Wednesday, April 19, 2006

Aprendendo na porrada

Nesta vida, aprendi muita coisa na porrada. E dizem (os behavioristas) que o controle aversivo produz uma faixa muito restrita de comportamentos. O animal, com medo, aprende muito pouco, somente a esquivar-se da punição. Não fica livre para explorar outras formas de ação.

Porém, muita coisa foi sofrida. Inclusive a poesia. Comecei a escrever poesia, de verdade, velho, aos 21 anos. Mas para começar foi um sofrimento. Era uma oficina de poesia. Um curso de poesia ministrado na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Era gratuito, mas tinha seleção. Na qual passei, pois a concorrência era bem pequena ou nem tinha. Havia seleção para haver um critério. Enfim, acho que todo mundo que quis fazer o curso, o fez. Até ali eu escrevia algumas coisas. Costumava mostrar para uma amiga, leitora de Fernando Pessoa. Ela fazia uma cara horrível e, com um esforço grande de paciência, ponderava nas palavras: “É, Adriano, precisa melhorar aqui, ali...”, para não dizer que estava uma bosta, que eu deveria jogar aquilo no lixo. E era mesmo uma bosta. Eu escrevia assim: “o vento em meus cabelos/ na montanha voa o gavião e meu pensamento/ sigo voando/ sou leve/ sou vento...”. Um desfile de clichês, de frases vazias, banais e bobas. Não sabia e nem tinha coragem de brincar com as palavras. Não sabia que isso era permitido, que esse era o jogo.

Primeiro dia da oficinaArder a palavra em emoção”. O professor: um negro, velho, grande, barba branca, voz grave, rouca, imponente, resoluto. Dava aula e bebericava algo num copo de plástico. Esperei o intervalo e conferi, cheirando o copo: uísque. Pensei: “gostei desse cara”. Bebericava, declamava o que todos escreviam, solene, mesmo que fosse a maior besteira do mundo. E depois descia o cacete: “Isso não é poesia, sejamos sinceros. Escrevi muita merda até meus 19 anos. E botei fogo em toda merda que havia escrito até então”. estava avisando: botarei fogo na merda de vocês também.

Porém penso o seguinte, se você ainda não tem coisa melhor pra botar no lugar, jamais irá se livrar da merda. É igual dentadura. A velha não serve e a nova machuca. Devemos fazer como o Dr. Lélio, dentista, amigo de meu pai? O paciente tinha a nova mas não a utilizava e ficava com aquela horrenda e putrefata velharia na boca: “É que a nova machuca, Dr. Lélio”. “Não, vamos fazer um teste”, dizia Dr. Lélio. “Ponha a nova na boca, e deixa eu ver como fica”. Enquanto o paciente colocava a nova, Dr. Lélio, escondido, pegou a velha e a arrebentou com uma pedra, sem nenhuma. O paciente chorava copiosamente, pegando os pedacinhos de sua amada e finada dentadura velha. Era isso o que o negrão fazia com nossapoesia”, sem piedade.

E eu dei um pouco de azar. Não em relação a ele. Quem me rejeitou foram alguns alunos que cultivavam uma certa mistura de poesia com religião. O professor dava a palavra a todos. Lia a poesia e perguntava a cada um: “diga sua opinião”. “Não gostei, achei que não tem nada a ver ele ser tão pessimista, e tratar tudo de forma tão negativa”, disse um rapaz notoriamente religioso (parecia um missionário). Lembro-me bem, um verso em especial havia incomodado profundamente os religiosos e otimistas de plantão: “e eu estou aprendendo a rastejar”. E talvez, mesmo pesado e sombrio, fosse o único que contivesse alguma poesia no meio do monte de banalidades que eu escrevera. Fui um rebuliço. Polêmica total. Uns me defenderam, outros atacaram ferozmente, inclusive um médico, do alto da sua autoridade de pajé ancestral: “Não tem dessa não, se for uma bosta, diremos que é uma bosta. Seremos sinceros.” Saí moído, transtornado, mas sem deixar transparecer. Foi muita porrada.

