Wednesday, January 31, 2007

Desapego e compaixão como sentidos para a vida


Da minha convivência com praticantes do budismo tibetano ficaram alguns ensinamentos. Não sei se o que vou dizer aqui é budismo de fato, se o que aprendi é torto, se estarei ou não distorcendo o que pensam. É, porém, o que pude apreender do que diziam. E é também, independente disto, uma reflexão sobre sabedoria e sentido para a vida.
Os budistas que conheci falavam bastante de desapego e compaixão. Que o longo e pedregoso caminho para a iluminação era o desapego, a capacidade de abrir mão de tudo e de si mesmo, do próprio eu. Desapegar-se ou estar desapegado seria, neste sentido, o contrário da avidez, do desejo intenso, ou o sentimento de posse extremada. O contrário de qualquer espécie de fanatismo ou obsessão.
Uma pequena estória zen talvez possa ajudar:
Um velho mestre fora abordado por seus vizinhos, na porta de sua casa. Os pais traziam a filha, uma jovem, grávida:
- É ele, mamãe. Ele é o pai de meu filho!
- Então, o senhor é quem engravidou minha filha?
- É mesmo?, perguntou tranqüilamente o mestre.
Diante de tal pressão, o mestre reagia com resignação, somente proferindo a expressão “é mesmo?”. Não teve jeito. Providenciaram logo o casamento.
A moça era muito jovem e irresponsável. Todos os cuidados com a criança ficavam a cargo de nosso velho mestre zen. Quantas noites mal dormidas, quantas horas pajeando aquele bebê. Quanto tempo e energia despendidos com um filho que não era seu.
A moça, um dia, porém, chega em casa com o verdadeiro pai da criança. Este havia agora tomado juízo e assumiria a criação de seu filho. Ela, imensamente arrependida, perde então perdão ao mestre pelo grave erro cometido:
- Tenho algo a lhe dizer. Errei e muito. Menti para meus pais e tenho feito você pagar por um erro que não foi seu.
- É mesmo?”
Acho muito engraçadinha esta estória do mestre “é mesmo?”, tal seria seu estado de aceitação e desapego. Aceitando tudo e sempre deixando que as coisas tomassem seu curso. O contrário da revolta e do inconformismo. Resignação. A aceitação do mal e da dor também como parte do mundo. Antes de tudo, aceite. Aceite para poder fluir melhor. Deixe acontecer. Viva e deixe morrer. E a idéia de impermanência sempre a tomar conta de tudo. Aceite, pois tudo se move e muda, e logo haverá outro cenário. Não tente conter a vida ou o destino com as mãos, pois assim se sofre mais. De nada adianta apertar a areia com as mãos. Desse modo ela jamais será contida. Pelo contrário, quanto mais somos ávidos em contê-la, mais escapa pelos dedos.
Quanto mais ansiamos pela vitória, por uma conquista, mais hesitamos, mais ansiedade geramos e menos sucesso obtemos em direção aos nossos objetivos. Basta se desejar intensamente para não se ter nada. É a história de ir com muita sede ao pote. Neste caso, o desapego é mais aconselhável. Ou a sede imensa de seduzir, mas o nervosismo que destrói tudo. Quanto mais se quer, menos se consegue. E quando vamos mais soltos (desapegados) em direção à nossa meta, podendo pensar que dela podemos abrir mão, tudo caminha com mais fluidez e precisão espontâneas.
Como, vocês, monges, vivendo de modo tão simples e isolados do resto do mundo, se dizem felizes?”, indagou um curioso a visitar um templo, espantado com o isolamento, a simplicidade e o silêncio. Pois nada acontece ali. É tudo ausência. Tudo do qual nós geralmente fugimos. Aquilo que nos conduz à melancolia, ao tédio.
O mestre respondeu:
“Somos felizes porque não lamentamos o passado, nem esperamos nada do futuro.”
Ou seja, desapego tanto do que foi como do que virá. Desapego também em relação à passagem do tempo.
