Da
Os budistas que conheci falavam bastante de desapego e compaixão . Que o longo e pedregoso caminho para a iluminação era o desapego , a capacidade de abrir mão de tudo e de si mesmo , do próprio eu . Desapegar-se ou estar desapegado seria, neste sentido , o contrário da avidez , do desejo intenso , ou o sentimento de posse extremada. O contrário de qualquer espécie de fanatismo ou obsessão .
Uma pequena estória zen talvez possa ajudar :
“Um velho mestre fora abordado por seus vizinhos , na porta de sua casa . Os pais traziam a filha , uma jovem , grávida:
- É ele , mamãe . Ele é o pai de meu filho !
- Então , o senhor é quem engravidou minha filha ?
- É mesmo ?, perguntou tranqüilamente o mestre .
A moça era muito jovem e irresponsável . Todos os cuidados com a criança ficavam a cargo de nosso velho mestre zen . Quantas noites mal dormidas , quantas horas pajeando aquele bebê . Quanto tempo e energia despendidos com um filho que não era seu .
A moça , um dia , porém , chega em casa com o verdadeiro pai da criança . Este havia agora tomado juízo e assumiria a criação de seu filho . Ela , imensamente arrependida, perde então perdão ao mestre pelo grave erro cometido:
- Tenho algo a lhe dizer . Errei e muito . Menti para meus pais e tenho feito você pagar por um erro que não foi seu .
- É mesmo ?”
Acho muito engraçadinha esta estória do mestre “é mesmo ?”, tal seria seu estado de aceitação e desapego . Aceitando tudo e sempre deixando que as coisas tomassem seu curso . O contrário da revolta e do inconformismo . Resignação. A aceitação do mal e da dor também como parte do mundo . Antes de tudo , aceite . Aceite para poder fluir melhor . Deixe acontecer . Viva e deixe morrer . E a idéia de impermanência sempre a tomar conta de tudo . Aceite , pois tudo se move e muda , e logo haverá outro cenário . Não tente conter a vida ou o destino com as mãos , pois assim se sofre mais . De nada adianta apertar a areia com as mãos . Desse modo ela jamais será contida. Pelo contrário , quanto mais somos ávidos em contê-la, mais escapa pelos dedos .
“Como , vocês , monges , vivendo de modo tão simples e isolados do resto do mundo , se dizem felizes ?”, indagou um curioso a visitar um templo , espantado com o isolamento , a simplicidade e o silêncio . Pois nada acontece ali . É tudo ausência . Tudo do qual nós geralmente fugimos. Aquilo que nos conduz à melancolia , ao tédio .
O mestre respondeu:
“Somos felizes porque não lamentamos o passado , nem esperamos nada do futuro .”
Há pouco tempo atrás , penso , porém , que passei a ter um entendimento maior desta questão :
Tive um paciente muito peculiar . Um senhor , negro , de mais de 60 anos . Sábio , muito sábio : um “Preto Velho ”. Utilizo este termo para além do contexto religioso de que faz parte . Digo “Preto Velho ” com a intenção de ressaltar sua sabedoria , sua experiência de vida . O que talvez também não seja muito diferente do sentido que se tem em alguns rituais afro-brasileiros.
Viera de uma família muito humilde , porém de um ambiente muito rico em termos simbólicos. Sua mãe contava-lhes muitas histórias . Havia um imenso cultivo da oratória e do conhecimento dentro de sua casa . Seu pai tocava violão e sempre trazia alguns amigos para tocarem, cantarem, ensaiarem. Um ambiente repleto de música , muita conversa , estórias fabulosas, imaginação e curiosidade .
“Sempre fui um curioso . Sempre quis aprender de tudo . Ficava ali , sentado, observando os acordes ; depois pegava o violão e ficava tentando reproduzi-los. Eu cresci na rua . E sempre tive comigo uma curiosidade enorme para aprender tudo o que pudesse me acrescentar , me fazer alguém melhor . E assim fui aprendendo, daqui e dali...”