Na aula seguinte, o professor salientava: “Mas que confusão você arranjou aqui, hein, Adriano”. O que me deixava mais tenso. Sentia-me massacrado, linchado. Pois para mim era claro: poesia é forma e não conteúdo. Posso falar do cocô da mosca, mas tenho de falar bonito. Posso ser pessimista, otimista, o que seja. Não importa o tema, o conteúdo. O mais importa não é “o quê”, mas o “como” se diz. E o grupo a me agredir, insistia que eu estava equivocado. Para eles era necessário transmitir um sentimento bom, benéfico, o qual servisse de lenitivo para os ouvidos cansados da humanidade. Para eles a poesia deveria estar mais próxima da oração do que do desabafo. Prefiro a seguinte máxima: “quem faz poesia tentando dizer alguma coisa, acaba não dizendo nada”. Ou Paul Valéry: a poesia é uma “hesitação entre som e sentido”. E muitas vezes, mas obviamente nem sempre, serve sim o conhecido versinho: “dor é motor”.

Dali em diante, li muita poesia, muita mesmo. Debruçava-me horas e horas, ou dias e dias, somente para escrever alguns poucos versos. O mestre negro da voz solene e retumbante dizia: “reescreva, reescreva e reescreva, sempre...”. E ele ficava cortando daqui e dali. Retalhava nossos escritos. Desconstruia, fazia a versão dele. E geralmente nos convencia da merda que estávamos a escrever. “Arder a palavra em emoção”. Ardíamos de raiva, de dor: “quem é esse cara pra dizer que sou um merda?”.

Esse sofrimento todo fez eu me lançar na frente. Dali em diante, li muita poesia. E várias vezes as mesmas poesias, os mesmos livros. Ficava degustando, digerindo, elaborando cada verso. Isso foi em 1994. Minhas primeiras poesias pós-oficina eram sombrias, e muitas vezes fortes, violentas, senão um pouco herméticas. Para tanto transcrevo alguns versos esparsos: “escrevo a véspera do vômito” (falo sim da dor, por que não?); “Nesse choro que tusso”; “Zangão anseio sugar seus lírios mamilos”; “Espirra vermelho à orquestra dos gritos o som oco de cabeça no chão” (quando presenciei uma abominável briga de rua, um espancamento covarde); “Grita longínquo o escorrer das lágrimas de um beduíno no ponto final do deserto”; “Canta melancólico o terror parado do ar” (uma imagem que me toca, com trilha grandiosa do Vangelis, se possível).

Depois eu descobri mais um monte de modos de se escrever e me expressar. E assim adquiri muito mais coragem para escrever qualquer tipo de coisa. A poesia me tirou o medo de escrever. Perdi o medo e aprendi a concentrar o que expressaria. E tudo ficava muito denso, ainda meio hermético, porém sempre temperado com beleza. Deste modo criei coragem pra fazer um mestrado a respeito disso. Como sou Psicólogo, o título ficou assim: “O poético e a clínica: da verdade à ambigüidade”.

E minha defesa de dissertação, com toda a solenidade do ritual, começava comigo declamando isso, assim, do nada: “Se um homem conseguisse escrever o que sente, perderia a faculdade de pensar. É para não dizer o que sente que o homem pensa. Uma criatura sincera dá a impressão de que está dizendo o que sente. Sinceridade é falta de espírito”. Um texto chocante de Guilherme de Almeida, descendo o pau em tudo o que é sagrado no meio acadêmico: verdade (“A verdade é o tédio da imaginação”), saber (“Saber é um horror”), sinceridade, a ciência. E enaltecendo o contrário: as belas mentiras da arte, a ironia. O texto completo está publicado aqui neste blog, mas reitero alguns de seus trechos essenciais:

“A arte é puramente espiritual. Ela não diz verdades: diz mentiras belas. Não adianta nada dizer verdades: quem ouve fica apenas sabendo. Não é preciso que alguém “fique sabendo”; é preciso que todos “fiquem imaginando”. A verdade é o tédio da imaginação. Saber é um horror. Uma coisa é bela enquanto não é sabida: o céu, a alma... Nãosugestões possíveis no binômio de Newton. Porque é preciso que exista a verdade e que exista a beleza: se não, não poderia haver homens de mau gosto e homens de bom gosto É muito mais belo acreditar numa mentira do que numa verdade. Para que a verdade fosse bela, foi preciso pô-la dentro de uma linda mentira: a cisterna da lenda. Em rigor, nãoverdade nem mentira: há pessoas que acreditam e pessoas que não acreditam. A gente tem necessidade de acreditar nas coisas incríveis. Ninguém tem vontade de que “aconteça” um romance de Zola.; todos têm vontade de que aconteça um conto de Perrault. Por isso é que há deístas. Deus é perfeitamente inverossímil. Os ateus são homens que com certeza viram Deus. A arte é assim: a arte é como Deus. Todos os homens, querendo assemelhar-se a Deus, criam ou destróem. É o que justifica haver artistas e haver críticos. Aqueles criam sugerindo; estes destróem explicando.Quando um artista não é compreendido, naturalmente é porque um crítico tentou explicá-lo. Explicar é completar. Somente as coisas incompletas é que são perfeitas, porque não satisfazem. Uma grande obra de arte é sempre incompleta: tem a perfeição de não satisfazer, isto é, de não cansar nunca. Mas nãonada mais inútil do que discutir arte. se discutem convicções. Em arte nãoconvicções. O fato de ter um homem uma convicção prova, quando muito, que ele foi inferior a quem o convenceu. O artista é um ser absolutamente superior.” (Guilherme de Almeida, 1925)