Não sei se pude me fazer entender sobre o sentido do desapego. Mas creio que foi o suficiente para o leitor encontrar sua própria compreensão. Sim, até aqui, pra mim tudo bem, sempre compreendi bem a importância do desapego. Agora, o que nunca compreendi era a idéia de que a compaixão seria o outro lado da moeda, como o melhor sentido possível para a vida. Desapego e compaixão: o sentido da vida para os budistas tibetanos, os seguidores do Dalai Lama. Ouvia assim de suas bocas: “a compaixão é o quesentido à vida”. Como assim, que estória é essa?
pouco tempo atrás, penso, porém, que passei a ter um entendimento maior desta questão:
Tive um paciente muito peculiar. Um senhor, negro, de mais de 60 anos. Sábio, muito sábio: umPreto Velho”. Utilizo este termo para além do contexto religioso de que faz parte. Digo “Preto Velhocom a intenção de ressaltar sua sabedoria, sua experiência de vida. O que talvez também não seja muito diferente do sentido que se tem em alguns rituais afro-brasileiros.
Viera de uma família muito humilde, porém de um ambiente muito rico em termos simbólicos. Sua mãe contava-lhes muitas histórias. Havia um imenso cultivo da oratória e do conhecimento dentro de sua casa. Seu pai tocava violão e sempre trazia alguns amigos para tocarem, cantarem, ensaiarem. Um ambiente repleto de música, muita conversa, estórias fabulosas, imaginação e curiosidade.
Sempre fui um curioso. Sempre quis aprender de tudo. Ficava ali, sentado, observando os acordes; depois pegava o violão e ficava tentando reproduzi-los. Eu cresci na rua. E sempre tive comigo uma curiosidade enorme para aprender tudo o que pudesse me acrescentar, me fazer alguém melhor. E assim fui aprendendo, daqui e dali...”
Era um senhor com mais de 60 anos, muito bem de saúde, de aparência e de finanças. Dizia que nunca tivera avidez para ganhar dinheiro e que este nunca fora seu principal objetivo. Porém, ganhara bastante dinheiro, muito mais do que imaginava; o suficiente para viver de renda. Seu relato era o de um desapegado, em vários sentidos. Ele não possuia contato com a doutrina budista. Eu é quem fazia esta relação.
Dedicara-se durante muitos anos, como empresário, a um trabalho que muito amava. Sua empresa era uma parte fundamental de sua vida, juntamente com a convivência em família. Contudo, um dia ele adoeceu. Os médicos diziam que era devido a seu ritmo incessante de trabalho. E junto com o adoecimento veio uma crise no casamento. Descobriu que se continuasse daquele jeito, à frente da empresa e casado, morreria. Teve então de largar tudo. Separou-se e vendeu a empresa.
Passou a viver sozinho. Tinha uma vida muito confortável. Adentrava a terceira idade cuidando bem de sua saúde, distante do estresse e sem qualquer tipo de apreensão em relação às finanças: vivia de renda, e bem.
Chegou, porém, ao meu consultório com a queixa de que sua vida andava meio carente de sentido.
“Se eu fosse pobre, não mudaria muita coisa. Eu viveria do mesmo jeito. Teria a mesma tranqüilidade, o mesmo interesse pela vida. Tudo o que fiz nesta vida não foi pensando em dinheiro primeiramente. Era pelo prazer de fazer algo bem feito, de realizar, de construir alguma coisa e vê-la funcionando com perfeição. Os ganhos financeiros foram uma conseqüência. (...) Fui uma criança pobre. Vim de uma família muito humilde. Mas sempre tive um interesse enorme em aprender coisas novas. E minha escola foi a rua, a própria vida. (...) Nunca tive uma paixão arrebatadora. Nunca sofri intensamente de amor.”
