Prosas molhadas, chorosas, feitas a soluços de esquina na vida bêbada de bares. Rola uma conversa de fim de mundo. Garganta abaixo, o fogo da pinga apaga o último choro seco do peito.
- Só sei que nada sei. Diga aí, Mané? Não é isso? Quem é que sabe das coisas? Todo mundo acha que sabe. Ninguém sabe nada. As pessoas vivem se escondendo atrás de palavras. Eu não acredito mais nas pessoas... - tenta dizer João, esgoelando palavras derramadas de mágoa.
- Ê, Jão. Você e suas filosofadas alcóolicas. Pensa até em merda de formiga - replica Manoel, meio debochante.
- É, Mané. E você nem sabe por que estava com aquele chulé horrível ontem à noite. Tome mais umas, amigo. Depois saberá o por quê do seu bafo, caso estiver em condições para tal - desferindo o troco sem piedade. - "Só sei que nada sei". Essa frase é de Sócrates, que malandro... Só sei que em nada creio? Em mim sim, por que não? Às vezes, quem sabe?
- Jão, você não sabe nada, cara. Engula logo esse copo, a cerveja está chocando - rouba o copo de João e festeja de virada.
- Até você me reprimindo, compadre?
- Brincadeira, Jão. Pode falar, amigo. Cada curvinha que o álcool faz no meu cérebro, pode crer que ele te acompanha. Na virada das nossas incertezas mais embriagadas de solidão, suplicamos um gargalo compadre, aquele que durma a nossa criança com fome. Porém, companheiro, antes que tal calamidade ocorra, pode esquentar a minha orelha.
Fritam-se alguns vazios instantes. João converte sedento o copo cheio, beduíno que ressuscita nos primeiros goles de vida.
- Eu queria morar no Everest - altivo, com o olhar no horizonte, trombando com as pingas da prateleira à frente de seus olhos.
- Everest? Você já está alto, hein, malandro? - fitando as mesmas pingas.
- É Mané, ninguém nunca vai compreender o que a gente sente - amacetando cabisbaixo o cigarro triste do chão.
- Por quê?
- Porque a gente tá bêbado, cara. O direito à loucura ainda não foi aceito pela ONU. Fujamos enquanto é tempo. O Everest é longe, mas não faz mal, a gente pode até pensar que ele morre sozinho.
- Você está começando a apelar, Jão. Caia na farra, fedentino. Fique tranquilo, o dia em que começar a chover prá cima, estaremos todos lá... - sugere Manoel, paquerando as pingas do horizonte.
- Lá aonde?
- No céu, é claro. Saboreando as lindezas de um paraíso espontâneo. Sem etanol, fimose ou qualquer espécie de...
- De...
- Entidade viciante!
- Caro telespectador, leitor, herói que nos ouve... - interpela João, em plantão noticiário, indicando estado de sítio, situação de risco à sanidade mental e à ordem das coisas. Porém sua voz morre no final da frase e João amolece desmaiado das pernas. Recosta no balcão, meio que apaga. Manoel escora aflito.
- Jão, acorde! O que foi, compadre? Não sabe beber?
- Não... No exato momento em que eu falava, me veio a receita de um bolinho que eu não gosto. E aí apagou-se tudo.
- Isso é fígado judiado. Uma náusea, tontura e um daqueles "tuiiiiiimmms..." na cabeça - teoriza o velho Mané, tentando utilizar da fisiologia com o amigo.
João recompõe-se, como que tendo uma visão. Parecia estar vendo Deus em carne e osso. Fermentava-lhe algum "insight".
- Foi censura. Essa receita de bolo provavelmente foi enviada por algum militar interessado em matar-me!
- Nos subterrâneos de minha ignorância, pelo que eu saiba, no período da repressão utilizavam receitas de bolo para encobrir alguma salgada empadinha jornalística, indigesta ao paladar reacionário. Porém, explique-me : como você seria morto?
- Não me pergunte isso...
- Por quê?
- Porque eu não sei responder, bicho...
Grave silêncio. Pensamentos esvoaçavam duas cabeças, ventando forte nos varais da alma. Uma chuva que não vinha. Tempo escuro, fora de órbita. Goles perdidos, olhares rasgados de vazio em lágrima presa.
- Não sei mais nada, Mané. Na verdade não existem receitas nas páginas de nossos velhos jornais já carcomidos pelo tempo. O fundo nos revela uma verdade fundamental, porém reprimida.
- Acho que tem um judeu que já disse isso...
- É. Tal judiado que ele era.