E, coincidência, este maravilhoso texto de surgiu onde? Na oficina de poesia em 1994. Lembro-me bem de quem o levou e o leu em sala: Dona Jair. Uma senhora de mais de 70 anos que fazia oficina de poesia e estava escrevendo a biografia de um palhaço de circo, talvez mesmo este que acabou de falecer: o Carequinha. Em 1999, fui atrás da Dona Jair, procurar o magnífico texto que lera na oficina. Esse texto de Guilherme de Almeida é a linha mestra de boa parte de minha dissertação de mestrado.

E ainda no final deste ano devo publicar meu primeiro livro, um livro de poesias: “Nuvem das horas”. Depois de muitos e muitos anos labutando nessa história e com material para publicar mais uns cinco livros. Mas para que pressa? Isso tudo é demorado mesmo. Como diz José Simão: “Nóis sofre mas nóis goza”.


Saturday, April 08, 2006

Loucos 5 (Quando "fui" gari)

Sempre que posso, me dedico a observar o comportamento de pessoas que vivem com muito pouco. Tentar compreender como alguém consegue viver (ou sobreviver) com apenas um salário mínimo (o que é o caso de grande parte dos brasileiros) sempre foi para mim um verdadeiro enigma. Nunca dependi de salário mínimo para viver e não sou capaz de entender que isso seja possível. Então fico sempre muito curioso. Observo. Se puder, converso com quem vive assim. Sempre pergunto onde mora, quantas conduções pega, quanto tempo leva no trânsito, a que horas acorda, qual é a maior diversão, do que gosta mais de fazer em seu tempo livre. Enfim, gosto de entabular uma conversa. 
Sinto que tenho muito a aprender com quem dá um jeitinho de ser feliz, apesar de todas as adversidades .
Era uma manhã radiante e repleta de frescor. Eu caminhava todos dias até o supermercado, bem perto de minha casa. Passei então a reparar na equipe de garis que faz o serviço na região da minha quadra. Creio que é uma pequena equipe de três sujeitos, dos quais lembro-me bem de dois: um com os olhos bem pequenos, meio personagem de desenho animado; e outro de óculos e um pequeno bigode, com fisionomia mais agressiva. Não entrarei em detalhes acerca de tudo o que já pude observar. É suficiente dizer o que senti nesta linda manhã em que meu espírito navegava um olhar de contemplação e paz por tudo o que via. Olhei para os garis e reparei em sua indumentária. Roupa para trabalho pesado, toda alaranjada, de mangas compridas, com algumas tiras verdes refletoras, e um boné também alaranjado. Uma roupa que esconde a identidade do sujeito, dificultando o contato com a pessoa, pois há uma pesada roupa reluzente de anteparo. E deve, claro, ser reluzente, chamativa, com mangas compridas e boné. Deve protegê-lo do sol e torná-lo bem visível aos carros, pois eles vivem nas ruas. Então são visíveis e invisíveis. O trânsito os enxerga e o coração não.
Mas como era uma manhã linda, eu estava a tudo contemplar com os olhos do coração e todas as virtudes ou miopias de que ele padece. Senti vontade de trocar um pouco de papel com eles. Trabalhar um tempo como gari. Talvez uma semana. Porém isso não estava ao meu alcance e tive outras idéias e questões, tais como: será que existe o dia do gari? Sim, fui pesquisar: 16 de maio. E seu eu arranjasse uma roupa igual? Queria vesti-la, saber se era confortável ou não. Dei um jeito de descobrir o nome da empresa que fornecia esses uniformes para o governo e providenciei um para mim.
Fora um ano muito turbulento. Eu andava muito inconformado com uma série de coisas e doido para dar alguns gritos de liberdade. Às vezes parecia que ia enlouquecer. Sempre que podia, tomava as dores de gente simples como os garis. E talvez eu nem tivesse muita razão na maior parte das pendengas em que me metia. Estava sendo arrastado para o olho do furacão de um processo irreversível de enlouquecimento e ainda era capaz de ver virtude nisso tudo. Sim, enlouquecia por boas causas. E isto é pior ainda, pois a loucura passa a ter sentido, a ser interessante.
O mundo seria melhor depois do sacrifício completo da minha sociabilidade. Minha loucura seria uma semente para muitas outras mudanças benéficas para a humanidade. Estava disposto a sacrificar meu ser, meu nome, minha carreira e minha imagem em prol do despertar de um novo tempo, de uma revolução de mentalidades e costumes sem precedentes. Hoje, tendo relativamente recuperado minha sanidade, posso refletir com mais sensatez e crítica acerca daquele ano absurdo e fatídico.
Eu estava atuando como professor universitário no curso de Psicologia. Terminara meu doutorado havia poucos meses, juntamente com o término de muitas outras coisas e sonhos que haviam simplesmente se esvaído pela ralo da existência. Tinha um diploma de doutor nas mãos e o coração despedaçado. Conquistara algumas glórias raras e sagradas da vida intelectual e perdera o coração no meio da estrada. E todos sabiam: “lá vai um doutor que está completamente perdido nesta vida”.
