Tuesday, April 26, 2005

Papa Memorex

O papa que acaba de falecer ficou quase trinta anos no pontificado. Talvez deve se lembrar da última eleição para papa somente quem já esteja perto dos quarenta anos e quem tenha mais idade que isso. Eu, por exemplo, aos cinco ou seis anos de idade, mal conseguia compreender qualquer coisa que se dizia no noticiário. “Esse povo fala rápido e complicado demais”, eu pensava. Sim, tinha um velhinho simpático lá naquela enorme janela, acenando para o povo. Aliás, João Paulo II era muito simpático. Que rostinho mais angelical, hein. Não me surpreende que tanta gente parecia confundi-lo com uma espécie de Papai Noel.

Chamou-me muito a atenção o tamanho do funeral desse homem. Talvez nenhuma autoridade internacional tenha porte suficiente para tanto prestígio em seu velório. Aquele monte de cerimônias, coisa que remonta à séculos e séculos atrás. O mundo ocidental voltou-se para a Idade Média por alguns dias. Estávamos todos submersos naqueles rituais antiquísimos. Foi um “revival”do poder total da Igreja Católica mais do que deliciado por todos os seus devotos. Apesar de ser a ocasião da tristíssima morte de um papa, foi o momento da Igreja mostrar como se fazem as coisas, ou seja, como vêm sendo feitas há séculos. É o que a tradição diz: “É feito assim porque sempre foi assim” ou “Assim sempre se faz porque Deus fez assim”.

No mundo atual, tão laico, dessacralizado e desritualizado, rugiam, no miolo dos noticiários, os rituais católicos da mais fina estampa para enterrar um papa. Abriu-se um portal do tempo com passagem para a Idade Média e o mundo católico imperou solene para os olhares de todo o planeta. A Igreja Católica é hoje um mundo à parte dentro do Mundo, muito maior, o qual devora sua memória e seus fiéis a cada dia.

Senti que toda esta colossal projeção da morte do papa tinha todos os sinais do que isto de fato representa: o sepultamento da Igreja Católica. Todos os rituais relativos ao funeral somente me faziam lembrar que aquilo eram cenas de algo já morto. Como se o mundo todo deixasse o Vaticano apresentar seu número naquele momento. Agora é a hora do Vaticano, deixem eles tocar suas musiquinhas e fazer seus ritos. Isso tudo é muito bonito porque é uma aula de história: “Nossa, olha só estas roupas, estão sendo usadas há séculos! Isso sempre foi feito assim e assado. Que lindo, como algo pode ser guardado e respeitado por tanto tempo? Quanto respeito pelo passado, quanta memória embutida em cada gesto. E o quanto cada gesto é tão caro, tão precioso”. Prestemos nossas reverências mais elevadas a quem lhes cabe: os mortos, à morte da Igreja Católica. E é exatamente assim que ela acredita: na sua morte será mais respeitada do que na sua vida. Se toda religião precisa da morte para edificar a sua força, porque não ela mesma morrer para poder estabelecer eternamente o seu poder?

Mesmo o novo papa reconhece publicamente que a Igreja Católica é um barco que está afundando. E ele, conservador como é, vai ficar rezando em latim até o último suspiro, até que o oceano da história engula de vez o catolicismo: é mais importante a tradição e o ritual do que a vida.

E eu pouco vi na minha vida um funeral tão envolvente e excitante. Gente, que delícia ficar em frente à televisão acompanhando cada passo da despedida do papa. Os rituais católicos às vezes são tão monótonos quanto lindos. E do pouco que vi, a beleza superou a monotonia. Mas mais que isso, os tons todos eram os de que morria um santo. E enterrado com muitas cores. Sua roupa colorida, com tons vermelhos, fora do caixão, seu corpo todo à mostra e ainda segurando um cetro majestoso. Não parecia morto, parecia dormir serenamente. Pois o objetivo é esse: reinar após a morte. Aliás, reinar ainda mais do que em vida. A morte produz seus louros para a memória.

Mas fiquei muitíssimo frustrado com a eleição de um papa conservador. Será que o cara vai ficar implicando com gay e o uso da camisinha com uma África se afundando em Aids e miséria? E uma colega me perguntou o porquê de papas adotarem um nome de guerra, ôpa, ou melhor, um nome artístico, não, não... enfim um outro nome. É, de fato, papa não pode falar em nome próprio. Nada que é medieval ou tradicional pode falar em nome próprio. Deve sempre responder pelos outros. Estará sempre falando em nome de uma coletividade, de uma história. Ele deve encarnar o personagem, a entidade papa. Tal como um ator, deve sacrificar o si mesmo, seu próprio eu, em nome de um personagem, de uma entidade. Por isso que ser papa dá tanto medo. Talvez o pontificado seja o sacrifício mais antigo, modelar e tradicional de nosso tempo.

Friday, April 01, 2005

Menininho no ônibus

O ônibus pára bruscamente. Em frente ao pronto-socorro, a porta se abre para o escuro da rua. Entra uma mulher e, logo à frente, meio atropelado pela pressa da mãe, pela pressa do mundo, um garotinho de 4 ou 5 anos de idade. O ônibus balança muito e ele se segura firme, como quem fosse lançado em alto-mar, caso se distraísse um pouquinho sequer. O balanço do ônibus sabotava o sossego daquela criança. Mas ele era muito pequeno para remoer sobre perseguições do destino.

Seu rostinho se vira em minha direção. Há uma lágrima presa, que escorreu do canto de seu olho. E o pronto-socorro ao fundo. Ele não fala nada: um filhote mudo, de olhos ao mesmo tempo assustados e tristes. E uma lágrima: havia chorado.

Tinha a expressão tão perdida, tão “não sei o que estou fazendo aqui”, tão “vamos pra casa”, ou tão “eu não quero”, “isso dói”, com choro de terror, pânico. Aquele seu olhar pós-tortura morava em lugar nenhum. Todo o seu corpinho era uma expressão de derrota para todo o resto do mundo, muito maior do que ele. E uma derrota sem lamento. O terror já havia passado. Agora restava aquele corpinho pequeno e sem forças, todas consumidas na luta mortal que travara contra uma avalanche de invasões ao seu pequeno recanto de paz.

Eis que senta-se ao seu lado uma outra mulher, com uma criança bem menor, de 1 ano e pouco. As duas mães começam a conversar e deixam as duas crianças interagindo. Sem que qualquer uma delas perceba, o maiorzinho desfere um soco forte na cabeça do menor. O soco pega no rosto e espreme a cabeça do bebê no ferro do banco do ônibus. Como as duas mulheres não viram o que ocorreu, pensaram que havia sido o balanço do ônibus. Não houve mais uma agressão tão bruta. Porém durante toda a viagem, nosso garotinho da lágrima no canto do olho, transforma-se num capeta. Passa a fazer inúmeras caretas para o bebê, parando somente quando ele fazia cara de choro. Depois começa a cutucar os passageiros, mostrando a língua, e a arremessar tocos de cigarro na cabeça das pessoas. Vários passageiros simplesmente estavam com vontade de esganá-lo, de descer a mão na bunda daquela criança mal-criada e infernal.

Mas eis que de repente o ônibus dá uma boa freada, e o menininho voa pro chão. Não é capaz de segurar o choro. Chora alto e sofrido. Não havia machucado, chorava de susto. A mãe o pega no colo e tenta consolá-lo, assim como a mãe da criança que havia sido espancada por ele. Parecia que a desgraça do mundo desabara sobre aquele pobre e indefeso ser. O motorista pede desculpas, e olha com carinho para aquele rostinho inocente e meigo, prometendo-lhe um pirulito no final da viagem. O menininho então volta a sorrir.