Thursday, March 02, 2023

Azar ou armação?

A vida é assim. Às vezes ela bate mais forte, e repetidamente, ao ponto de pensarmos que estamos atravessando uma onda de azar ou que somos mesmo, por natureza, dotados de bem pouca sorte. 

Em 1985, o pior ano de minha vida, aos 12 anos, eu estava, juntamente com uns 20 colegas, debaixo de uma grande marquise, na escola, esperando a tempestade passar. 

Estava fascinado com o poder dos ventos, arrancando as folhas e os galhos das árvores, quase derrubando algumas delas, e mal tinha ideia de que aquele poder poderia se voltar contra nós. 

Foi tudo muito rápido. Ouvimos um estrondo muito forte, e de repente a marquise, sob a qual estávamos, explodiu em vários pedaços. Era composta por telhas enormes, creio inclusive que as maiores que existem, quando se fala em amianto. 

O vento havia arrancado uma dessas telhas, que desabou sobre a telha acima de nós. Vários pedaços de telha voaram e desabaram sobre aqueles 20 e poucos adolescentes e pré-adolescentes que ali estavam. Todos tentaram se proteger e, assim que puderam, correram para um lugar mais seguro. Minha cabeça doía. Alguma coisa havia caído em cima de mim.

 Olhei para as minhas mãos. Elas estavam encharcadas de sangue. Eu nunca havia tido contato com tanto sangue. Escorria pelo meu rosto. Eu estava num banho de sangue. Ao me ver, algumas adolescentes se assustaram, e saíram gritando, desesperadas. Isso foi suficiente para que eu também entrasse em desespero, e também saísse gritando.

 Para minha sorte fora somente um corte superficial no couro cabeludo, que havia rompido alguns profusos vasos sanguíneos.

 Infelizmente, após o ocorrido, fiquei traumatizado com tempestades de ventos fortes.

 Libertei-me somente mais de dois anos depois, quando era office-boy no aeroclube de Ribeirão Preto. Fui encarregado de fazer uma entrega, e do lado de fora as árvores já se balançavam bastante com os ventos, que anunciavam chuva.

 Depois de uma coleção imensa de vexames, em virtude de várias vezes ter me desesperado com ventos um pouco mais fortes, se eu dissesse à minha chefe que eu não iria, porque estava com medo da chuva, seria mais uma humilhação para essa coleção, que ainda não havia sido revelada naquele ambiente de trabalho.

 Senti que a humilhação seria mais dolorosa do que sair no meio da tempestade, e foi o que fiz. Foi libertador. Meu sentimento era o de que eu tinha me livrado de uma carga enorme e superado uma parte bem difícil do meu passado recente. Eu sentia que para alguém da minha idade, dois anos e meio com medo de alguma coisa era tempo demais.

 Mas, retornando ainda para 1985, cerca de 2 ou 3 meses após o acidente da tempestade, eu estava novamente na mesma aula de Educação Física, com o mesmo professor (que se chamava Zoroastro), participando do futebol, na quadra. Ele observava os estudantes jogando, de longe, a uns 50 metros, conversando com alguma outra pessoa, talvez um outro professor.

 - Mas veja esse menino aí, que tá correndo com a bola. Ele foi o único que se machucou, e ficou todo ensanguentado. Azarado esse moleque, hein!

 Instantaneamente após a sua fala eu, que era o menino com a bola, fui empurrado por um colega, sendo lançado para fora da quadra, para cair sobre um piso de concreto, de reboco grosso, bastante áspero. Levantei-me imediatamente e meus dois joelhos sangravam.

 - Pelo amor de Deus! Não é possível! Foi só eu falar que o moleque é azarado e logo em seguida ele se arrebenta? - completou Zoroastro, surpreso.

 - Adriano, você não vai acreditar! O professor tava ali falando que você é azarado, e você caiu exatamente no momento em que ele tava falando isso... - diziam alguns de meus colegas.

 Esses fatos, associados a uma série de outros, fez com que meu irmão mais novo, nessa mesma época, me desse o apelido de Uruca, que é um personagem de desenho animado, caracterizado por ser bastante azarado.

 1985 e 1986 foram anos muito difíceis para mim, os quais considero como os mais sofridos que já tive em toda a minha vida. E não foram sofridos porque eu era pessimista, ou me considerava azarado, como muitos inclusive fizeram para que eu assim me sentisse. Foram anos muito sofridos devido a uma série de eventos adversos.

 Se fui azarado ou não, se sou azarado ou não, é algo sobre o qual nem penso muito, porque o excesso de sentidos pode aumentar o próprio sofrimento. Prefiro ir assimilando a ordem dos eventos, por mais infelizes que sejam, de modo a me manter sereno e tentar resolvê-los.

 O problema é que muitas vezes, sem percebermos, nos desesperamos e adentramos ritmos frenéticos, que também acabam por gerar estresse e mais sofrimento.

 Quando eventos ruins se repetem e se acumulam, é inevitável o sentimento de angústia e de falta de alternativas. Isso pode se acumular, de modo bastante pesado, durante meses, e fazer com que uma pessoa se sinta completamente infeliz, ou que sua qualidade de vida e sua saúde se deteriorem gradativamente.

 Hoje, pela manhã, eu estava mais ou menos assim. Devido a uma série de fatores, os quais não cabe aqui detalhar. Tive uma noite difícil e com pouco sono. Ao acordar, percebi que seria um desafio grande conseguir chegar, sem muito atraso, ao local de trabalho, porque durante toda a noite, e logo ao acordar, enfrentei uma série de dificuldades, que estavam me fazendo pensar uma única coisa, a qual já venho pensando há um tempo, quando uma sucessão de eventos ruins me acomete:

 - Só pode ser pegadinha! Não é possível! É muita coisa errada, uma atrás da outra, e muralhas imensas de dificuldades a serem superadas...