Dedicara-se durante muitos anos , como empresário , a um trabalho que muito amava. Sua empresa era uma parte fundamental de sua vida , juntamente com a convivência em família . Contudo , um dia ele adoeceu. Os médicos diziam que era devido a seu ritmo incessante de trabalho . E junto com o adoecimento veio uma crise no casamento . Descobriu que se continuasse daquele jeito , à frente da empresa e casado , morreria. Teve então de largar tudo . Separou-se e vendeu a empresa .
Passou a viver sozinho . Tinha uma vida muito confortável . Adentrava a terceira idade cuidando bem de sua saúde , distante do estresse e sem qualquer tipo de apreensão em relação às finanças: vivia de renda , e bem .
Chegou, porém , ao meu consultório com a queixa de que sua vida andava meio carente de sentido .
“Se eu fosse pobre , não mudaria muita coisa . Eu viveria do mesmo jeito . Teria a mesma tranqüilidade , o mesmo interesse pela vida . Tudo o que fiz nesta vida não foi pensando em dinheiro primeiramente . Era pelo prazer de fazer algo bem feito , de realizar , de construir alguma coisa e vê-la funcionando com perfeição . Os ganhos financeiros foram uma conseqüência . (...) Fui uma criança pobre . Vim de uma família muito humilde . Mas sempre tive um interesse enorme em aprender coisas novas . E minha escola foi a rua , a própria vida . (...) Nunca tive uma paixão arrebatadora. Nunca sofri intensamente de amor .”
A elegância era uma de suas marcas registradas. Eu sentia que ele era capaz de manter-se polido e digno mesmo nas mais constrangedoras ou humilhantes situações . Rico ou pobre , bem vestido ou maltrapilho , culto ou inculto , seria sempre digno , sereno , firme , olho-no-olho, enfim : elegante .
Bertrand Russell, em seu livro “A conquista da felicidade ”, diz que uma das causas mais comuns de infelicidade entre abastados é o tédio . Todas as necessidades são sempre satisfeitas e ficam distantes de poderem fazer mover de modo mais visceral quem delas é sujeito . Tudo realizado, tudo satisfeito . A ausência de desafios genuínos . Ou a sugestão freudiana da ausência de sentido depois de tudo ter sido conquistado na vida . O sujeito espera demais , adia sempre sua felicidade para o momento em que terá conquistado este ou aquele objetivo . E quando finalmente chega lá , não é tudo aquilo que imaginava. A vida continua a lhe dizer que algo ainda falta . Porém , agora já não se sabe mais o que é. Algo falta , mas não se sabe o quê . Tinha tudo para estar feliz , mas não está. E nem mesmo suspeita o que seja. Pois , afinal , não há lógica alguma em sua tristeza . Irônico , mas é isto . Ter tudo o que se deseja : eis o inferno .
Esta era a queixa do Preto Velho : ausência de sentido e uma certa melancolia que sempre o acompanhou. Então seria com isto que os monges , os desapegados, teriam de conviver ? Tudo em doses suaves , poucas oscilações , a ausência de extremos . Nem sofrimento, nem alegria extremos . Uma vida destemperada; no sentido de sem tempero , sem muitas variações. E o que já ouvi da boca de alguns budistas ? E alguns , confesso , que pareciam estar somente reproduzindo o que fora professado a eles , também lá no fundo com dificuldades de compreensão , assim como eu quando ouvi isso pela primeira vez : “a compaixão dá sentido à vida ”. Diziam que deveríamos ter compaixão , de que seria ela a gerar um sentido para a vida .
12 comments:
Seu texto me pegou...uma brisa suave e confortante que passou...
oi, stella, obrigado por seu comentario. como vc encontrou meu blog?
