Edmilson (nome fictício), era um senhor circunspecto, de cabelos brancos e 49 anos de idade. Tinha uma aparência bastante austera e serena. Falava de forma pausada, com um tom metódico e, no grupo de fala, foi desde o início, transparente:
- Me enviaram para o CAPS porque não quiseram me conceder meu porte de armas.
- Você está tomando alguma medicação psiquiátrica, Edmilson?
- Não, nenhuma. Os médicos me prescreveram, mas não tomarei. Eu terminantemente me recuso.
- E por que você deseja ter um porte de armas?
- Para me proteger dos agentes do Estado.
- E quem seriam esses agentes do Estado?
- Todos aqueles que cerceiam a minha liberdade.
- E como que os agentes do Estado estão cerceando a sua liberdade?
- Por meio da fiscalização constante. Mas eu provarei a eles que eu não tenho qualquer tipo de transtorno mental, e conseguirei meu porte de armas de forma legal.
- E como é que eles fazem essa fiscalização constante?
- Isso é um consórcio dos agentes do estado aqui no Brasil com a KGB.
E era mais ou menos assim que as interações verbais com Edmilson se desenvolviam. Em um determinado momento ele se utilizava de alguns argumentos que tinham uma conotação bizarra.
Relatava que não tinha nenhum amigo ou familiar no Distrito Federal, que havia de repente tomado a decisão de ir embora de sua terra natal, uma cidade grande, bastante longínqua, da região Nordeste.
De repente, sem avisar qualquer familiar ou conhecido, fez as malas e pegou um ônibus em direção à capital do país. Quando aqui chegou, se instalou nas acomodações mais simples possíveis, e saiu para procurar por emprego.
Em poucos dias Edmilson conseguiu um trabalho, e estava no Distrito Federal havia cerca de 2 anos, trabalhando como auxiliar de serviços gerais. Era funcionário de uma empresa terceirizada, do setor de limpeza.
Queixava-se de muitas dores pelo corpo, e de uma série de dificuldades que muitas das pessoas que estão chegando aos 50 anos de idade vivenciam, principalmente se não tiverem condições adequadas para poder cuidar de sua saúde.
Frequentava o grupo de fala que eu coordeno de modo intermitente e, em comparação com os demais pacientes, exibia um quadro estável. Edmilson era, em termos laborais, funcional. Tinha um trabalho, e uma rotina que era seguida à risca. Somente estava no CAPS em função de uma encaminhamento médico, que ele de certo modo fazia questão de respeitar. Esse encaminhamento ocorrera muito provavelmente em virtude de alguns conteúdos bizarros em sua fala, sem qualquer tipo de relação com a realidade e, portanto, aparentemente delirantes.
Então, durante um bom tempo, o acompanhei de modo leve, mas sempre atento para a possibilidade da ocorrência de alguma crise, ou algo parecido, que pudesse justificar alguma ação mais incisiva. Isso fez com que eu adiasse, o quanto fosse possível, o procedimento de uma visita domiciliar, por exemplo.
Mas sempre lhe deixei claro que eu gostaria de fazer essa visita domiciliar, que em um dos dias da semana eu estava sempre com uma carga menor de trabalho, e que ele poderia, nesse dia da semana, quando quisesse, comparecer ao CAPS para que eu fosse com ele à sua casa, para conhecer o lugar onde ele morava.
E, depois de vários meses de acompanhamento, creio que após ter adquirido a confiança necessária, Edmilson fez tudo certinho para que eu pudesse conhecer um pouco melhor como era a sua vida: chegou bem cedo ao CAPS, e assim ficou muito fácil para que essa visita ocorresse.
Em uma ensolarada manhã de terça-feira partimos então eu, ele e o motorista do CAPS, em direção à Ceilândia.
Edmilson residia em um quartinho, nos fundos de uma casa. A entrada era independente, por um corredor lateral, por onde somente passava uma ou duas pessoas. O lote era bastante pequeno, e era até mesmo difícil de entender como cabia tanta coisa ali. O que acontecia era que na verdade tudo que existia naquele lote, aqueles vários cômodos, eram todos eles muito pequenos. E essa era a explicação para a existência de tantas acomodações diferentes em um espaço tão exíguo.
Na chegada paramos o carro do lado de uma lixeira, e quando saí tive de tomar cuidado para não pisar em restos de comida, que tomavam mais ou menos uma área de um metro quadrado na calçada. O lixeiro havia passado, e o saco de lixo havia se rasgado, tendo esses restos de comida caído no chão.
O sol escaldante e aquela visão da comida no chão fizeram eu imaginar que talvez as acomodações de Edmilson fossem precárias.
Nos fundos dessa casa havia então cinco pequenos quartos, um do lado do outro. E a construção era de fato muito precária. Não havia forro, e a porta era baixa: tive de abaixar a cabeça para entrar. Todos esses quartos eram cobertos com telhas de amianto. Como o teto de todos eles eram bem baixo, e não havia forro, assim como a ventilação também era quase que completamente inexistente (dependendo somente de um ventilador que ficava do lado de sua cama), o quarto de Edmilson era nitidamente um ambiente insalubre, no qual ele colocou uma cama de solteiro, com uma arara em cima, com todas as suas roupas, uma pequena parte lateral que parecia uma pia, onde guardava talheres e panelas, e do lado o fogão.
Ambiente minúsculo, escuro e sem ventilação, que se transformava em um forno durante o dia. Edmilson, quando estava sentado em sua cama, ficava com a cabeça no meio das roupas, porque a arara não era alta o suficiente para que suas roupas permitissem que ele ficasse sentado tranquilamente em seu leito. Creio que essa arara não era alta o suficiente, porque o teto era muito baixo. Mas não consigo me lembrar agora se era essa a razão para o fato da arara, com suas roupas, ficar ali bem perto dele, enquanto dormia. Se inventasse de se sentar ficava com a cabeça no meio das roupas, como se estivesse escondido dentro de um armário.
Panelas penduradas na parede, alguns pratos e talheres e o fogão em um canto, perto da porta:
- Você sempre cozinha aqui dentro, Edmilson?
- Sim.
- E quando você cozinha, aqui não fica com cheiro de gordura, ou muito quente?
- Não. Porque eu não uso óleo, e a noite, aqui, já está bem fresquinho.
- De dia deve ficar bem quente aqui dentro, não?
- Durante o dia eu fico no trabalho.
Ele me disse que chegava do trabalho, e por volta das 7 horas da noite fazia a comida.
Eu fiquei bastante impressionado com sua rotina, porque essa comida que ele fazia por volta das 7 horas da noite, para jantar, ficava fora da geladeira. Ele acordava, comia essa mesma comida, que ele havia feito na noite anterior, como um café da manhã, e ainda sobrava um pouco de alimento, que ele levava para o trabalho. Tomava como café da manhã e almoçava a mesma comida que havia preparado na noite anterior.
Essa mesma comida somente tinha um pouco de refrigeração no local de trabalho, porque Edmilson não tinha geladeira. Nesse quartinho minúsculo em que morava simplesmente não cabia uma geladeira.
- E o banheiro, Edmilson, aonde é?
Apontou para uma portinha, bem em frente às cinco portas desses pequenos quartinhos. O banheiro era composto somente por um cano, de onde saía água fria, e um vaso sanitário bastante envelhecido e encardido, sem acento ou tampa.
disse que não tinha problema algum com a água fria mesmo durante o inverno.
- Tomar banho frio é bom, faz bem. Tomo banho frio, mesmo no inverno. Eu gosto.
E como esses cinco quartinhos tinham sido improvisados no fundo de um quintal, o banheiro era algo separado, era algo que estava fora da casa de cada uma daquelas pessoas. Se começasse, por exemplo, a chover, a pessoa teria de sair na chuva para ir ao banheiro.
Edmilson disse-me que não tinha os telefones de nenhum de seus familiares. Tinha dois filhos por volta de 20 anos de idade: um rapaz e uma moça. Perguntei a ele se seus filhos tinham redes sociais. Consegui, junto com ele, encontrar as redes sociais dos filhos, e tentei enviar-lhes mensagens, mas não obtivemos qualquer tipo de resposta. Somente uma cunhada é quem chegou a entrar em contato comigo. Confirmou que Edmilson tinha de repente ido embora e deixado tudo para trás, mas não voltou a responder, mesmo com um pouco de insistência de minha parte.
Já faz alguns meses que Edmilson não comparece ao CAPS, e eu creio que isso seja em função de uma mudança que ele já estava programando, para uma outra região do Distrito Federal, onde teria muito mais qualidade de vida, porque era inclusive um investimento, onde ele começaria a pagar para ter a sua casa própria.
Espero que ele tenha conseguido fazer essa mudança, que esteja agora vivendo em condições mais satisfatórias, que tenha pelo menos uma geladeira para colocar o único alimento que come, nas únicas três vezes do dia em que se alimenta, o qual pacientemente cozinha na noite anterior.
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