Alguns colegas psicólogos, engajados no que eles
acreditam que seja uma crítica fundamentada ao capitalismo, defendem que a
epidemia atual de depressão é um problema relativo à excessos e não em relação
à falta, e que o depressivo é uma pessoa que se rebelou contra esse sistema
baseado no lucro e na produtividade.
Olha, desculpem-me, mas colocar as coisas nesses
termos é extremamente simplista e não tem relação alguma com as evidências
científicas.
A epidemia atual de depressão pode ter relação com
diversos fenômenos, que provavelmente atuam das mais variadas formas. O
primeiro ponto é que houve, por parte da sociedade, nos últimos 40 anos, uma
apropriação maior do trabalho da psiquiatria e da indústria farmacêutica de
psicotrópicos.
Então primeiramente temos de avaliar que não existe
simplesmente um sujeito se rebelando contra isso. O que existe é um sistema que
pode muito bem também estar superdiagnosticando as pessoas. Então não
existiriam pessoas que estão se rebelando, mas sim sendo enquadradas em
categorias que antes não existiam ou, se existiam, não estavam sendo
valorizadas ou tomadas oficialmente como categorias de doenças.
Não é muito difícil de entender que esta hipótese é
algo a ser considerado, porque as pessoas iam menos a psiquiatras, e tinham
portanto menos diagnósticos de transtornos mentais. O que antes era muitas
vezes considerado tristeza, desânimo ou angústia, hoje é considerado depressão
ou algum transtorno similar.
A hipótese de que antes havia uma pressão muito
menor para a produtividade e para o alcance de uma série de ideais, inclusive
de beleza, pode sim ser levada em conta, e faz sentido. Mas transformar isso na
causa da depressão, e transformar o depressivo em alguém que está se rebelando,
como se isso pudesse depois servir de combustível para uma espécie de movimento
revolucionário, é deveras simplista.
Há uma variedade de situações que pode fazer com
que uma pessoa passe a exibir sintomas de depressão. Uma abordagem científica
possível é que essa variedade de situações pode ser classificada em alguns
conjuntos.
Existe a hipótese científica relacionada à perda,
de que os sintomas depressivos estariam fundamentalmente associados a alguma
perda, seja ela objetiva ou subjetiva. Porque existem pessoas que estão
deprimidas devido à perda de algum ente querido, perdas financeiras, ou até
mesmo à perda de algum ideal ou de uma rotina, a qual estavam adaptadas, e que
agora não estariam mais. Quebras de expectativas podem gerar sintomas
depressivos. Porque às vezes é pior cair de um sonho, do que cair do telhado e
quebrar a perna.
Enfim, quando estamos falando, por exemplo, de
perdas, podemos estar falando de uma infinidade de situações possíveis, que
podem gerar sintomas depressivos, e esta é uma hipótese que existe e está em
debate no meio científico.
Outras hipóteses científicas referentes a
genealogia de sintomas depressivos apontam para o aumento de estimulações
aversivas e/ou a diminuição da quantidade e/ou da densidade de gratificações as
quais alguém está sendo exposto.
Existem também as evidências relativas ao desamparo
aprendido. Imagine que você esteja na seguinte situação que, na sua
experiência, ou na sua percepção, tudo que você faz sempre resulta em um
contexto desagradável, aversivo ou punitivo.
Seria mais ou menos como na metáfora popular de que
se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come. A pessoa simplesmente se sente
sem saída. Porque no contexto em que se encontra parece que tudo o que faz
sempre produz o mesmo resultado, que é basicamente doloroso. Então ela
simplesmente deixa de fazer as coisas. Ela simplesmente não irá fazer mais
nada, porque o custo é muito menor. Faz muito mais sentido ficar parado, do que
ficar correndo atrás das coisas e obtendo sempre o mesmo resultado.
E isso obviamente não pode ser reduzido ao modelo
capitalista, porque existe uma infinidade de situações que podem produzir isso,
inclusive dentro de casa, numa relação doentia, excessivamente punitiva, entre
pais e filhos, por exemplo.
Creio que até mesmo a hipótese científica do
duplo-vínculo, para tentar dar conta um pouco de fenômenos psicóticos, pode ser
aqui vislumbrada como uma possibilidade, em algumas interações mais
específicas, para tratar da formulação de hipóteses referentes a alguns
sintomas depressivos. O duplo-vínculo diz respeito a situações nas quais são
emitidas mensagens de duplo sentido, fazendo com que a pessoa que sofre as
consequências disso não consiga entender qual seria o modo mais adequado de
como ela deveria se comportar.
O exemplo clássico, citado pelos propositores dessa
hipótese, é o da mãe que vai visitar o filho em um hospital psiquiátrico.
Quando ela chega, olha para ele e pergunta porque ele está com aquele olhar
diferente, frio e apático, em uma crítica ao jeito frio do filho. Ele a abraça,
e logo em seguida, minutos depois, a mãe já manifesta uma mensagem contrária,
de que ele seria muito dependente ou inoportuno em suas aproximações físicas.
E o duplo vínculo, veja bem, é algo que ocorre com
bastante frequência em interações humanas, que irão depois, com o tempo,
produzir sintomas de psicose ou até mesmo de depressão. Porque a pessoa
enlouquece, ou entra mesmo em depressão, com alguém, que a controla, e que está
o tempo todo lhe exigindo duas coisas contrárias.
Foro fato de que existem as mais variadas situações
em que alguém é submetido constantemente a punições. E a punição, em um sentido
mais técnico, não é uma situação formal em que uma pessoa simplesmente castiga
a outra. O contexto punitivo é simplesmente o contexto em que a consequência de
nossas ações é dolorosa.
Se tudo o que você faz resulta sempre em
sofrimento, a tendência é uma espécie de desânimo generalizado, é não querer
fazer mais nada. Imagine uma pessoa que tem uma doença debilitante, que produz
dor crônica dia e noite. Essa pessoa, obviamente, está mais vulnerável à
depressão. Podemos, e devemos, fazer inúmeras críticas ao capitalismo. Mas qual
é a relação do capitalismo com isso?
Então se uma vida na qual prevalecem consequências
dolorosas é mais vulnerável a sintomas de depressão, uma vida esvaziada de
gratificações também não produz resultado muito diferente. Embora talvez possam
ocorrer diferenças de magnitude e de oportunidades para poder se lidar com o
problema.
Muitas pessoas, atualmente, não têm hábitos
saudáveis, por uma série de motivos:
- Não possuem uma higiene adequada do sono, muitas
inclusive em comportamentos como o que estou tendo agora, à 1 hora da manhã, de
frente para um tela, com luminosidade na cara, inibindo a produção de
melatonina. Não têm rotina de sono. Frequentam baladas várias vezes na semana,
tendo dias em que dormem muito tarde e outros não, ou então fazendo o uso
abusivo principalmente de bebidas alcoólicas e tabaco. Ou com frequência ficam
jogando videogame, assistindo televisão ou na internet até 4 horas da manhã,
para depois acordar uma hora da tarde. Outras simplesmente trocam o dia pela
noite e, convenhamos, trocar o dia pela noite é algo que contraria
completamente uma série de recomendações para uma vida saudável. E isso não é
simplesmente culpa do capitalismo. Um conservador, bem capitalista, poderia
dizer que é falta de disciplina e dissolução da família, tendo como
consequência a ausência da figura paterna, de autoridade, e blablablá...
- Comem muita comida processada, com uma dieta
pouca variada, pouca fibra, com excesso de carboidratos simples, frituras, sal
e açúcar.
- Não fazem qualquer tipo de atividade física, e se
expõem muito pouco à luminosidade natural e espaços ao ar livre.
- Fora as pessoas que estão muito atribuladas,
estressadas, com uma série de atividades e compromissos que tomaram para si, e
não estão dando conta. É óbvio que isso não acaba bem. E fique à vontade para
botar isso na conta do capitalismo, ou de quem você achar melhor.
- Sem contar uma série de situações que são
produtoras de sintomas de ansiedade e depressão: desemprego, assédio no
ambiente de trabalho, relacionamentos abusivos, vínculos frágeis e instáveis,
conflitos familiares intensos e frequentes, ou a diminuição de vínculos
comunitários, devido à intensificação da urbanidade, e consequentemente da
individualização, em todo o processo de desenvolvimento da modernidade na
história da civilização ocidental, etc...
Da mesma forma que algumas pessoas querem colocar
tudo na conta do capitalismo, dá para um conservador tranquilamente colocar
tudo na conta da dissolução da família e da degeneração dos costumes.
1 comment:
Bom texto,
Tem dois autores (Alain Ehrenberg e Byung Chul Han) que buscam explicar a epidemia de depressão por uma chave que dá conta tanto de "culpar" o neoliberalismo econômico atual quanto a mudança dos valores e costumes contemporâneos. Ambos afirmam a ideia de transição de uma sociedade disciplinar para pós-disciplinar a partir dos anos 80 como fundamental - entre outros fatores - para a epidemia de depressão nas últimas decadas.
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