 De repente me percebi construindo uma nova regra para mim mesmo, para poder me consolar um pouco mais em relação a uma série de dificuldades e eventos ruins dessa vida. E essa nova regra pode ser resumida na seguinte expressão: "Isso é pegadinha!".

 Essa regra remete ao pensamento de que vivemos em uma simulação de computador, controlada por algoritmos, que podem ter adquirido vida própria, ou por seres que nos controlam, ou que estamos sob o domínio de algum ser, mais onisciente do que nós que, por recursos superiores aos nossos, nos controla.

 E se a maioria dos seres sencientes desse planeta vive uma vida sofrida, miserável, podemos inclusive pensar que essas entidades, ou esse ser, estão o tempo todo nos sacaneando, fazendo pegadinha com muitos de nós, aqui e ali.

 Essa minha regrinha, por princípio também dotada de irracionalidade e pensamento mágico, estava me ajudando a me comportar de modo um pouco mais sereno. Se é tudo uma grande pegadinha, as coisas são inevitavelmente difíceis e repletas de maldades deliberadas para conosco. Então o jogo é esse mesmo, e não faz sentido se apressar demais ou se desesperar, pois tudo ocorrerá a seu tempo, e a pressa raramente surtirá algum benefício nos desesperos e nas correrias do mundo.

 Peguei minha bicicleta e novamente, como faço há mais de 6 anos, peguei o mesmo caminho em direção ao trabalho. Um caminho pelo qual já devo ter passado mais de mil vezes.

 "Não há porque se apressar nem se desesperar. Tudo ocorrerá a seu tempo. Não há porque se envolver demais com as dores alheias, e nem se desesperar para que as coisas se resolvam mais rapidamente ou de forma mais prática. O que terá de ser será, porque tudo é uma grande covardia, sadismo e sacanagem mesmo. Quem nos controla ou quem criou esse algoritmo é um tremendo de um filho da phutta."

 A cabeça estava atribulada, mas dentro de toda a atribulação, eu agora conseguia me sentir razoavelmente sereno enquanto pedalava.

 Todo e qualquer percurso que alguém faça de bicicleta possui trechos mais perigosos. Foi tudo muito rápido, e de repente havia um carro que vinha em minha direção e ia me atropelar. Estávamos em direções opostas e as velocidades se somariam, em um atropelamento ou acidente de trânsito como eu nunca havia vivenciado antes.

 Tentei desviar e freiei com todas as minhas forças. Por sorte não houve o choque. O carro deve ter derrapado, freado ou desviado bruscamente. Mas eu não me salvei por completo. Minha tentativa de desviar, freando bruscamente, fez com que eu capotasse. Fui para o chão, com a bicicleta talvez por cima de mim.

 Não sei se é um mau hábito, mas sempre que dou uma topada com a perna ou o pé em algum móvel, solto imediatamente alguns palavrões, e nesse tombo não foi diferente.

 Eu estava no chão, de bruços, com uma das pernas presa na bicicleta, sem conseguir me levantar, sem conseguir me virar, e professando alguns palavrões. A quase colisão ocorreu com um carro de passeio. Eu estava exatamente na entrada do corpo de bombeiros da cidade onde moro. Esse carro pertencia a um soldado ou oficial desse batalhão.

 - Pare para de xingar, rapaz! - foi o que ele me disse, como se fosse um comando a um de seus soldados.

 Parei de xingar, e continuei no chão, de bruços, sem conseguir me virar, somente resmungando que minha perna estava presa na bicicleta, e que daquele modo eu simplesmente não conseguia me levantar.

 Chegou outro bombeiro. Os dois tiraram meu tênis, e conseguiram soltar minha perna da bicicleta. Fui devidamente examinado e me fizeram algumas perguntas, para saber qual era meu estado. Eu estava quase que completamente anestesiado. Uma série de substâncias devem ter se produzido em meu corpo, ao ponto de fazer eu me sentir um pouco fora de mim e sem qualquer tipo de dor em parte alguma.

 Logo eu estava de pé, calçado e nem sei exatamente quem vestiu o tênis em meu pé. O banco da bicicleta estava completamente torto e na força eles colocaram-no no lugar. Apertei-lhes as mãos, agradeci e lhes pedi desculpas pelos xingamentos.

 - Bote deus no teu coração, e pare de xingar – completou o bombeiro.

 Caminhei 50 metros, até a faixa de pedestres, e atravessei-a no meu tempo, que estava quase parado, com tudo passando muito devagar. Eu sempre atravesso a faixa de pedestres o mais rápido possível, para não incomodar nenhum motorista. Mas dessa vez não fiz questão alguma de colaborar com quem me esperava.

 Cerca de 50 metros depois havia outra faixa, da pista contrária. Continuei caminhando, em passo lento, cambaleante e agora já com algumas lágrimas no rosto.

 É inevitável que esse tipo de acidente gere alguns ferimentos em carne viva e até fraturas. Por sorte não tive nenhuma fratura, mas uma coisa irá sempre inflamar: o ombro que machuquei em uma queda de moto, há quase 30 anos.

 Resultado: dois dias de atestado, curativo no ferimento do cotovelo e anti-inflamatórios para o ombro esquerdo. Mas continuo sereno e sem desespero, porque é tudo pegadinha.