Estava no blog de um amigo e cliquei em "next blog": caiu no seu! Muito legal, por sinal. Sucesso.
poxa, que joia...
um grande abraço
adriano
digo e repito:
seu texto acalmou meu coração tão aflito.
vc tem razão, assim como outro grande escritor nos disse, o amor é verbo intransitivo.
só tem sentido quando é dado sem espera de retorno...
beijo
Caro Mestre Adriano,
Ainda estou no meio do seu novo "Desapego e Compaixão" e fico me perguntando o porquê do apego, da "diapaixão". Não que me debruce sobre o assunto, mas por ele me interesso. Por que um homem chega ao momento de se auto explodir dentro de um shopping lotado ? Como ele ou ela chega à compreensão de que esta é, afinal, a única forma possível de sobrevivência ? Seria apego ou desapego ? Seria compaixão ou "diapaixão" ? Por que ele põe fogo em um ônibus ou se joga no meio do fogo cruzado para "queimar" o inimigo ? Qual será o sentido de se apropriar de tudo o que é público, de tomar tudo o que é dos outros ? Da voracidade extrema ? Sei que a Simone Weil discute essas coisas, ou algo parecido, mas ainda não tive oportunidade de ler para além de algumas páginas de seus livros. Mas, na minha mente inculta, mas "acho que ví um gatinho" em meio à descrição da vida infantil do
Sr. "Preto Velho". Ele fala de pobreza material, mas fala de estórias contadas pela mãe, música, amigos, aprender coisas novas, etc.... ou seja - cultura, amor familiar, etc, A alma alimentada ! Sem motivos para a paixão extrema, para o desesperado desejo do apego. É apenas uma sombra, não sei se ví direito. Veio e se foi !Agora terminei o texto, mais confuso que comecei. Ao invés de respostas, você me colocou umas pedras no meio e me deixou em xeque. Afinal, qual o caminho da vida ? Apego ou desapego ? E será que não existe compaixão no apego ? O tigre passa no meio do mato e eu só ouço o quebrar de um ou outro galho. Na sei mais de qual direção ele vem. Você, como autor, nos colocou em xeque.
Grande abraço,
Yoda
Oi Adriano, por um destes milagres googlônicos, cheguei a teu blog. Adorei e espero voltar sempre. É muito bom encontrar pessoas com o dom de escrever sobre assuntos que nos tocam. Parabéns!
prezados,
somente tenho a agradecer a todos os comentarios postados aqui...
um abraço a todos
adriano facioli
Olá Adriano,
gostei do seu cuidadoso texto sobre amor e compaixão.Coincidentemente, estou lendo: "Dharma O Caminho da Libertação" de Joseph Goldstein. Ele foi definido pelo Dalai Lama como um moderno budista ocidental, que refere nossos dilemas modernos aos conceitos budistas.Ajuda bastante a esclarecer o quanto é preciso uma prática regular de meditação (e, se possível, a orientação de um mestre!) para se ter uma compreensão experiencial destes conceitos. Mas, é sempre útil examinar os conceitos à luz da razão, embora a mesma não seja suficiente para fazer brotar a clareza que surge diante do desvanecer de nossas ilusões que só a meditação é capaz.
Forte abraço
Ricardo Teixeira
ricteixeira@terra.com.br
Olá, Adriano!
Venho pesquisando há um tempo sobre alguns temas relacionados ao budismo e acabei por entrar em seu blog...
Sua maneira de pensar e escrever cativaram alguns sentimentos que foram muito valiosos para mim.
Tenho gostado muito do que tenho lido!...
Se me permite, gostaria muito de trocar algumas idéias e informações com você, através de email, principalmente sobre o budismo, a viagem que fez...
De toda forma, deixo o sincero elogio à sua diversidade e riqueza de temas.
Forte abraço,
Aída Araújo
aida.araujomachado@gmail.com
Adriano, a madrugada é fantastica... esse seu texto me levou a ver outro contexto....Uma certa pessoa que já passou por mim nesta vida, me disse que: "Do mundo não levaremos nem a nossa roupa... -- Tenho ultimamente estudado e me re-educado um pouco sobre me desapegar, e aflorar mais os sentidos mais profundos que o a cabeça pensa, o corpo pede, os olhos cobiçam, as mãos suam de prazer e anseio de tocar em..., mas o espirito padece..."
Nas madrugadas da vida, pensando se eu vou conseguir enfrentar o que eu tenho mais medo? " A MORTE" o desapego o ultimo desenlace......
Grande Abraço,
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