Imagine a seguinte cena: você está com seu carro, na rodovia Anhanguera, chegando em São Paulo, capital, e está caindo uma tempestade torrencial. Naquelas várias faixas você olha para a direita, na faixa da direita, e vê um motoqueiro, numa moto 125 cilindradas, (ou seja, uma moto pequena), com roupa de chuva, capacete e um bagageiro no qual se encontra uma mala, nitidamente uma bagagem que contém as roupas desse motoqueiro.
Porém, há um detalhe: na garupa está uma criança de uns oito ou nove anos de idade, amarrada ao motoqueiro, com uma corda. Os dois estão equipados para chuva, com macacões de chuva, capacetes, tudo certinho... Mas o que se vê é um motoqueiro numa chuva torrencial, no meio do nada, numa estrada enorme, cheia de carros, indo devagarinho, no cantinho, para São Paulo, e esse motoqueiro já se deslocou, com essa criança, uns 300 km.
Esse motoqueiro era meu pai e essa criança era eu ou meu irmão mais novo, Cako. Todos os anos meu pai fazia essa viagem, essa aventura conosco, de Ribeirão Preto a São Paulo. E havia um revezamento entre nós, os filhos. Desse modo todos os três filhos fizeram essa viagem com ele. Eu acho que fiz essa viagem com 11 anos de idade, mas imagino que meu irmão mais novo tenha feito essa viagem com uns oito ou nove anos de idade, e lembro que na viagem que eu fiz com meu pai aconteceu exatamente isso aí: pegamos, no meio do caminho, quase chegando em São Paulo, uma chuva torrencial, e paramos somente para nos paramentarmos com os macacões de chuva.
Aí houve um momento em que meu pai resolveu me amarrar a ele, porque percebeu que eu estava caindo no sono, e que havia o risco de eu cair da moto. Como naquelas condições essa acabava se tornando uma viagem um pouco mais longa, com uma duração de mais ou menos 5 ou 6 horas, era muito propício que uma criança adormecesse. Então acho que esse recurso, de amarrar os filhos ao seu corpo, foi utilizado possivelmente com todos os três, em cada uma dessas viagens.
Hoje pela manhã me lembrei exatamente dessa cena, quando vi um motoqueiro passar por mim nas ruas, a caminho do trabalho.
E não teve jeito, eu caí no choro. Dois anos e meio após a sua morte esse talvez tenha sido o choro legítimo do vazio, da perda, de perceber que um pedaço grande da gente foi arrancado, em algum lugar; de que algo se foi e jamais retornará, de que a vida vai caminhando e que muita coisa vai se decompondo, se perdendo para sempre. De forma que no final das contas tudo amiúde se transforma em uma grande nuvem de esquecimento e um vazio a ecoar nos últimos instantes.
A vida de meu pai com seus filhos foi conflituosa, sofrida. Penso que talvez a interação menos sofrida tenha sido com meu irmão mais novo. Mas houve muitos conflitos comigo e com meu irmão mais velho. Isso sem falar nos conflitos que ele teve com nossa irmã, dois anos mais nova do que eu, a qual só viemos a descobrir que existia há pouco mais de 20 anos.
Se nós três, em muitos momentos padecemos de sua ausência, ela muito mais. Nós três ainda tivemos, em toda a primeira infância, e boa parte da adolescência, a presença dele dentro de casa, e ela jamais teve isso ou até mesmo algo próximo disso em relação a ele, porque nem mesmo o sobrenome dele ela herdou.
A partir de meus 12 anos de idade lidar com meu pai era lidar com alguém quê eu já não compreendia e que também não me compreendia. Com 20 anos de idade fui fazer terapia e consegui me reaproximar um pouco mais. E assim, nessa época, um dia me confessou:
- Eu me preocupava bastante com você, quando você era criança, porque eu pensava que você não ia dar conta de resistir à vida...
E sinto que muitas vezes a tentativa dele de fazer com que alguém acordasse, ou se motivasse mais para a vida, era muito geralmente uma tentativa muito rude, muito dura:
- Porra, vai ficar chorando pelos cantos? Acorda, porra!
Com 12 anos de idade eu sentia isso tudo como simplesmente abominável. Com 20 anos, depois de um pouco de terapia, comecei assimilar melhor, ao ponto de transformar essas palavras aparentemente rudes em algo verdadeiramente motivante, e até mesmo hilário, risível, de tal maneira que muitas vezes até sentia falta dele gritando assim comigo, para que de fato eu acordasse.
Mas aí chega um dia em que você sai de sua cidade, e isso somente colabora para que as distâncias aumentem, em todos os níveis, ao ponto de não saber mais precisamente o que está acontecendo com seus pais, de quais são precisamente os desafios pelos quais eles estão passando em seu dia a dia, em sua jornada para o envelhecimento e o fim mesmo de seus dias.
E meu pai foi isso: uma pessoa muito controversa, com o qual tive algumas aproximações memoráveis, e muitos estranhamentos, cuja lembrança, em minha infância, hoje me invadiu, como um rio caudaloso, em alguns poucos minutos em que eu estava a caminho do trabalho.
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