Atenção,
alerta de gatilho: o texto abaixo é sobre comportamento suicida. Se for
sensível ao tema, não dê continuidade à leitura.
Ideações
suicidas são muito mais frequentes do que a maioria de nós imagina. Essa
informação está contida em um dos livros de Steven Hayes, e ele cita a fonte:
"Pensamentos
e tentativas de suicídio são chocantemente prevalentes na população em geral
(Chiles & Strosahl, 1995). Cerca de 10% das pessoas, em algum momento,
tentará o suicídio. Outros 20% terão dificuldades com ideação suicida e terão
um plano e meios para realizar o ato. Ainda outros 20% terão problemas com
pensamentos suicidas, mas sem um plano específico. Assim, metade da população
enfrenta níveis, de moderados a severos, de comportamento suicida em suas
vidas"(p. 07).
Faço
parte dessa metade da população. Mas demorei muito para ter pensamentos assim.
Talvez eu pela primeira vez tenha tido consciência de que alguém tinha acabado
com a própria vida quando estávamos eu e meu pai caminhando, a uns 200 metros
de nossa casa, quando eu tinha uns 11 anos de idade, e ele me mostrou uma casa
na qual, havia poucos dias, uma pessoa havia cometido suicídio.
Sempre
que eu passava na frente daquela casa pensava naquele ocorrido horrível. Sentia
aversão. Percebia aquele contexto como absolutamente sombrio e repugnante. Não
conseguia compreender como alguém era capaz de cometer um ato tão atroz contra
si mesmo. Transformou-se para mim em um tabu. Era algo sobre o qual eu não
gostava de pensar nem de imaginar para qualquer pessoa, muito menos para mim.
Mas isso
se desfez depois que entrei na universidade. Já no primeiro ano do curso de
psicologia comecei aceitar mais esta possibilidade, talvez como um ato mesmo de
liberdade, tanto para os outros quanto para mim mesmo.
Por que
todos temos essa liberdade. No Brasil não temos esse direito. Mas o ato,
escapar disso tudo, está ao alcance da maioria de nós. E quando digo liberdade,
menciono o conceito em seu sentido mais vulgar, somente para poder me comunicar
melhor, em um texto que tem a pretensão de ser breve.
Uma coisa
que me chama a atenção, em minha própria experiência, nos últimos 30 anos, é o
quanto a minha percepção foi se alterando, e o fato de que o desejo de morrer
foi, por diversas vezes, acompanhado por experiências de grande prazer.
Já tive e
tenho minhas ideações, como a metade das pessoas desse mundo. Mas elas também
se alteraram bastante. No artigo científico que publiquei sobre o tema, o qual
é o relato do caso de meu irmão mais velho, que se foi assim, em 1998, trago a
metáfora do baobá.
A ideação
suicida seria como uma semente ou uma pequena muda de baobá. É melhor cortar
logo pela raiz. Porque quando começamos a cultivá-la, ela tende a crescer,
adquirir raízes, e se transformar em um enorme baobá que pode se apossar de
nossa vida por completo. O que antes era somente um desejo, até mesmo
indefinido, pode se transformar em alternativa válida, porta de saída para todo
e qualquer tipo de aborrecimento. Ou a pessoa pode começar a ficar fascinada
pela morte.
Sinto que
tanto eu quanto Edu, meu irmão que se foi, éramos, em 1993, fascinados pela
morte. Mas jamais conversamos sobre isso, sobre esta fascinação, no nível
pessoal. O mais próximo a que chegamos, numa conversa, neste sentido, foi
quando ele se preocupou comigo, achando que eu pudesse tentar alguma coisa.
- Dri,
meu irmão, li isso aqui que você escreveu, e fiquei preocupado...
- Não há
com que se preocupar, eu lhe garanto. Isso é somente exercício poético,
literário...
Ele
insistiu em se mostrar preocupado, e eu inverti:
- Poxa,
Edu, convenhamos, quem está em mais risco aqui é você, e não eu.
Vi que
ficou um pouco surpreso, achando que eu não soubesse de nada, que eu não
percebia o quanto ele era suicida. Mas deixei muito claro para ele que era
muito angustiante saber que ele uma hora poderia fazer alguma coisa. A
possibilidade de chegar em casa e encontrar alguém que fez uma coisa dessas é
horrível.
Senti que
ele havia percebido que algo assim poderia gerar muito sofrimento em muitos de
nós, e continuei durante todos os cinco anos seguintes (assim como eu já vinha
fazendo havia cinco anos, desde 1988) fazendo o que eu podia para que ele se
sentisse mais feliz, e percebesse que de alguma forma a vida dele valia a pena.
Minha
capacidade de ajuda e prevenção a alguém numa situação dessas era muito menor
do que a que tenho hoje. Hoje compreendo tudo isso, em termos de intervenção
psicológica e em termos éticos, de um modo muito mais vasto e profundo do que
nos anos 90.
Cada um
fez o que pôde e cada um tinha seus limites, e muitos de nós tivemos
importantes aprendizados depois dessa tragédia.
Mas esse
texto já está ficando longo, e se desviou para pontos sobre os quais já tratei
em detalhes no artigo e na versão, em formato de crônica, em português.
Eu queria
mesmo é falar da forma das ideações. Meu baobá já existe há muitos anos, e
convivo muito bem com ele. E ele não cresceu sob o piso de minha casa,
destruindo tudo e invadindo minha vida.
Hoje
tenho tudo muito bem delimitado e separado. O baobá é hoje uma paisagem linda
que tenho em minha janela, e que sei que posso um dia ir lá, quando for
necessário, quando for a hora.
Sinto que
a vida, além de um direito, é também em boa medida, para muitos de nós, um
dever. Temos deveres para com quem nos ama, e sofreria muito com nossa falta
repentina.
Então não
tenho mais ideações que estão crescendo e tomando conta da minha vida. Não tem
mais nada a ver com isso.
E se você
leu até aqui e pouco entendeu, talvez você precise compreender, em maiores
detalhes, o que são ideações suicidas, tabus sobre o tema, suas modulações
sociais e históricas, e os conceitos de: liberdade, direito, ética, e todo o
debate sobre eutanásia e suicídio assistido.
Referência:
S.C.
Hayes et al (1999). Acceptance and commitment therapy. New York: Guilford
Press.
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