Para o senso comum cristão é quase uma norma afirmar que sem fé é impossível viver. A fé, contudo, não é uma orientação religiosa ou espiritual universal. Há religiões em que ela inexiste e deve até mesmo ser evitada. Este é, por exemplo, o caso do budismo. Para esta tradição, em boa medida, não há a prática ou o estímulo à fé. E o mesmo vale para Deus. Não há culto ou devoção a nenhuma espécie de Deus. O budismo é, portanto, uma religião sem Deus e sem fé.
E se pensarmos então no conceito de desapego, caro a esta tradição, aí a fé perde ainda mais terreno. Trata-se de não lamentar o passado e não esperar nada do futuro. Ou seja, trata-se mesmo de não ter fé, de evitá-la. Nesta perspectiva, ela é considerada um mal a ser evitado. Ter fé é esperar, desejar algo que não depende de nós. Isso é o apego, o desejo tomando conta, e é exatamente o que os budistas constantemente meditam para evitar.
Mas o que é a fé? Comte-Sponville (2003, p.241-242), em seu “Dicionário Filosófico”, pode ajudar:
“Fé é crença sem prova, como toda crença, mas que dispensa vantajosamente, por vontade, confiança ou graça. Vantagem equívoca, se não suspeita. É se crer, se fiar ou se submeter. Toda fé peca por suficiência ou por insuficiência. (...)
No sentido mais corriqueiro, a palavra designa uma crença religiosa e tudo que a ela se assemelha. É crer numa verdade que seria um valor, num valor que seria uma verdade. (...)
A fé também é voltada para o futuro. É como uma utopia metafísica: a esperança inventa um objeto para si, o qual a transforma em verdade. Trata-se de crer, como dizia Kant, que “algo é... já que algo deve acontecer”. Essa mentira, em sua sinceridade, é a própria religião.
A fé nutre-se tão somente da ignorância de seu objeto. “Tive pois de pôr de lado o saber”, reconhece Kant ainda, “a fim de obter algum lugar para a fé”. Os homens de saber, nos últimos vinte e cinco séculos, têm feito o contrário.”
É a conjunção absoluta do valor (do que é desejável, do que se deseja) com o que existe. É erigir valores, desejos, em verdades. “Ter fé no amor não é apenas amá-lo, mas fazer dele um absoluto, que existiria independentemente de nossos amores muitíssimos relativos”.
Para Kant é uma crença suficiente subjetivamente e insuficiente objetivamente. Segundo Comte-Sponville é suficiente para "os sujeitos que se contentam com sua subjetividade. Para os outros, a dúvida a acompanha e salva".
Referências
Comte-Sponville, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.
__________________ (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.
1 comment:
Não consigo imaginar fé como apego.
A fé, como a 'vejo' e sinto, transcende...
Ah! Esses homens de pouca fé... :)
Beijos, Adriano.
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