Tuesday, September 17, 2019

Harari: sobre a qualidade de vida durante a história

É comum, inclusive por alguns pesquisadores, a afirmação de que a qualidade de vida da humanidade nunca foi tão alta como atualmente. Sinto, porém, que talvez esse tema ainda seja alvo de algumas controvérsias, inclusive no meio científico. E claro que tudo isso deve ser contemplado sem idealizações, porque há também o lado sombrio, cruel e violento da vida do homem paleolítico, o qual também deve-se levar em conta. Então, vejam só o que diz Yuval Harari, em Sapiens:

“Enquanto as pessoas nas sociedades afluentes de hoje trabalham, em média, de 40 a 45 horas por semana, e as pessoas nos países em desenvolvimento trabalham 60 ou mesmo 80 horas por semana, os caçadores-coletores que hoje vivem nos habitats mais inóspitos – como o deserto de Kalahari – trabalham, em média, apenas 35-45 horas por semana. Eles caçam apenas uma vez a cada três dias, e a coleta leva não mais do que de três a seis horas diárias. Em épocas normais, isso é suficiente para alimentar o bando. É bem possível que os antigos caçadores-coletores vivendo em zonas mais férteis do que o Kalahari gastassem ainda menos tempo obtendo alimento e matérias-primas. Além disso, eles tinham uma carga mais leve de tarefas domésticas: não tinham pratos para lavar, tapetes para limpar, pisos para polir, fraldas para trocar ou contas para pagar.

A economia dos caçadores-coletores proporcionava à maioria dos indivíduos vidas mais interessantes do que a agricultura ou a indústria. Atualmente, um operário chinês sai de casa por volta das sete da manhã e atravessa ruas poluídas rumo a uma fábrica com condições precárias de trabalho, onde opera a mesma máquina, da mesma maneira, dia após dia, durante dez longas horas, voltando para casa por volta das sete da noite para lavar a louça e a roupa. Há 30 mil anos, um caçador-coletor chinês possivelmente saía do acampamento com seus companheiros às oito da manhã. Eles perambulavam pelas florestas e savanas das redondezas, colhendo cogumelos, desenterrando raízes comestíveis, capturando rãs e às vezes fugindo de tigres. No começo da tarde, estavam de volta ao acampamento para almoçar. Isso lhes deixava tempo suficiente para fofocar, contar histórias, brincar com os filhos ou simplesmente descansar na companhia uns dos outros. É claro que às vezes alguém era pego por um tigre, ou picado por uma cobra, mas por outro lado eles não precisavam lidar com acidentes de automóvel ou poluição industrial.

Em quase todos os lugares e em quase todas as épocas, a atividade caçadora-coletora fornecia a nutrição ideal. Isso dificilmente surpreende – essa foi a dieta humana durante centenas de milhares de anos, e o corpo humano estava bem adaptado a ela. Evidências de esqueletos fossilizados indicam que os antigos caçadores-coletores tinham menos tendência a passar fome ou sofrer desnutrição e em geral eram mais altos e mais saudáveis do que seus descendentes camponeses. Ao que parece, a expectativa de vida era de apenas 30 a 40 anos, mas isso se devia, em grande parte, à incidência elevada de mortalidade infantil. As crianças que sobreviviam aos perigosos primeiros anos tinham boas chances de chegar aos 60, e algumas chegavam aos 80. Entre os caçadores-coletores modernos, as mulheres de 45 anos podem esperar viver outros 20, e cerca de 5 a 8% da população tem mais de 60 anos.

O segredo do sucesso dos caçadores-coletores, que os protegia da fome e da desnutrição, era sua dieta variada. Os agricultores tendem a ingerir uma dieta muito limitada e desequilibrada. Especialmente nos tempos pré-modernos, a maior parte das calorias que alimentam uma população agrícola vinha de uma única colheita – como trigo, batata ou arroz – que carece de algumas das vitaminas, sais minerais e outros nutrientes de que os humanos necessitam. Já os antigos caçadores-coletores comiam regularmente dezenas de alimentos distintos. O camponês chinês típico comia arroz no café da manhã, arroz no almoço e arroz no jantar. Se tivesse sorte, podia esperar comer o mesmo no dia seguinte. Diferentemente, os antigos caçadores-coletores comiam dúzias de tipos diferentes de comida. Ancestral do camponês, o caçador-coletor talvez comesse bagas e cogumelos no café da manhã; algumas frutas e tartaruga no almoço; e carne de coelho com cebola selvagem no jantar. É bem provável que o menu do dia seguinte fosse completamente diferente. Essa variedade garantia que os antigos caçadores-coletores recebessem todos os nutrientes necessários.

Além disso, ao não depender de um único tipo de comida, eles eram menos propensos a sofrer na ausência de uma fonte específica de alimento. As sociedades agrícolas são arruinadas pela fome quando uma seca, um incêndio ou um terremoto devastam a colheita anual de arroz ou de batata. As sociedades caçadoras-coletoras não estavam imunes a desastres naturais e sofriam períodos de fome e privação, mas em geral eram capazes de lidar com tais calamidades mais facilmente. Se perdiam alguns de seus alimentos essenciais, podiam coletar ou caçar outras espécies, ou migrar para uma área menos afetada.

Os antigos caçadores-coletores também eram menos afetados por doenças infecciosas. A maioria das doenças infecciosas que acometeram as sociedades agrícolas e industriais (como varíola, sarampo e tuberculose) se originou em animais domésticos e passou para os humanos somente após a Revolução Industrial. Os antigos caçadores-coletores, que domesticaram apenas cachorros, estavam livres desses males. Além disso, a maioria das pessoas nas sociedades agrícolas e industriais vivia em assentamentos permanentes que eram populosos e pouco higiênicos – uma incubadora ideal para doenças. Os antigos caçadores-coletores percorriam a terra em pequenos bandos, o que não alimentava epidemias.

A dieta completa e variada, a semana de trabalho relativamente curta e a raridade de doenças infecciosas levaram muitos especialistas a definir as sociedades caçadoras-coletoras pré-agrícolas como “as sociedades afluentes originais”. Seria um erro, no entanto, idealizar a vida desses povos antigos. Embora eles tivessem uma vida melhor do que a maioria das pessoas nas sociedades agrícolas e industriais, seu mundo ainda podia ser cruel e implacável. Períodos de dificuldade e privação não eram raros, a mortalidade infantil era alta e um acidente que hoje seria pouco significativo podia facilmente se tornar uma sentença de morte. A maioria das pessoas provavelmente desfrutava da intimidade do bando, mas os desafortunados que eram alvo de hostilidade ou de zombaria dos colegas de bando decerto padeciam terrivelmente. Os caçadores-coletores modernos ocasionalmente abandonam e até matam pessoas idosas ou deficientes que não conseguem acompanhar o bando. Bebês e crianças indesejados podem ser assassinados, e há inclusive casos de religiosidade inspirados em sacrifício humano.”

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