaliação

A felicidade é um tema muito interessante e fecundo. Trata-se do bem supremo? Ou seja, possui mais valor e está acima de tudo o mais? Há algo mais importante do que ela? Segundo Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” (citado por Comte-Sponville, 2001, p. 01). Ou seja, na concepção pascalina, para a realidade humana, é o motivo de tudo, só isso. Há, entretanto, diversas possibilidades de abordagem do tema, a começar pelo conceito, pelas várias definições e usos possíveis do termo felicidade.

O que é a felicidade? Começo pela definição que cunhei há alguns anos, pois ela incide diretamente sobre a questão da autoavaliação. É um balanço geral do espírito com saldo positivo. Após toda ponderação e avaliação possível, poderia se considerar feliz aquele que percebesse em si mais alegria do que sofrimento ou tristeza. Esta é um concepção que atrela a felicidade ao julgamento. Se julgo, se avalio que tenho mais momentos de alegria e prazer do que sofrimento e tristeza, logo me julgo feliz. Ou seja, a felicidade depende da avaliação que o próprio sujeito faz de todo o seu estado de espírito.

Em “O mal-estar na civilização” (1930), Freud, logo de início, suspeita do conceito. Percebe aí um grau muito elevado da subjetividade de quem está se avaliando. Se a felicidade é resultado de uma autoavalição, logo depende mais de como as pessoas julgam sua vida, ou de como se referem a ela.

Em termos comportamentais, alguém pode falar que sua vida está boa ou ruim em função do que obtém ou já obteve na vida com este tipo de comportamento. Já pude observar que em contextos religiosos, por exemplo, é muito comum os fiéis dizerem que estão muito felizes. Há, de modo geral, pressão para isso em contextos religiosos. Já em outros contextos dizer que não se está feliz, que não se está bem, pode ser mais valorizado do que o contrário. Exemplo: o sujeito sempre diz que está infeliz, que nada está bem, pois isso resulta em mais atenção e cuidados de seus próximos. No primeiro caso, depois de um tempo, o sujeito pode se dar conta de que era infeliz e não sabia. No segundo caso, de que era feliz e não sabia. Uma coisa é o que se diz e outra é o que se sente.

E o dizer, por sua vez, classifica e ordena o sentir. Dizer que se está bem ou mal pode interferir na percepção do que se sente, do que se vive. Como dizemos se estamos ou não bem? Como entendemos o que estamos sentindo e, no final, avaliamos, damos uma nota? É possível falar de felicidade em sentido objetivo?

Em termos comportamentais a coisa parece ficar mais clara e melhor discriminada. Se a vida do sujeito está muito pobre em reforçadores positivos, se há inibição de repertório comportamental e se predominam fuga e esquiva, eis a infelicidade. Se mais agimos em função do dever do que do querer (do prazer de fazer); se não temos ânimo para nada, se a vida se mostra como um grande sacrifício; se o medo impera e nossa ação é sempre impulsionada para evitar o pior: eis a infelicidade.

O que é um bicho infeliz? É um bicho encolhido num canto, sozinho e com medo, muito medo. Digo também sozinho, para enfatizar o bordão: “é impossível ser feliz sozinho”. Na canção de Tom Jobim o sentido mais comum da expressão refere-se a não permanecer sozinho e viver a felicidade no amor. E as pessoas, de modo geral, só compreendem esta felicidade no amor a dois, no amor de cunho erótico. Quero, porém, ressaltar um outro ponto: o da ética. Penso que é impossível ser feliz sozinho no sentido de que se o egoísmo for onipotente e vencer, isso resulta na própria solidão enlouquecedora do poder absoluto. E é neste ponto que a felicidade tem de fazer alguma concessão ao amor. Neste sentido ela não pode ser considerada como bem supremo, pois o amor vem antes. E que espécie de amor vem antes? Aquele que compartilha, o amor da amizade. E assim, amor e felicidade são conceitos que podem ser casados de algum modo. Mas isto foge um pouco ao tema do presente texto.

Voltemos à questão da felicidade enquanto fenômeno objetivo ou subjetivo. É possível então falar em felicidade como algo objetivo, do qual de fato se vive? Penso que sim. Há, como mencionei, fatores concretos ligados à felicidade e pode ser que o sujeito que se diz feliz, talvez não o seja e vice-versa.

Referências

COMTE-SPONVILLE, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI.