Saturday, August 20, 2011

SOMOS INQUILINOS DO ALÉM




(Crônica selecionada para o 1º Prêmio Escriba de Crônicas)
Foi ainda criança quando li uma citação de Machado de Assis, mais ou menos assim: “Pronto, está morto. Agora podemos elogiá-lo”. De fato, que ironia, basta morrer para uma pessoa se transformar em alguém melhor. A morte é um momento de aperfeiçoamento pessoal do morto. Defeitos são varridos para debaixo do tapete da memória e do morto passa somente a brotar nobreza.
Certa vez, um amigo, psicoterapeuta, disse que em determinada sessão baixou lá um espírito. Relatou ter sido um momento de difícil manejo e que teve de conversar muito com esse morto mal resolvido. É, mal resolvido, assim também podemos denominar os fantasmas, as almas penadas: mortos que precisam urgentemente de terapia. Pois são mortos que não se enxergam como mortos, como são (ou como não são?). É o sujeito que morreu e não sabe. O pior deve ser o dia em que cai na real. Imagine: “Nossa, eu morri. Como não pude perceber, esse tempo todo. Tantos sinais, tanta gente tentando me avisar...”, deve sentir-se atavicamente traído pelo destino, pelo além, uma traição da própria eternidade. Aliás, a morte é, por definição, uma traição da vida. Com a morte, a vida é passada para trás.
E fantasma é igual chifrudo, é sempre o último a saber de sua própria condição. Nossa, deve ser um baque emocional. Deve ser de matar, hein.
No final de sua estória meu amigo perguntou: “Escuta, morto paga sessão? Tem como eu cobrar dele? Sim, pois a sessão não foi do vivo. Ele ficou o tempo todo tomado pelo morto.”
Respondi assim: “Nós é que vivemos pagando para os mortos. Ninguém questiona a autoridade de um morto. Eles mandam. Nós temos muito temor aos mortos; respeito. Ninguém brinca com gente morta. Nós é que vivemos pagando coisas para eles. Aqui se faz e aqui se paga? É, mas muita gente dá o calote. Aliás, acho inclusive que os mortos cobram aluguel da gente. Não estamos aqui nessa vida de favor? Esse corpo não é um favor? Um empréstimo, como dizem muitas religiões? Somos inquilinos do além.”
A vida fica bem menos solitária e o mundo bem mais povoado quando pensamos que os mortos estão sempre entre nós. Sendo o morto absolutamente bonzinho, não havendo dúvidas quanto às suas boas intenções, estaremos seguros de constante boa companhia e proteção. Agora, se associarmos a isso a teoria de que entre nós estão predominantemente os mal resolvidos, aí a coisa fica mais apavorante. Pois uma pessoa mal resolvida dificilmente é uma boa companhia. Mesmo querendo ajudar, acaba atrapalhando. Pois sendo mal resolvida, acha que quer uma coisa quando na verdade quer outra. Não sabe o que quer e quando faz as coisas, faz atravessado: desconta raiva em inocentes; superprotege ou “ama” demais para recalcar ódio ou rejeição; se vinga de Fulano simplesmente porque esse se parece com Beltrano, sem nem mesmo saber que odiava ou desejava vingar-se do segundo. O mal resolvido é isso. Agride sem saber, indiretamente, de repente. Ou agride quando no fundo desejava amar e não pode. É a maldade sem motivo ou o amor que mata, o “amor” que aparece para encobrir talvez uma censurável rejeição ou mesmo o ódio.
E se continuarmos na trilha desta teoria, a de que os espíritos entre nós geralmente são os mal resolvidos, aí a coisa fica preta. É, pelo que me lembre, dizem que os bem resolvidos vão logo para o firmamento, para algum lugar, para um destino mais certo. Não ficam perambulando por aqui, partem logo para outra. Então quer dizer que o além é feito de muito sonho e temor. Porque é bom sonhar com o além ou um terror imaginar o que pode estar acontecendo às nossas costas, por meio da obra de nossas más companhias, as almas penadas. É, de fato, a vida não é um lugar seguro, nem mesmo para o que não se relaciona com ela. Viver é ser, por excelência, frágil. E o além dos vivos é, por definição, mal resolvido.

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