Estava ensandecido e com o coração afogado em mágoas sulfurosas. Delírios e alucinações eram então o destino mais coerente com minha condição. Frente a meus desafetos, meus algozes, os quais haviam pisado na minha cara enquanto afundava, era necessário não vê-los, mesmo que estivessem concretamente na minha frente. Não podia ver algumas coisas. Era incapaz de me olhar no espelho de manhã. E incapaz também me tornei de perceber meus desafetos como seres humanos.
Um dia saí de casa e fui almoçar em um restaurante próximo. Quem estava lá? Meus dois maiores algozes. Os dois sujeitos que minha loucura julgava serem o centro de minha tragédia, da morte de todo o sentido possível em minha existência. Pude vê-los e saber que eram eles. Um deles tinha barba e eu era capaz de olhá-lo, reconhecê-lo e, por educação, devolver seus cumprimentos, apertando sua mão e olhando para seus olhos. Mas não havia olhos, não havia rosto. Era incapaz de ver seu rosto. Seu rosto era uma mancha lisa como um pau, em cor salmão, sem olhos, sem boca e sem nariz, somente com a penugem de uma barba artificial. Ele havia se transformado num boneco. Eu cumprimentava um boneco de madeira, mal feito, mal acabado e com uma penugem ridícula no lugar do rosto. Os dois eram bonecos feios e falantes. E eu só os ouvia, de fato, se quisesse. Bastava apertar um botãozinho dentro da minha cabeça (on/off) e suas vozes desapareciam no breu de minha sombria magia interior.
Depois desse dia, percebi que a coisa estava ficando bem séria. Eu já não era mais somente aquele conhecido sujeito excêntrico. As pessoas se afastavam, estavam ficando com medo de meu processo crescente e monstruoso de enlouquecimento. Eu estava enlouquecendo e tinha total consciência disso. Porém não era mais capaz de controlar o que já vinha me engolindo havia um certo tempo. Era um estado de loucura necessária, inevitável, pelo qual meu ser deveria passar: “preciso enlouquecer, senão eu morro”, pensava. E o tempo todo era isso: morte, morte. E para não morrer de vez, para que o corpo não se exaurisse, tive de sacrificar minha alma.
Assim, todos os que não me interessavam, se transformaram em pedaços de pau. E os que se interessavam, deixaram de fazê-lo: sumiram todos. Eu estava imerso na mais completa solidão e era também incapaz de qualquer comunicação compreensível. Minhas aulas se transformaram em verdadeiros espetáculos de esquisitice. Alguns alunos também enlouqueciam de fascinação, outros de horror. Os primeiros freqüentavam as aulas como se estivessem indo ao circo. Os segundos faziam um movimento político para que eu fosse afastado por insanidade. E a gota d’água foi exatamente no dia 16 maio, dia do gari. Fui à aula vestido de gari. Disse somente que era uma homenagem, pois era o dia desses nobres trabalhadores.
Na sala dos professores o espanto foi geral. Dias depois eu recebia uma advertência do diretor. Interpretei tudo isso como uma grande limitação do que seja a vida. E, muito revoltado, resolvi radicalizar o protesto. Decidi que a roupa de gari agora seria meu uniforme de trabalho. Fui mais alguns dias com ela, o que só fez me extremar ainda mais minha ação revolucionária. Resolvi que melhor ainda seria não mais tirar a roupa de gari. Seria a roupa da minha existência. Comprei várias outras e as usava todos os dias, a todo momento. Inclusive para dormir. Só a retirava para tomar banho ou quando já precisava de lavagem. Preferia-as, na medida do possível, sempre limpinhas e cheirosas. Meu guarda-roupas era lindo, todo alaranjado. Dizem que a roupa é uma segunda pele. Minha segunda pele era de gari. E em alguns aspectos eu mantinha minha total sensatez. Julgava inclusive que eu estava, na verdade, padecendo de um excesso de lucidez. Como as pessoas eram cegas, limitadas.
Assim sendo, fui submetido a diversos tipos de inquérito. Todos se julgavam no direito de me importunar por uma decisão existencial que era somente minha e de mais ninguém:
- Professor, afinal, qual é a utilidade pedagógica de vir lecionar vestido de gari?
- Veja bem, meu querido aluno, estamos aqui na universidade, com este projeto pioneiro da roupa do gari, promovendo a participação de todos vocês na formação, na criação do repertório simbólico de uma zona atômica temporária para a revolução dos costumes e do ethos dominante em uma sociedade individualista e injusta como a nossa...
Assim incursionava nas mais diversas teorias com as quais convivi em anos e anos em que fui rato de biblioteca, quando devorava livros como nenhum mortal. E hoje, mais evoluído e maduro intelectualmente, e mentalmente mais saudável, mais lúcido, sou capaz de perceber também o tanto de baboseiras que dizia. Contudo, àquela época, naquele contexto, tinha muito sentido, e eu ainda era capaz de angariar muitos discípulos. Não era somente um processo de loucura individual, mas também coletivo. Eu tinha pretensões messiânicas de arrastar o mundo todo para o olho do furacão de minha própria loucura. E tudo estava coerentemente acontecendo conforme eu planejara minuciosamente. Se era uma revolução, deveria mesmo ser uma reação em cadeia. O conceito de “zona atômica temporária” contagiava a todos. Em inglês usava-se a sigla TAZ, “temporary atomic zone”. Era uma reação atômica. Temporária em uma primeira etapa da revolução. E, depois, definitiva: o mundo todo transmutado em seus novos e frutíferos valores universais.
