Thursday, December 30, 2010

É igual picada de cobra




O nome dele era Jossen Auguste Renoir. Era um senhor de seus sessenta anos de idade. Mas nem aparentava tudo isso. Era alto, bem forte, totalmente careca e a barba branquinha. Pela complexão física aparentava uns 10 anos a menos. Somente pelas rugas no rosto é que podíamos ter uma ideia melhor de sua idade. Pelo olhar também. Era um olhar de quem tudo já vira e vivera nessa vida.
Viera para o Brasil ainda criança. Tinha histórias absurdas, tanto para o outro lado do oceano, como para este. Era belga de nascimento, carregava no lombo e na memória muitas histórias do povo belga antigo e medieval. Todas traziam sempre muita força, violência e morte em tudo o que se tinha vivido por aquelas regiões. Um de seus irmãos se suicidara com uma overdose de heroína, sua irmã fora para Amsterdã para viver como prostituta, seu irmão estava, na Europa, preso há cinco anos, com uma ficha criminal imensa, e delitos dignos de gênios do crime. Sua mãe, depois da morte de seu pai, em virtude do alcoolismo, também se prostituíra, convertendo-se a um protestantismo fanático e casto aos 42 anos de idade, e vindo, desde então, a seguir sua bíblia e a deixar seus cabelos a crescer e tomar conta de todo o seu corpo, na insanidade de fieis que são capazes das maiores sandices para manter acesa a chama de sua crença.
Era muito proveitoso sentar-se com ele e ouvir suas histórias absurdas, da sua vida trespassada de dores, sofrimentos lancinantes, amores, doenças venéreas, riscos de morte e quase todos os desvãos que se possa imaginar. Voltara para Bélgica aos 18 anos, e servira ao exército. Fora comandante de tanques de guerra, do exército de elite de seu país natal. Enfrentara os frios mortais em campos de treinamento na Alemanha, se metera por diversas vezes em brigas ou bebedeiras que sempre acabavam em merda.
Mas era, porém, de uma correção moral altíssima. Cultivava valores os mais nobres e honestos. Chegava a ser chato e obsessivo em muitas das exigências que fazia para consigo e com os outros. Era uma pessoa correta, íntegra, bom pai de família, como se toda sua correção fosse uma enorme reação às desventuras que a vida lhe apresentara. Ponderado, disciplinado, seja com suas contas ou com quaisquer prazeres sem esforços que a vida pudesse lhe oferecer.
“Sou um estóico, Adriano. Cultivo o prazer do esforço. Prazer, de graça? Não é saudável. É vicioso” – carregando no sotaque francófano misturado com flamengo. Frequentara por dois anos o curso de Filosofia da Universidade Livre de Bruxelas, na época em que servia ao exército, e desde então era um leitor praticante da área. Aficcionado por Nietzsche, já lera toda sua obra, no original, em Alemão.
Sua vida, porém, não foi um glamour. Fora expulso do exército, sob acusações de subversão, na época em que muitas ditaduras se espalhavam pela América Latina e aqui servira para dar sustentação àqueles regimes. História da qual eu pouco podia compreender, já que neste assunto sua linguagem se enchia de detalhes e dados técnicos. Consigo somente descrever isso, que ele havia sido expulso do exército belga, por subversão e que isso tinha alguma relação com os regimes ditatoriais presentes aqui na América Latina durantes as décadas de 60 e 70.
Desde então, desde os 23 anos de idade, sua vida se organizou bastante e resolveu cair no mundo. Viajou para os cinco continentes e conheceu tudo o que é coisa absurda. Comeu a apreciou insetos os mais diversos da culinária tailandesa, sabendo apreciar este alimento que sempre julgou divino e pouco aproveitado, devido a seu alto valor nutricional e como dieta ecológica. Namorou e amou perdidamente uma prostituta de Bankoc, da qual contraiu gonorreia. Praticou boxe tailandês, e entrou no rigue algumas vezes, por dinheiro, principalmente, apanhando muito em algumas lutas e conseguindo levar grana pra casa em outras; inclusive deixando o oponente ganhar em algumas, para faturar nas apostas, quando era tido como favorito. Ficou 7 dias sem comer na Índia, em um ritual de jejum, com orgias e não entendi mais o quê. Fumou ópio no Paquistão. Fez michê em Amsterdã (sim, ele era bissexual), sendo companhia de luxo de alguns diplomatas (aí pegava o dinheiro e torrava tudo em Bangok, com as maravilhosas tailandesas - como amou aquelas mulheres...). E outras diversas histórias absurdas das quais não me lembro agora.
