Costumo dizer que terapeuta amigo
enfraquece a terapia, e que amigo terapeuta é algo que enfraquece a amizade. E não
quero com isso dizer que não é possível ser amigável com nossos pacientes, ou
que não é possível agir por amor, por um desejo genuíno de ajudar alguém que
está ali na condição de paciente e que muitas vezes irá sentir que tem em nós
uma espécie de amigo.
Até me lembro de meu primeiro paciente
que não tinha qualquer relação com o meio universitário. Nunca tinha feito
terapia na vida, e nem sabia que um psicólogo não é um médico. Era trabalhador
braçal, com ensino fundamental incompleto, e estava ali diante de mim, com meus
vinte e poucos anos, em um enfoque de terapia individual, uma vez por semana:
- Não sei por que, mas sinto que você é
para mim como um amigo...
E ele parece mesmo ter compreendido
que eu era como um amigo, mas que aquela relação (de psicólogo com paciente) não
era exatamente uma amizade, que aquilo era um pouco diferente.
Aliás, eu mesmo penso que é muito
diferente. Possui aspectos que muitas vezes a aproximam de uma amizade. Possui alguns
elementos de uma amizade, de amor fraterno, mas é muito diferente.
Primeiramente porque na relação terapêutica
não existe a simetria e o compartilhar mútuo da amizade. Porque uma amizade pressupõe
reciprocidade e cumplicidade mútua. Não basta que um seja cúmplice e o outro não.
E se somente uma das pessoas estiver disponível para ajudar ou ouvir, somente
ela é que é amiga. E aí fica bem clara a situação em que “sou seu amigo, mas
você não é meu amigo”. Isso caracteriza uma relação de cuidado, unilateral, mas
ainda talvez não seja amizade como usualmente compreendemos. Uma das pessoas
tem um amigo, mas não são amigos.
E para os psicoterapeutas,
principalmente os iniciantes, há uma questão, muitas vezes complicada e pouco
resolvida: a questão da abstinência. Ou seja: qual é o nível de envolvimento
que posso ter com meus pacientes? Se um paciente me convidar, posso ir à sua
festa de aniversário? Eles podem ter meu telefone pessoal? E se começarem a me
ligar de madrugada? E se algum paciente se apaixonar e começar a me perseguir?
E se eu me apaixonar por algum paciente? E se um conhecido disser que quer
fazer terapia comigo?
Essas e várias outras perguntas são frequentes,
e geram tensão para muitos psicólogos, principalmente, como já mencionei, para
os iniciantes, e aqueles que ainda não estabeleceram uma diretriz mais estável para
a sua atuação.
Para tanto, comecemos pelo Código de
Ética Profissional do Psicólogo:
“Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:
j) Estabelecer com a pessoa atendida,
familiar ou terceiro, que tenha vínculo com o atendido, relação que possa
interferir negativamente nos objetivos do serviço prestado;
k) Ser perito, avaliador ou
parecerista em situações nas quais seus vínculos pessoais ou profissionais,
atuais ou anteriores, possam afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou
a fidelidade aos resultados da avaliação;”
Portanto não está escrito no código
que não é permitido ser psicoterapeuta de alguém conhecido. O que está claro é
que não podemos estabelecer relações, com a pessoa atendida ou mesmo com seus
familiares, que possam prejudicar os objetivos do serviço prestado.
Então, em alguns casos, é possível que
pessoas conhecidas sejam nossas pacientes, e em outros não.
Vamos pensar em como fica, por
exemplo, a atuação de um psicólogo em uma cidade pequena. Imagine que você é psicólogo,
e atua em uma cidade bem pequena. Não poderá residir na cidade? Se residir, terá
de viver como uma espécie de eremita que se esconde dentro de sua própria casa?
Ou então viverá fora da cidade, em lugar remoto, para o qual ninguém ali jamais
terá acesso, de modo bem parecido com um psicanalista francês (uma vez relatado
por meu orientador de doutorado) do qual ninguém sabia praticamente nada. O cara
morava bem longe de tudo e todos. As pessoas não sabiam praticamente nada de
sua vida pessoal: se era casado, se tinha filhos, como vivia, do que gostava,
onde morava, etc.
E eu tenho a impressão de que muitos psicólogos
vão preferir viver mais ou menos assim, em níveis profundos de discrição, com
sua intimidade resguardada a sete chaves. Algumas pessoas viverão assim e assim
serão felizes. Mas não creio que isso se aplique a todos. Outras irão preferir
morar na própria comunidade, e com ela desenvolver laços mais intensos, abertos
e frequentes, participando ativamente da vida comunitária, sem muitos segredos
ou mistérios.
Porque no final das contas o foco é o
bem-estar de nossos pacientes, o quanto nosso trabalho está baseado em
evidências, e irá produzir de benefícios que sejam duradouros. E o trabalho
clínico, não nos esqueçamos, é em boa medida um trabalho de desbravamento. O treinamento
formal nos fornece as bases para a ação, mas muita coisa vai sendo descoberta
na singularidade de cada caso que atendemos. Conforme vamos conhecendo melhor o
paciente que estamos acompanhando, vamos atuando conforme o que parece ser o
mais benéfico para sua vida e sua boa estruturação psicológica.
Nosso trabalho é ajudar as pessoas a
ter uma vida que seja mais saudável para elas e para quem convive com elas. A ética,
a compreensão de quais procedimentos devemos adotar não está presente
simplesmente na categorização simplista do que se deve ou não fazer. Nossa ação
deve ser ética e não simplesmente moral, pois a moral pode até mesmo se
constituir a partir de um conjunto de regras, mas a ética o que irá nos
conduzir constantemente à reflexão e autocrítica. Cada ação nossa no mundo gera
consequências, e buscar sempre compreender quais efeitos são mais ou menos benéficos
para nossos pacientes, em cada mínimo procedimento que adotamos, é parte de
nosso comportamento ético.
Então nosso nível de envolvimento com
nossos pacientes deverá ser modulado conforme a avaliação de como isso se
reflete em seu bem-estar, em sua saúde, e do que sentimos que temos condições de
fazer. Porque é também muito importante respeitarmos nossos próprios limites. Se
não damos conta de sustentar alguns níveis de envolvimento, se isso mais
prejudica do que beneficia a relação psicoterapêutica, talvez seja melhor
colocar aí uma barreira.
Portanto não existem padrões específicos.
Mas também não creio que seja possível ser amigo de paciente. Colegas talvez. Mas
amigos não. Porque a amizade pressupõe reciprocidade e gratuidade. E certamente
não é disso que se trata quando estamos falando de relação psicoterapêutica.
Por isso é necessário foco, dedicação
e uma definição forte de papéis entre terapeuta e paciente que, por sua vez, são
muito diferentes. Se o paciente não precisa primar por abstinência, o psicólogo
precisa, e muito. Precisa focar no trabalho, e nunca se esquecer que essa relação
não pode se descontrolar, o que não quer dizer que o paciente não possa se
descontrolar. Pode e em alguns casos isso é até desejável que ocorra.
Quem não pode se descontrolar e
esquecer do que está fazendo, e quais são seus objetivos, e preceitos
fundamentais, é o terapeuta. Então a abstinência está presente em toda ação controlada,
calculada, que tem um propósito bem definido. Portanto uma formação baseada em
evidências e teorização sólidas, perspectivas que são constantemente testadas
de modo rigoroso e treinamento constante podem servir como fundamentos para uma
ação mais responsável e eficaz.
Então faz mais sentido formação e treinamento
sólidos, baseados em evidências, do que ficar se preocupando se vai ou não ficar
se escondendo de seus pacientes e do mundo.
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