Minha aulas haviam se transformado em espetáculos bizarros. Tudo o que era possível eu encenava ou cantava. E sempre tinha como parâmetro surpreender totalmente meus ouvintes. Por aqueles dias, eu deveria dar uma palestra em uma outra universidade, a qual já estava programada desde muito antes do surto da roupa do gari. Não houvera tempo suficiente para que a notícia de minha loucura chegasse até esta outra universidade. O tema era de abrangente interesse, eu era um profissional muito bem conceituado.
O auditório estava lotado. Pensei: hoje é o dia. Entrei, peguei o microfone e, quando fui convocado a falar, fiquei por uns bons instantes em silêncio total, com a cabeça retorcida para o lado e o rosto acompanhando, em expressão torta, grave e bizarra. Não dizia nada e somente fitava o público desta forma retorcida e estereotipada. Vez ou outra eu soltava uns grunhidos, também retorcidos. Eu era uma figura inerte, retorcida, que emitia alguns grunhidos altamente ridículos. Deixei que o espírito do ridículo inundasse minha alma e me entreguei a ele por alguns minutos. Não teve alternativa, o público mergulhou na perplexidade. Como alguém podia se expor tanto ao que é ridículo e impróprio, e se destruir tanto, em tão poucos minutos?
Saí da posição bizarra e comecei a explicar ao auditório atônito a utilidade daquilo que acabara de fazer. Aproveitei então para mudar o título da palestra. Antes: “A interpretação em clínica”. Para: “TAZ e interpretação”. Este novo conceito e método que eu formulara estava como um vírus a tomar conta de todas as teorias e técnicas com as quais eu trabalhava. Não havia mais como escapar.
Em poucos dias, o Conselho Universitário tinha minha pessoa como uma pauta fundamental. Transformei-me em um sério problema institucional. Reuniam-se para decidir se eu seria afastado ou não. Mas o processo foi bem mais rápido. Quando dei por mim estava sendo abordado em sala de aula pelo Corpo de Bombeiros. É isso mesmo, na capital do Brasil, o resgate, a internação de loucos, se inicia com o Corpo de Bombeiros. Não resisti fisicamente, e também não tentei agredir ninguém. O movimento Gari-Taz era pacífico.
Da sala de aula fomos direto para um manicômio. Era um tempo em que eu estava totalmente desamparado. Conseguiram neutralizar o movimento bem em seu inicio. Porém, àquele tempo, o TAZ tomou conta da rede mundial de computadores. As referências eram várias. Bastava uma busca simples e logo tínhamos diante de nossos olhos uma miríade de referências, artigos, teorias e movimentos que já proliferavam em todo o mundo. Contudo, hoje, o termo “atômica” foi abolido e trocado por “autônoma”. É denominado hoje como “Temporary Autonomous Zone”. A troca do nome não configura somente uma terminologia diferente, mas o próprio enfraquecimento do movimento. A prometida reação em cadeia nunca ocorrerá. FBI e CIA foram muito eficientes em neutralizar membros importantes e estratégicos e eu certamente fui um dentre vários deles.
Mas isto já é passado. Não possuo mais nenhuma ligação com tais movimentos. Simplesmente pude tratar da minha saúde e retornar à pacata e conformada vida que tinha antes disso tudo. O tempo que passei no manicômio, assim como a loucura que vivi depois deste, pois este somente piorou as coisas, seriam temas para outras histórias.
Depois de vários meses de internação, alta, envolvimento com drogas e prostituição, só pude reencontrar minha lucidez com a brilhante idéia que teve meu orientador de doutorado. Ele procurou e selecionou um gari que pudesse servir como meu terapeuta. Teve a genial idéia de que somente um gari psicoterapeuta seria a possibilidade concreta para minha retomada de vínculo com o mundo real. Se havia sido por meio deste mito pessoal do gari que eu incursionara na loucura, seria por meio deste mesmo mito que eu sairia. Sairia pela mesma porta em que entrei. Sempre sob sua mais rigorosa instrução e supervisão, este gari enviado de Deus, Jorge Luis dos Santos (nunca me esquecerei seu nome e sua aura divina), me procurou. Sendo gari e provando que o era, logo conquistou minha aliança e simpatia. E no período de apenas alguns meses eu já podia andar com minhas próprias pernas. Minha lucidez voltava a reluzir.
Como parte da conclusão do tratamento vivi durante um mês como gari. Isto funcionou como um tônico para minha alma. Hoje trabalho para continuar tendo uma vida simples, discreta, estável e feliz. Eu e minha mulher estamos planejando ter filhos. E o nome do primogênito será Jorge Luis.