Minha impressão era a de que ele de fato possuía um desprendimento muito grande em diversos aspectos de sua vida. Tinha muito dinheiro, mas não se sentia escravo disso. Conhecia pessoas dos mais diversos estratos sociais. Era muito sociável, fino, elegante. Sua elegância não dependia da roupa que vestia ou do dinheiro que tinha. Jamais perdia a postura. Sempre olhava nos olhos, falava de forma pausada e calma, e caminhava de cabeça erguida, sem jamais ser agressivo, o que é raro. Polido, suave.
A elegância era uma de suas marcas registradas. Eu sentia que ele era capaz de manter-se polido e digno mesmo nas mais constrangedoras ou humilhantes situações. Rico ou pobre, bem vestido ou maltrapilho, culto ou inculto, seria sempre digno, sereno, firme, olho-no-olho, enfim: elegante.
Não lamentava o passado, nem se angustiava com o futuro. Sua fala o tempo todo me chamava a atenção para alguns ensinamentos de sabedoria. Um deles, sempre recorrente, era a idéia de desapego. Porém, sua queixa principal era a de que sua vida andava meio sem sentido. Interpreto assim: tédio.
Bertrand Russell, em seu livro “A conquista da felicidade”, diz que uma das causas mais comuns de infelicidade entre abastados é o tédio. Todas as necessidades são sempre satisfeitas e ficam distantes de poderem fazer mover de modo mais visceral quem delas é sujeito. Tudo realizado, tudo satisfeito. A ausência de desafios genuínos. Ou a sugestão freudiana da ausência de sentido depois de tudo ter sido conquistado na vida. O sujeito espera demais, adia sempre sua felicidade para o momento em que terá conquistado este ou aquele objetivo. E quando finalmente chega , não é tudo aquilo que imaginava. A vida continua a lhe dizer que algo ainda falta. Porém, agora não se sabe mais o que é. Algo falta, mas não se sabe o quê. Tinha tudo para estar feliz, mas não está. E nem mesmo suspeita o que seja. Pois, afinal, nãológica alguma em sua tristeza. Irônico, mas é isto. Ter tudo o que se deseja: eis o inferno.
Para Russell, a infelicidade, com origem no tédio, é coisa de gente rica. Ou, indo um pouco mais além, de monges. De monges que de fato conseguiram desapegar-se. Penso que o desapego pode também gerar tédio. Desejar pouco, sofrer pouco, comer pouco. Penso que muitos ensinamentos orientais são de diminuição do desejo e talvez até mesmo do metabolismo. Tudo em doses suaves. Uma contemplação constante da ausência. E isto pode, sim, gerar uma espécie de depressão comportamental ou fisiológica. E, por sinal, costumamos conceber estes sintomas como tédio.
Esta era a queixa do Preto Velho: ausência de sentido e uma certa melancolia que sempre o acompanhou. Então seria com isto que os monges, os desapegados, teriam de conviver? Tudo em doses suaves, poucas oscilações, a ausência de extremos. Nem sofrimento, nem alegria extremos. Uma vida destemperada; no sentido de sem tempero, sem muitas variações. E o que ouvi da boca de alguns budistas? E alguns, confesso, que pareciam estar somente reproduzindo o que fora professado a eles, também no fundo com dificuldades de compreensão, assim como eu quando ouvi isso pela primeira vez: “a compaixãosentido à vida”. Diziam que deveríamos ter compaixão, de que seria ela a gerar um sentido para a vida.
Pois bem, hoje penso, talvez, que eu tenha uma compreensão melhor desta concepçãobudista” da compaixão. Se há desapego e se este, por sua vez, gera um sofrido tédio existencial, o que fazer? Como retomar um sentido para a vida? Uma boa resposta pode ser a seguinte: no amor. Não o amor que toma, que possui. Mas sim no amor que se doa. O amor que provém da compaixão. E que não seria devotado somente a uma única pessoa, mas a todo ser que sofre. E é isto o que eu sempre ouvia os budistas dizendo. E que somente o Preto Velho me fez entender.