Monday, August 29, 2011

“É preciso ter fé”?



Para o senso comum cristão é quase uma norma afirmar que sem fé é impossível viver. A fé, contudo, não é uma orientação religiosa ou espiritual universal. Há religiões em que ela inexiste e deve até mesmo ser evitada. Este é, por exemplo, o caso do budismo. Para esta tradição, em boa medida, não há a prática ou o estímulo à fé. E o mesmo vale para Deus. Não há culto ou devoção a nenhuma espécie de Deus. O budismo é, portanto, uma religião sem Deus e sem fé.

E se pensarmos então no conceito de desapego, caro a esta tradição, aí a fé perde ainda mais terreno. Trata-se de não lamentar o passado e não esperar nada do futuro. Ou seja, trata-se mesmo de não ter fé, de evitá-la. Nesta perspectiva, ela é considerada um mal a ser evitado. Ter fé é esperar, desejar algo que não depende de nós. Isso é o apego, o desejo tomando conta, e é exatamente o que os budistas constantemente meditam para evitar.

Mas o que é a fé? Comte-Sponville (2003, p.241-242), em seu “Dicionário Filosófico”, pode ajudar:

 “Fé é crença sem prova, como toda crença, mas que dispensa vantajosamente, por vontade, confiança ou graça. Vantagem equívoca, se não suspeita. É se crer, se fiar ou se submeter. Toda fé peca por suficiência ou por insuficiência. (...)

No sentido mais corriqueiro, a palavra designa uma crença religiosa e tudo que a ela se assemelha. É crer numa verdade que seria um valor, num valor que seria uma verdade. (...)
A fé também é voltada para o futuro. É como uma utopia metafísica: a esperança inventa um objeto para si, o qual a transforma em verdade. Trata-se de crer, como dizia Kant, que “algo é... já que algo deve acontecer”. Essa mentira, em sua sinceridade, é a própria religião.

A fé nutre-se tão somente da ignorância de seu objeto. “Tive pois de pôr de lado o saber”, reconhece Kant ainda, “a fim de obter algum lugar para a fé”. Os homens de saber, nos últimos vinte e cinco séculos, têm feito o contrário.”

É a conjunção absoluta do valor (do que é desejável, do que se deseja) com o que existe. É erigir valores, desejos, em verdades. “Ter fé no amor não é apenas amá-lo, mas fazer dele um absoluto, que existiria independentemente de nossos amores muitíssimos relativos”.

Para Kant é uma crença suficiente subjetivamente e insuficiente objetivamente. Segundo Comte-Sponville é suficiente para "os sujeitos que se contentam com sua subjetividade. Para os outros, a dúvida a acompanha e salva".



Referências


Comte-Sponville, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

__________________ (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.




Podcast com comentários:



Saturday, August 20, 2011

SOMOS INQUILINOS DO ALÉM




(Crônica selecionada para o 1º Prêmio Escriba de Crônicas)
Foi ainda criança quando li uma citação de Machado de Assis, mais ou menos assim: “Pronto, está morto. Agora podemos elogiá-lo”. De fato, que ironia, basta morrer para uma pessoa se transformar em alguém melhor. A morte é um momento de aperfeiçoamento pessoal do morto. Defeitos são varridos para debaixo do tapete da memória e do morto passa somente a brotar nobreza.
Certa vez, um amigo, psicoterapeuta, disse que em determinada sessão baixou lá um espírito. Relatou ter sido um momento de difícil manejo e que teve de conversar muito com esse morto mal resolvido. É, mal resolvido, assim também podemos denominar os fantasmas, as almas penadas: mortos que precisam urgentemente de terapia. Pois são mortos que não se enxergam como mortos, como são (ou como não são?). É o sujeito que morreu e não sabe. O pior deve ser o dia em que cai na real. Imagine: “Nossa, eu morri. Como não pude perceber, esse tempo todo. Tantos sinais, tanta gente tentando me avisar...”, deve sentir-se atavicamente traído pelo destino, pelo além, uma traição da própria eternidade. Aliás, a morte é, por definição, uma traição da vida. Com a morte, a vida é passada para trás.
E fantasma é igual chifrudo, é sempre o último a saber de sua própria condição. Nossa, deve ser um baque emocional. Deve ser de matar, hein.
No final de sua estória meu amigo perguntou: “Escuta, morto paga sessão? Tem como eu cobrar dele? Sim, pois a sessão não foi do vivo. Ele ficou o tempo todo tomado pelo morto.”
Respondi assim: “Nós é que vivemos pagando para os mortos. Ninguém questiona a autoridade de um morto. Eles mandam. Nós temos muito temor aos mortos; respeito. Ninguém brinca com gente morta. Nós é que vivemos pagando coisas para eles. Aqui se faz e aqui se paga? É, mas muita gente dá o calote. Aliás, acho inclusive que os mortos cobram aluguel da gente. Não estamos aqui nessa vida de favor? Esse corpo não é um favor? Um empréstimo, como dizem muitas religiões? Somos inquilinos do além.”
A vida fica bem menos solitária e o mundo bem mais povoado quando pensamos que os mortos estão sempre entre nós. Sendo o morto absolutamente bonzinho, não havendo dúvidas quanto às suas boas intenções, estaremos seguros de constante boa companhia e proteção. Agora, se associarmos a isso a teoria de que entre nós estão predominantemente os mal resolvidos, aí a coisa fica mais apavorante. Pois uma pessoa mal resolvida dificilmente é uma boa companhia. Mesmo querendo ajudar, acaba atrapalhando. Pois sendo mal resolvida, acha que quer uma coisa quando na verdade quer outra. Não sabe o que quer e quando faz as coisas, faz atravessado: desconta raiva em inocentes; superprotege ou “ama” demais para recalcar ódio ou rejeição; se vinga de Fulano simplesmente porque esse se parece com Beltrano, sem nem mesmo saber que odiava ou desejava vingar-se do segundo. O mal resolvido é isso. Agride sem saber, indiretamente, de repente. Ou agride quando no fundo desejava amar e não pode. É a maldade sem motivo ou o amor que mata, o “amor” que aparece para encobrir talvez uma censurável rejeição ou mesmo o ódio.
E se continuarmos na trilha desta teoria, a de que os espíritos entre nós geralmente são os mal resolvidos, aí a coisa fica preta. É, pelo que me lembre, dizem que os bem resolvidos vão logo para o firmamento, para algum lugar, para um destino mais certo. Não ficam perambulando por aqui, partem logo para outra. Então quer dizer que o além é feito de muito sonho e temor. Porque é bom sonhar com o além ou um terror imaginar o que pode estar acontecendo às nossas costas, por meio da obra de nossas más companhias, as almas penadas. É, de fato, a vida não é um lugar seguro, nem mesmo para o que não se relaciona com ela. Viver é ser, por excelência, frágil. E o além dos vivos é, por definição, mal resolvido.

Friday, August 12, 2011

A simplicidade e suas virtudes





Que ninguém se engane, só se consegue
 a simplicidade através de muito trabalho.

Clarice Lispector



Antes de tudo, vamos definir os conceitos. Simplicidade não é a mesma coisa que simploriedade. Não se trata de simplificar o que quer seja, distorcendo os fatos, a realidade. Não se trata de adotar uma visão tosca, pouco refletida ou crítica. Diz respeito a conseguir compreender, e bem, sem se perder em nossas próprias firulas cognitivas, narcisistas ou obscuras. 


Comte-Sponville, em seu “Pequeno tratado das grandes virtudes”, elenca 18 virtudes. Umas delas é a simplicidade, pela qual tenho uma predileção especial. Sempre, em minha vida, admirei o simples derrotando o complexo, o complicado, o obscuro e tudo aquilo que é cheio de enredamentos, rodeios e efeitos exagerados, os quais muito geralmente vem acompanhados de uma tentativa desesperada de demonstrar força, poder.

Não quero com isso jogar a existência real de complexidades no lixo. Comecemos então com Goethe:

“Tudo é mais simples do que podemos imaginar e, ao mesmo tempo, mais intricado do que poderíamos conceber” (Goethe, 1930, apud Comte-Sponville, 1995, p. 164).