Thursday, April 06, 2006

Mergulhos

Andava com a vida muito corrida. Tudo congestionado. A passagem do tempo era um massacre constante. Sem contar a angústia constante do “não vou conseguir”, “não estou encontrando tempo”, “meu corpo está no limite”. Em um desses dias estive, como sempre, correndo, e passei, cheio de tarefas e afazeres dentro da cabeça em ebulição, por dentro da biblioteca da UnB.

De repente, lampejos e nuvens de paz tomaram meu espírito e o tempo parou um pouquinho. Parou para valer mais. Engraçado, porque a vida estressante e repleta de compromissos gera logicamente o pensamento de quetempo é dinheiro”, de que ele possui um valor imenso. Cada minuto passando é computado no taxímetro de nossa alma. E cada minuto gasto deve ser pago com uma outra coisa. Queremos sempre o tempo de volta. Relacionar-se com a passagem do tempo é lidar com uma perda fundamental estabelecida em nossa existência: o que alguns teóricos chamam de temporalidade; como sentimos e vivemos sua passagem.

Dentro de uma biblioteca sinto isso, sinto o tempo parar. Porque livros exigem muito tempo. Ler um livro requer tempo. Quantas pessoas não passaram um ano inteiro, com várias horas de dedicação a fio, somente para dar conta da leitura completa de um livro. Claro, estou falando de um extremo, o tempo que a leitura de alguns verdadeiros tratados demandam.