- Não fale assim, Jão. Você não conheceu pessoalmente o rapaz...
Sono em pé. Escorrem alguns segundos. João desperta uma pergunta atônita:
- Mas afinal, de quem estamos falando?
- Não sei porque... Vibrou em meus parafusos a suspeita de que algum judeu já possa ter dito isso. Mas não me lembro, não tenho a menor idéia de quem seja. Buscarei saber. Na bebedeira que vem, dou-lhe uma resposta.
Aos poucos instalava-se um silêncio berçário. O discurso indireto invadia duas crianças, chuviscando lembranças abandonadas ao vento árido de perdas passadas e prenhes.
Bêbados não pensam. Bêbados perdem, a começar pela razão e o rumo de casa. "Lar dor cela lar" *, disse o poeta, fugindo para o Everest com uma garrafa de vodka debaixo do braço. "Receitando" talvez um garrancho de despedida:
"Um corpo de angústia. Meia vida sem céu estrelado. Pedaços de boas lembranças, amargas de saudade. Não se mexe nas raspas secas do fundo. Tudo o que me resta é uma sobra fria. Corri meu choro orvalhado de fuga numa manhã escura, rodeada de luto e liberdade..."
Pelas ruas agora repousava mais um fim de madrugada, uma cantoria rouca, mal acabada, tocada aos tropeços, de quarteirão em quarteirão. A cada passo trocado, cambaleavam amores distantes, mutilados pelo tempo. Choros, há muito calados, imploravam o grito que fora abafado. O bêbado, tal qual o mendigo atrás do pedaço de pão, rumina suas misérias, um hálito pesado.
João errante, errava de casa. Envesgado o caminho, batia de porta em porta, pedia sobras de vida. Passeava suas dores, viajava nos desertos do espírito. Sabia beber, sabia continuar. Embora continuasse perdido, esperava sempre que o seu sol nascesse, nem que fosse para correr insanamente até o horizonte, e pescá-lo atrás das montanhas. E tantas eram elas. Tantos eram os vales profundos do conflito humano, onde se cozinha a paciência e se inventa a criação. Adeus, João. Força, amigo. Por detrás de uma montanha, sempre encontramos outra. Porém, no alto de cada uma delas, um novo horizonte se propõe ao infinito do sonho de se estar vivo.
* Em referência ao verso "Lar dor cela", do conterrâneo amigo Valnei Andrade.
- Só sei que nada sei. Diga aí, Mané? Não é isso? Quem é que sabe das coisas? Todo mundo acha que sabe. Ninguém sabe nada. As pessoas vivem se escondendo atrás de palavras. Eu não acredito mais nas pessoas... - tenta dizer João, esgoelando palavras derramadas de mágoa.
- Ê, Jão. Você e suas filosofadas alcóolicas. Pensa até em merda de formiga - replica Manoel, meio debochante.
- É, Mané. E você nem sabe por que estava com aquele chulé horrível ontem à noite. Tome mais umas, amigo. Depois saberá o por quê do seu bafo, caso estiver em condições para tal - desferindo o troco sem piedade. - "Só sei que nada sei". Essa frase é de Sócrates, que malandro... Só sei que em nada creio? Em mim sim, por que não? Às vezes, quem sabe?
- Jão, você não sabe nada, cara. Engula logo esse copo, a cerveja está chocando - rouba o copo de João e festeja de virada.
- Até você me reprimindo, compadre?
- Brincadeira, Jão. Pode falar, amigo. Cada curvinha que o álcool faz no meu cérebro, pode crer que ele te acompanha. Na virada das nossas incertezas mais embriagadas de solidão, suplicamos um gargalo compadre, aquele que durma a nossa criança com fome. Porém, companheiro, antes que tal calamidade ocorra, pode esquentar a minha orelha.
Fritam-se alguns vazios instantes. João converte sedento o copo cheio, beduíno que ressuscita nos primeiros goles de vida.
- Eu queria morar no Everest - altivo, com o olhar no horizonte, trombando com as pingas da prateleira à frente de seus olhos.
- Everest? Você já está alto, hein, malandro? - fitando as mesmas pingas.
- É Mané, ninguém nunca vai compreender o que a gente sente - amacetando cabisbaixo o cigarro triste do chão.
- Por quê?
- Porque a gente tá bêbado, cara. O direito à loucura ainda não foi aceito pela ONU. Fujamos enquanto é tempo. O Everest é longe, mas não faz mal, a gente pode até pensar que ele morre sozinho.
- Você está começando a apelar, Jão. Caia na farra, fedentino. Fique tranquilo, o dia em que começar a chover prá cima, estaremos todos lá... - sugere Manoel, paquerando as pingas do horizonte.
- Lá aonde?
- No céu, é claro. Saboreando as lindezas de um paraíso espontâneo. Sem etanol, fimose ou qualquer espécie de...
- De...
- Entidade viciante!
- Caro telespectador, leitor, herói que nos ouve... - interpela João, em plantão noticiário, indicando estado de sítio, situação de risco à sanidade mental e à ordem das coisas. Porém sua voz morre no final da frase e João amolece desmaiado das pernas. Recosta no balcão, meio que apaga. Manoel escora aflito.
- Jão, acorde! O que foi, compadre? Não sabe beber?
- Não... No exato momento em que eu falava, me veio a receita de um bolinho que eu não gosto. E aí apagou-se tudo.
- Isso é fígado judiado. Uma náusea, tontura e um daqueles "tuiiiiiimmms..." na cabeça - teoriza o velho Mané, tentando utilizar da fisiologia com o amigo.
João recompõe-se, como que tendo uma visão. Parecia estar vendo Deus em carne e osso. Fermentava-lhe algum "insight".
- Foi censura. Essa receita de bolo provavelmente foi enviada por algum militar interessado em matar-me!
- Nos subterrâneos de minha ignorância, pelo que eu saiba, no período da repressão utilizavam receitas de bolo para encobrir alguma salgada empadinha jornalística, indigesta ao paladar reacionário. Porém, explique-me : como você seria morto?
- Não me pergunte isso...
- Por quê?
- Porque eu não sei responder, bicho...
Grave silêncio. Pensamentos esvoaçavam duas cabeças, ventando forte nos varais da alma. Uma chuva que não vinha. Tempo escuro, fora de órbita. Goles perdidos, olhares rasgados de vazio em lágrima presa.
- Não sei mais nada, Mané. Na verdade não existem receitas nas páginas de nossos velhos jornais já carcomidos pelo tempo. O fundo nos revela uma verdade fundamental, porém reprimida.
- Acho que tem um judeu que já disse isso...
- É. Tal judiado que ele era.
- Não fale assim, Jão. Você não conheceu pessoalmente o rapaz...
Sono em pé. Escorrem alguns segundos. João desperta uma pergunta atônita:
- Mas afinal, de quem estamos falando?
- Não sei porque... Vibrou em meus parafusos a suspeita de que algum judeu já possa ter dito isso. Mas não me lembro, não tenho a menor idéia de quem seja. Buscarei saber. Na bebedeira que vem, dou-lhe uma resposta.
Aos poucos instalava-se um silêncio berçário. O discurso indireto invadia duas crianças, chuviscando lembranças abandonadas ao vento árido de perdas passadas e prenhes.
Bêbados não pensam. Bêbados perdem, a começar pela razão e o rumo de casa. "Lar dor cela lar" *, disse o poeta, fugindo para o Everest com uma garrafa de vodka debaixo do braço. "Receitando" talvez um garrancho de despedida:
"Um corpo de angústia. Meia vida sem céu estrelado. Pedaços de boas lembranças, amargas de saudade. Não se mexe nas raspas secas do fundo. Tudo o que me resta é uma sobra fria. Corri meu choro orvalhado de fuga numa manhã escura, rodeada de luto e liberdade..."
Pelas ruas agora repousava mais um fim de madrugada, uma cantoria rouca, mal acabada, tocada aos tropeços, de quarteirão em quarteirão. A cada passo trocado, cambaleavam amores distantes, mutilados pelo tempo. Choros, há muito calados, imploravam o grito que fora abafado. O bêbado, tal qual o mendigo atrás do pedaço de pão, rumina suas misérias, um hálito pesado.
João errante, errava de casa. Envesgado o caminho, batia de porta em porta, pedia sobras de vida. Passeava suas dores, viajava nos desertos do espírito. Sabia beber, sabia continuar. Embora continuasse perdido, esperava sempre que o seu sol nascesse, nem que fosse para correr insanamente até o horizonte, e pescá-lo atrás das montanhas. E tantas eram elas. Tantos eram os vales profundos do conflito humano, onde se cozinha a paciência e se inventa a criação. Adeus, João. Força, amigo. Por detrás de uma montanha, sempre encontramos outra. Porém, no alto de cada uma delas, um novo horizonte se propõe ao infinito do sonho de se estar vivo.
* Em referência ao verso "Lar dor cela", do conterrâneo amigo Valnei Andrade.
1 comment:
bom comeco
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