A complexidade existe, mas não façamos dela o mote de um relativismo tolo que pretende abolir toda e qualquer possibilidade de conhecimento válido. Não façamos dela a bandeira de quem pretende igualar todas as formas de conhecimento ou o ardil de quem precisa rebaixar seu interlocutor com invocações de um saber inacessível aos não-iniciados.

Porém, a simplicidade que sempre admirei não diz respeito ao real, às coisas. Admiro pessoas capazes de demonstrá-la, desmontando quem fazia malabarismos para subjugar quem mora na credulidade. O que me agrada na simplicidade é seu amor pela verdade, sua tranquilidade para desfazer rapidamente o equívoco de quem gosta de complicar para poder dominar. É interessante a sugestão de Nietzsche: há quem turve as águas para fazê-las parecer profundas. Enfim, é um joguinho raso e sujo, e recheado de aparências enganadoras.

A tradição Zen também detecta rapidamente esses tipinhos e os bota logo pra correr. Se começar a complicar, a embromar, vem logo uma varada nas costas ou uma bofetada. Para o analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, é o joelhaço. Se o sujeito começa a se perder em abstrações sem rumo, em inutilidades espirituais camufladas de ridícula seriedade, o analista de Bagé lhe mete um joelhaço na boca do estômago e o bichinho volta correndo, tinindo, para a realidade. São várias as passagens no livro do Veríssimo em que isso ocorre; e são hilárias, sapientes até onde se rói osso da realidade mais crua e despida de frescuras pseudointelectuais.

Uma das grandes virtudes da simplicidade, na minha compreensão, é sua capacidade de resolução e de tradução da beleza da razão em sua pureza: tornar o complexo simples e não o contrário. Não somente desbanca embromadores, como resolve a situação dada. Vai lá e faz. Mata logo a estória, sem enrolação. Sem rococó charlatão. Chega logo na verdade do osso da coisa.

Não posso deixar de citar alguns trechos preciosos do ensaio de Comte-Sponville (1995, p. 163-171):

“O simples vive como respira, sem maiores esforços nem glória, sem maiores efeitos nem vergonha. A simplicidade não é uma virtude que se some à existência. É a própria existência, enquanto nada a ela se soma. Por isso é a mais leve das virtudes, a mais transparente e a mais rara. É o contrário da literatura: é a vida sem frases e sem mentiras, sem exagero, sem grandiloquência. É a vida insignificante, a verdadeira vida” (...)

Essa passagem me lembrou de um fato ocorrido com Drummond. Sua poesia, a qual contém os versos “No meio do caminho havia uma pedra/ Havia uma pedra no meio do caminho”, caiu num exame de vestibular, para ser interpretada, para que os candidatos refletissem sobre o que significavam esses versos. Houve até correções pela televisão, com divagações e mais divagações. Quando, por fim, resolveram entrevistar o próprio Drummond e ele respondeu mais ou menos assim: “Não, tinha uma pedra lá no caminho e eu chutei. Foi isso”. Não que fosse somente isso. Mas Drummond não perdeu a piada: como um mestre Zen, deu uma bofetada em todo mundo e saiu rindo. E isso também foi poético, violentamente poético.

Ou mesmo uma estória que contam, sobre a vinda de Albert Einstein ao Brasil. Em companhia dele estava Austregésilo de Athayde. Este tinha um caderno e anotava sem parar. A conversa teria se desenrolado mais ou menos assim: “O que você tanto escreve nesse caderno?”, indagou Einstein. “São minhas ideias. Você não tem também um caderno ou bloco de notas para registrar as suas?”. “Não. Só tive uma”.

Continuo e finalizo com Comte-Sponville:

“O que há de mais complicado do que uma rosa, para quem a quer compreender? O que há de mais simples, para quem não quer nada? Complexidade do pensamento: simplicidade do olhar. "Tudo é mais simples do que podemos imaginar e, ao mesmo tempo, mais intrincado do que poderíamos conceber", dizia Goethe. Complexidade das causas: simplicidade da presença. Complexidade do real: simplicidade do ser. "O contrário do ser não é o nada", escreve Clément Rosset," mas o duplo ". O contrário do simples não é o complexo, mas o falso”. (...)