Mas, mergulhar na leitura, de um modo geral, toma tempo. Não tenho dúvidas disso. E como consigo fazer esse tempo valer mais dentro de uma biblioteca. Porque ela foi feita somente pra isso, para a leitura. O silêncio impera, é seu mandamento máximo. Biblioteca que não tem silêncio perdeu a noção de que é biblioteca. Pra mim bibliotecas são templos. É o mesmo espírito: concentrar-se, meditar, estar consigo mesmo, e tentando sempre acessar algo acima de nós. Um processo constante de cura, de fazer parar o tempo para o que é mais precioso nesta vida: o cuidado com nosso espírito. Claro, nem sempre é isto o que ocorre. Mas é o que me chamou atenção naquele dia.

Tive uma saudade tremenda de coisas quemuito não faço: fechar bibliotecas ou permanecer quase o dia todo nelas. Uma boa biblioteca é um oceano, um mundo enorme a ser explorado. E eu me deixava mesmo levar. Navegava horas a fio, mergulhando, em mim, e em tudo o que lia. De repente, quando eu via, estava fechando mais uma vez a biblioteca, seja na UnB, USP ou Unicamp: lugares onde mais me enfiei no fundo das bibliotecas e me esqueci. Na Unicamp foi pouco tempo, um semestre. Mas também não deixei de mergulhar e de ir até o último minuto de funcionamento; de dar “boa noite” e desejarbom descanço” aos últimos funcionários que deixavam o recinto.

E isso tudo começou na USP, na época em que ainda fazia minha graduação. havia dois maravilhosos templos que eu freqüentava: a piscina e a biblioteca. E os dois tinham a mesma função básica: lugares onde eu meditava, mergulhava. Ouvido debaixo d’água, som de bolhas, a respiração viva, compaçada e constante. As braçadas e a placidez irretocável de um nado relaxante, para si mesmo. E incêndio do mundo deixado fora. O tempo parava, a vida parava. E eu sempre podia fazer as pazes com o tempo. Ficar debaixo d’água, quieto, completamente calmo, com a respiração presa, é um tremendo de um estudo do tempo.

Os prazeres da leitura e de nadar são, para mim, muito semelhantes. Porém, na água, sempre chego mais rápido a esse gozo. Bastam quinze minutos de respiração consciente, nado e mergulho constante, de total ensimesmamento, e estou em outro plano, sentindo plenitude, harmonia com o mundo e a posse de mim mesmo. Com a leitura também consigo efeito parecido. Assim como quando passeio e deixo levemente que meus pensamentos me levem em meio à brisa a revigorar o corpo, e talvez a visão e frescor da copa das árvores a dar recanto e sombra a tudo o que pede um pouco de trégua para a energia voraz do sol.

Durante meu curso de graduação, piscina (água) e biblioteca eram templos tão importantes que os freqüentava diariamente. Geralmente eu saia da piscina e ia para a biblioteca. A primeira preparava minha alma e meu corpo para a segunda. E aquilo era tão importante pra mim. Eu me entregava com tal intensidade que chegava mesmo a dizer que poderia morrer em qualquer uma das duas. Parece absurdo, mas me ensinavam também a aceitar melhor a morte, o fim de tudo.

E quantas vezes não me vi nadando como se dormisse. Fechava os olhos e ia, no escuro de mim mesmo, no escuro de tudo, em um sono inconcebível debaixo d’água. Isso tem nome: meditação.

Um dia esqueci de abrir os olhos e literalmente me esqueci nadando. Tendo isso ocorrido outras vezes, eu simplesmente batia com as mãos na outra margem, e assim repentinamente me dava conta de que havia chegado do outro lado. Era como se eu dormisse, mergulhasse, sonhasse e nadasse ao mesmo tempo. Porém, há pouco tempo atrás, dei azar. Bati com a cabeça na borda. E não foi com a testa ou uma parte lateral. Foi um choque bem no centro do crânio, o qual gera ressonância simétrica para todo o corpo. Foi um estrondo enorme dentro de mim. Praticamente não tive dor. Porém, como foi um choque de ressonância, ecoei inteiro. Acordar com uma pancada seca bem no centro da cabeça, por praticamente não ter sido doloroso, foi interessante: um trovão dentro de mim. Um choque de consciência. Rápido, contudo estimulante. Entretanto, obviamente, não pretendo repetir o acidente. Mas, como muitos, tiro lições disso também.

É, como a leitura ou o nado, uma hora devo acordar e voltar ao mundo. O que diz que este texto foi para mim também um mergulho.