Volta e meia vejo alguém dizer que não existe ateu quando o avião está caindo. Porque nessa hora as pessoas gritam "Meu Deus!", ou até mesmo oram para que o pior não aconteça.
Dizer uma coisa dessas talvez sirva como piada, para poder se descontrair um pouco. Porém, creio que a realidade seja um pouco mais complexa.
Primeiramente porque existem expressões que são na verdade automatismos, e que não podem ser tomadas como literais.
Quando alguém diz "você poderia me passar o sal?", não está perguntando para a outra pessoa se ela é capaz de passar o sal. Se a outra pessoa entender assim, irá somente responder "sim, posso", e não irá passar o sal para ela.
Se alguém grita para você "olha o cachorro!", você não vai somente ficar observando o cachorro. Você vai tentar se proteger.
Então se alguém diz "meu deus", "vai com deus", "pelo amor de deus" ou qualquer coisa parecida, isso não quer dizer necessariamente que a pessoa acredita em uma entidade sobrenatural, onisciente, onipresente, onipotente e criadora de tudo.
Porque acreditar não é definido somente por declarações ou pela utilização de expressões fixadas pelo uso comum.
Mas aí o crente insiste, e diz que a pessoa que, em um momento de desespero, começa a rezar, é alguém que na verdade acredita no deus cristão. E que se ela se declarou antes como ateia, isso que ocorreu antes não era verdade.
De fato. Não basta que uma pessoa declare no que ela acredita se ela não se comporta conforme o que declarou.
Não basta uma pessoa dizer a outra que a ama, se não cuida, não sente falta ou não expressa nenhum tipo de comportamento que esteja em conformidade com o que diz.
Não basta dizer que confia, mas não deixar que a outra pessoa tenha o mínimo de autonomia para fazer o que quer que seja sozinha.
Não basta dizer que acredita em alguma entidade sobrenatural, e que é necessário realizar com frequência rituais e orações de louvor a esta entidade, se não faz isso nunca ou quase nunca.
Assim como não faz muito sentido dizer que não acredita, mas morre de medo da suposta entidade na qual diz não acreditar.
E assim talvez seja importante retomar o conceito de agnosticismo, o qual resguarda para uma determinada crença um intervalo de confiança, sabendo que apesar de majoritariamente se crer em alguma coisa, há também margem para outras possibilidades. Ou então simplesmente não define no que exatamente acredita, porque não vê maior ou menor margem em qualquer um dos lados.
Então é agnóstico todo aquele que não tem convicção de sua crença. Acredita majoritariamente em um determinado aspecto e minoritariamente em outro. Ou então não sabe nem mesmo definir se existe uma crença majoritária. Acredita que ambas as possibilidades tem geralmente o mesmo valor.
Desse modo um agnóstico ambivalente seria aquele que teria como linha mestra somente a sua própria incoerência. Isso então fará com que uma pessoa assim se sinta livre para ser completamente incoerente em relação a determinados assuntos. Em um determinado contexto ela poderá se comportar como alguém que acredita piamente em algumas coisas e em outros poderá manifestar sua completa descrença.
Um agnóstico puro, ou ambivalente, então é alguém que segue à risca a própria etimologia da palavra agnose, que significa não-crença. É alguém que, em termos de entidades sobrenaturais, não acredita que elas existam e também não acredita que elas não existam.
Porém alguém que acredita que uma mesma coisa pode existir e pode não existir, é alguém que também pode tranquilamente se comportar tanto como se aquilo existisse como se aquilo não existisse.
Então para um agnóstico puro, ambivalente, tanto faz se aquilo existe ou deixa de existir, e ele vai, com muita tranquilidade, e até de modo divertido, navegar nessas possibilidades conforme o contexto.
E, a se observar pelo comportamento da maioria das pessoas, dá para se pensar que boa parte delas é muito mais agnóstica do que imagina.
Os que se dizem crentes muitas vezes não se comportam conforme aquilo que dizem acreditar, e o mesmo vale para os não-crentes.
Durante a maior parte do tempo pode ser que uma pessoa se comporte como se ela convictamente acreditasse ou não em alguma coisa. Mas pode ser que ocorra uma mudança em um determinado contexto.
Uma pessoa que se julga convicta pode ser menos convicta do que imaginava e, em um momento de desespero, pode apostar suas fichas em algo que sempre teve para si mesma como muito improvável.
Então alguém que sempre se comportou como um descrente pode, em um momento de desespero, apostar suas fichas em algo que talvez tenha uma pequena possibilidade de ajudá-la.
E talvez não seja muito honesto tentar definir uma pessoa a partir de como ela se comportou em um momento de desespero.
Por outro lado, vamos supor que faça sentido a alegação de que não existe ateu quando o avião está caindo.
Se isso faz sentido, logo todos nós acreditamos em uma entidade sobrenatural, onisciente, onipotente onipresente, criadora de tudo o que existe, e que é necessariamente Javé (Jeová), o deus do cristianismo?
Isso não faz o menor sentido quando pensamos em outras culturas, que não tem o cristianismo como base de crença.
Então afirmar que não existe ateu, quando o avião está caindo, talvez só faça algum sentido se estivermos falando genericamente de crenças em entidades sobrenaturais, e não necessariamente de crenças em algum deus específico.
E mesmo assim podemos continuar explorando essa possibilidade.
Vamos supor que de fato todas as pessoas tenham crenças sobrenaturais. O que faz alguém pensar que essas crenças estão no mesmo nível para todas as pessoas? O que faz alguém pensar que as crenças sobrenaturais são sempre majoritárias para absolutamente todas as pessoas? É simplesmente um episódio de desespero e descontrole emocional, no qual há completa perda de qualquer possibilidade de avaliação racional do que está acontecendo?
Isso quer dizer então que boa parte das pessoas somente acreditam em coisas sobrenaturais quando estão completamente desesperadas e perdidas? Qual é a validade de uma crença que somente se afirma a partir do desespero e do descontrole emocional de alguém?
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