Isso em cerca de quatro anos de andanças, até retornar ao Brasil e aqui voltar a se perder, só que agora sem dinheiro algum. Viu-se na miséria e não muito longe de sair pedindo pelas ruas. Até que reencontrou um amigo de adolescência, o qual estava a “desbravar” o norte do país, com agropecuária. E isso ainda no final da década de 70 e início dos anos 80, se é que compreendi bem esse cálculo meio conturbado de seus anos de vida.
Esse amigo lhe propõe trabalho digno e que ele nunca mais voltaria a ficar com a vida desorganizada. Recuperaria sua autoestima, sua honra e sua disciplina, marcas que sempre carregou durante toda sua existência e que agora tinham toda a oportunidade de recuperar seu vigor. Devido à vida no campo, estaria novamente em contato com a natureza, podendo assim levar uma vida mais serena e saudável. Topou a empreitada e partiu para a aventura de ajudar seu amigo, dono do capital, a desbravar os rincões de um Brasil desconhecido e selvagem, mas que esperava pelos “pioneiros do desenvolvimento”.
Assim, trabalhou alguns anos nessas precárias propriedades agrícolas, principalmente pelos sertões insólitos e inóspitos da floresta amazônica. Trabalhava principalmente como supervisor das equipes de segurança nessas fazendas, devido à sua experiência militar.
“Contraí tantas malárias que perdi a conta. Fora as picadas de cobra. E picada de cobra é assim: na primeira vez você acha que vai morrer, depois vai se acostumando.” (...) “Mas não posso reclamar dessa vida não. Fiz de tudo, por tudo o que é banda”.
“E não se arrepende de nada, seu Renoir?”, indaguei.
“Nada, Adriano. Nada...”, olhando-me profundamente com seus velhos e cansados olhos azuis.
Tempos depois, porém, voltava a essa questão, da culpa:
“Por que me sentiria culpado por alguma coisa de meu passado? Todos somos vítimas da existência, todos. Ninguém pediu pra nascer, ninguém escolheu isso. A existência foi nos enfiada goela abaixo. E culpa, pra ser sincero, acho que só aparece na perspectiva da punição. Se você acha que fez errado e que isso lhe trará enormes castigos ou prejuízos, que podem vir a saber, ou que você será dolorosamente punido por isso, aí a culpa aparece. Aí não tem como fugir. Mas quando tudo já passou, há tanto tempo, e que você compreende que fez o melhor que pode, não há muito espaço para culpa. Sei perdoar, aos outros e a mim mesmo.”
Dias depois:
“É, mas teve algumas coisas erradas que fiz nessa vida. Coisas das quais, confesso, me arrependo um pouco.”
“O que é, seu Jossen?”
“Um dia eu te conto...”
Em um certo dia:
“É, mas teve algumas coisas erradas que fiz nessa vida. Coisas das quais, confesso, me arrependo um pouco.”
“O que, seu Jossen? O senhor está com vergonha de me falar? São coisas sexuais? Com tantas histórias, se arrepender do que?”
Não entendi, pareceu-me que de repente, agora, ele estava com vergonha de tudo o que havia feito e que eu já sabia a maior parte. “Não é possível, ele, por senilidade, deve ter esquecido que me contou os fatos mais bizarros concebíveis”, pensei.
“O que, seu Jossen?”
“Matar pessoas”, respondeu, mantendo seu tom sereno de sempre.
“Na primeira vez é igual picada de cobra, você pensa que vai morrer. Depois você acostuma.”