Gato é um bicho misterioso e engraçado. Veio a esse mundo para confundir e desencontrar. É a Clarice Lispector dos animais de estimação.
Quando se pensa que está num canto, está no outro. Quando se imagina que ficará agressivo, nos despreza. Quando fazemos de tudo para sermos desprezados, percebem até mesmo uma pena caindo ao chão.
Os encontros humanos com esse pequeno felino são muitas vezes desencontrados. Quando o chamamos, não vem. E quando não queremos que venha, vem correndo. Quando tentamos não fazer barulho algum, e passar completamente desapercebidos, ele nos pega. E quando estamos totalmente relaxados, tropeçando e derrubando o mundo, ele nem se liga, não está nem aí, não acorda e nem nos dá atenção.
Um dia acordei de manhã, e vi que minha gatinha estava encostada na parede mas, como a luz do sol estava contra meus olhos, somente vi sua silhueta, e imaginei que ela estava ali, encostada na parede, olhando para mim, obviamente. Porque um predador jamais vira as costas para qualquer coisa que esteja se aproximando.
Cheguei perto. Ela estava completamente imóvel, como uma estátua, e parecia contemplar algo, ou em uma espécie de estado hipnótico, com os olhos abertos, a olhar para a própria parede, vazia, sem qualquer tipo de estímulo que chame a atenção de qualquer outro ser vivo.
O bichano entra num ambiente que nos contraria, em um lugar que não era para entrar. Aí esperneamos e gritamos, e ele ignora solenemente nosso chilique. Não se assusta com grito algum ou com ameaça alguma de violência. Mas baterá aterrorizado, em fuga, se somente dermos uma sopradinha suave em seu focinho.
E não adianta achar que esse bichinho irá se esquecer de explorar qualquer mínimo canto possível, e impossível, da casa. É um bicho absurdamente xereta. Quer cheirar tudo, e saber absolutamente de tudo o que está acontecendo em cada canto mínimo de um universo, que nunca nem pensamos em explorar antes de ter um gato.
E aí começam também meus próprios dramas pessoais e neuroses em relação a animais de estimação.
Fui criado a vida toda e condicionado a pensar que animais de estimação devem ser criados no quintal, e que jamais devem habitar o mesmo o ambiente interno que nós humanos.
Tive um único cachorro durante toda minha vida. Ele vivia no quintal, comia mais ou menos o que todo mundo na casa comia. Tinha passe livre para a rua, para sair e entrar quando quisesse. Passeava e namorava bastante, e corria obviamente diversos riscos. Mas tudo isso era concebido como algo que fazia parte da vida desses bichinhos naquele contexto de década de 80 e início da década de 90, em um bairro de periferia do interior de São Paulo.
Até o cocô e o xixi que meu cachorro fazia não era em casa. Nem víamos e nem sabíamos onde ele fazia xixi e cocô. Foi atropelado e teve fraturas, tomou facada de bandido, e também havia tomado tiros, porque conseguíamos apalpar o chumbinho, em formato diabolô, que ele tinha perto do pescoço.
Ele nem se atrevia a entrar em casa. Vivia no quintal, e a vida era muito separada, entre a vida de humanos e a vida de bicho. Desde quando éramos pequenos minha mãe sempre nos alertava, repetidamente, por inúmeras vezes, que os animais poderiam transmitir uma série de doenças e que, após tocá-los, deveríamos lavar as mãos.
Então Fred, nosso cãozinho, recebia muitos carinhos, e depois a gente lavava bem a mão.
Hoje, já há quase 2 meses, me vejo convivendo, em um apartamento pequeno, com uma gatinha preta, que foi por mim resgatada das ruas.
Parei o carro para atender o celular. Vi que um filhote de gato, pretinho, ao longe, me avistou e fixou o olhar em mim, sendo que eu estava dentro do carro. Essa gatinha, bem pequenina, com apenas um mês e meio de vida, foi capaz de me visualizar, bem de longe, e perceber que eu estava dentro de um carro parado, e vir até a minha direção, como se estivesse mesmo pedindo ajuda, e assim entrou debaixo do veículo.
Não tive escapatória. Fui pego por esse predador implacável. Seus dois olhos, amarelinhos, brilhavam na escuridão de seus pelos. Mas um deles parecia estar fora do lugar, como se o globo ocular tivesse sido arrancado de sua órbita.
Sou míope, e o entardecer já não permitia que eu conseguisse compreender muito bem o que havia nos olhos do bichinho. Eu tinha até receio de tentar entender claramente o que estava ocorrendo. Minha impressão é a de que ela estava mesmo com um dos olhos arrancados. Aquilo cortou meu coração, e só consegui pensar que a única coisa a ser feita era levá-la imediatamente a um veterinário, para ver o que era possível fazer em relação à sua vida.
Por sorte estava tudo tranquilo com a saúde dela, e o segundo passo era então tentar encontrar alguém que pudesse de fato ficar e conviver com esse bichinho. Porque eu não tinha, nenhum nunca tive planos de ter animais de estimação dentro de meu apartamento.
Não encontramos quem quisesse ficar com a gatinha. E assim o tempo foi passando, e minha filha foi se afeiçoando ao bichinho. O resultado é que agora esse animalzinho realmente habita o mesmo espaço que eu, que foi durante toda a vida condicionado a pensar que lugar de animal de estimação é no quintal.
E no começo o que mais me angustiava era essa gatinha descobrindo os cantos mais esquecidos e imundos da casa. Porque o problema é ela se sujar em algum canto desses, e levar a sujeira para o restante da casa inclusive para locais que não me sinto confortável em imaginar que estarão se sujando um pouco mais a partir disso, tais como o sofá, por exemplo.
E essas minhas neuroses só fazem com que eu me lembre de uma conversa um pouco engraçada que tive com a veterinária, logo nos primeiros dias em que a gatinha habitava nossa casa:
- Confesso que sou um pouco nojento, e tenho dificuldades para assimilar a convivência com um bichinho de estimação dentro de casa. Fico imaginando que ele acabou de fazer cocô, e logo em seguida senta no sofá.
- Ah, mas gatos são muito limpinhos. Eles se lambem o tempo todo, até ficarem bem limpinhos.
- E depois que ele faz cocô, ele lambe o quê? - perguntei, em um estilo um pouco mais socrático.
- Ele se lambe, e fica bem limpinho.
- Então ele lambe o cocô, e vai engolindo esse cocô, até ficar totalmente limpinho?
- É... - respondeu a veterinária, com um sorriso um pouco amarelo, e eu também.
E então, para amenizar um pouco essa minha angústia com alguns cantinhos sujos da casa, resolvi fazer uma faxina um pouco mais pesada.
Comecei pelo banheiro. Lavei, muito bem lavadinho, tudo o que eu podia. E quem é que acompanhou, atentamente, toda a faxina?
A gatinha.
Ficou o tempo todo sentadinha, com sua cabecinha se mexendo para lá e para cá, olhando tudo que eu fazia, sem se atrever a botar suas patinhas na água.
Eu fazia aquela faxina pesada, olhava para a gatinha, e somente ouvia internamente um novo esquema de organização para o universo, que me dizia assim: "os gatos são os animais mais limpos que existem!"
Ela devia na verdade estar olhando atentamente para mim para estudar quais eram aqueles métodos de limpeza que eu estava utilizando, que eram muito diferentes dos dela. E pensava, consigo mesma:
"Olha o quanto esse ser humano está despendendo de energia, e se perdendo, em um processo que pode ser na verdade muito mais rápido e simples. Basta lamber tudo e se lamber, seu trouxa. Pra quê que você tem cuspe?"
O banheiro ficou um brinco. Ficou completamente desinfetado. Dava até para lamber o chão. Estava tão limpo que, se fosse lambido, nada seria engolido.
E aos poucos vou engolindo, assimilando essa nova realidade, pequenina, fofinha, estranha e misteriosa, que hoje circula, todos os dias, por vários cantinhos de nossa casa.
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