“A simplicidade constitui, ao contrário, o "antídoto da reflexividade" e da inteligência, que evita que estas se envaideçam, se percam em si e com isso percam o real, se deem demasiada importância, dissimulem, façam enfim obstáculo àquilo mesmo que pretendem revelar ou desvelar. A simplicidade aprende a se desprender, ou antes, ela é esse desprendimento de tudo e de si mesmo.” (...)

“É a razão, quando ela não se engana a seu próprio respeito: razão lúcida, razão encarnada, razão mínima, se quisermos, mas que é a condição de todas. Entre duas demonstrações, entre duas hipóteses, entre duas teorias, os cientistas costumam privilegiar a mais simples: é apostar na simplicidade do real, mais do que na força de nosso espírito. Essa escolha, que não tem como ser provada, é entretanto de bom senso . Aconteceu-me muitas vezes lamentar que os filósofos, sobretudo os filósofos contemporâneos, façam ordinariamente a escolha inversa, preferindo o mais complicado, o mais obscuro , o mais contorto… Isso os protege contra qualquer refutação e torna suas teorias tão inverossímeis quanto enfadonhas. Complicação não do real , mas do pensamento : má complicação. Mais vale "uma verdade simples e ingênua", como dizia Montaigne, decerto proporcional à complexidade do real, quando necessário, mas sem lhe acrescentar os enredamentos de nosso espírito nem confundi-la com estas. A inteligência é a arte de reduzir o mais complexo ao mais simples, não o inverso.” (...)

“Toda geração tem seus sofistas, seus intrujões, seus preciosos ridículos, seus pretensiosos. Descartes, contra os de seu tempo, soube dizer o essencial, que também vale contra os do nosso: " Sua maneira de filosofar é muito cômoda, para aqueles que só têm espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem permite-lhes que falem de todas as coisas tão ousadamente como se delas soubessem e que sustentem tudo o que dizem contra os mais sutis e mais hábeis, sem que se tenha meios de convencê-los." A obscuridade protege. A complexidade protege. A isso Descartes opõe os princípios " muito simples e muito evidentes " que utiliza, os quais tornam sua filosofia compreensível para todos e discutível por todos . Não pensamos para nos proteger . A simplicidade também é uma virtude intelectual.” (...)

"Querendo ser simples", escreve Fénelon, "nos afastaríamos da simplicidade ." Trata-se de não afetar nada, nem mesmo simplicidade. Mais vale ser simplesmente egoísta do que afetar generosidade. Mais vale ser simplesmente volúvel do que afetar fidelidade. Não, mais uma vez, que a simplicidade se reduza à sinceridade, à ausência de hipocrisia ou de mentira. Ela é antes a ausência de cálculo, de artifícios, de composição. Mais vale uma simples mentira do que uma sinceridade calculada. "Essas pessoas são sinceras", prossegue Fénelon, "mas não são simples; não se sentem à vontade com os outros, e os outros não se sentem à vontade com elas; não encontramos nelas nada de desembaraçado, nada de livre, nada de ingênuo, nada de natural; preferiríamos pessoas menos regulares e mais imperfeitas, que fossem menos compostas. Eis o gosto dos homens, e o de Deus é o mesmo: ele quer almas que não se ocupem de si mesmas, como que sempre ao espelho para se comporem." A simplicidade é espontaneidade, coincidência imediata consigo mesmo (inclusive naquilo em nós que ignoramos), improvisação alegre, desinteresse, desprendimento, desprezo de provar, de prevalecer, de parecer…” (...)

“O mundo é simples porque é a única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa ou o silêncio." (...)

“Sabedoria de poeta : "Vamos aqui e ali, à procura de uma alegria por toda a parte em migalhas, e o saltitar do pardal é nossa única possibilidade de saborear Deus espalhado no chão." Tudo é simples para Deus; tudo é divino para os simples.” (...)
“Nada tem a provar , pois não quer parecer nada. Nada tem a buscar, pois tudo está ali . Há coisa mais simples que a simplicidade ? Há coisa mais leve? É a virtude dos sábios, e a sabedoria dos santos.”