Sunday, December 12, 2004

XUXA



Xuxa já nos chama a atenção pelo nome. Se pudéssemos estranhá-lo como se o ouvíssemos pela primeira vez, sem saber o que denominava, poderíamos muito bem tomá-lo como esdrúxulo ou até mesmo obsceno. Em certo país daqui da América do Sul foi confundido com algo chulo, o órgão genital feminino. O verbo xuxar, em nossa língua, remete a significados parecidos com o cutucar, o atiçar.

Por mais que a Xuxa batalhe infinitamente para se livrar do seu ranço sexual histórico latente no imaginário mítico, do qual ela se deseja rainha casta, é uma tarefa árdua despir-se do olhar do telespectador inconscientemente sempre sedento para que sua volúpia seja escancarada. Xuxa, então, busca seu refúgio nas crianças. É a nossa babá sonhada, loira, gostosa. Desenvolveram essa idéia de babá via satélite, babá show, big production, babá rainha, deusa. Xuxa é o sonho máximo de uma babá para o Brasil. É como se tivéssemos seqüestrado uma sueca padrão, bonita, bem-educada (pero no mucho), bem nutrida, e ela nos servisse de babá e polução noturna. Como se fosse possível nos vingarmos da opressão histórica simbolizada na peituda loira americana que agora é nossa babá, troca nossas fraldas, nos materna. Como se fosse possível mamar nas tetas da Suécia, viver eternamente do leite e do prazer americano. Veja bem, não é um paternalismo, é uma maternagem, são nossos mulatinhos mamando nos seus peitos, uma ama seca ao avesso.
Sabemos muito bem que este é o sonho que nos alimenta, que lhe produz sucesso, audiência. Xuxa é um sonho de consumo produzido para não ser consumido. Ficamos somente com o cheiro de devaneio moribundo de podermos explorar, com gosto e todo proveito, o que nos oprime. No máximo satisfazemos seus apelos mais irracionais, o da loira subjugada em seu desejo sexual por um negro, senhor das complexas cifras de tudo aquilo que pode resumir-se a simplesmente se fazer sexo puro. Uma loira seduzida e sodomizada por um negro, é a rendição da retilínea e higiênica lógica ocidental ao mais concreto e carnal. É o progressismo cego se rendendo à volúpia cega, ao ócio. É paradoxal. Pode ser a exportação de uma idéia de miscigenação. Ou, tradicionalmente, podemos aí vislumbrar novamente a exploração sexual histórica de uma classe oprimida, os negros. Contudo, por ora, deixe que nos deliciemos em poder comer a Xuxa, reavivar um pouco o sonho de sermos antropofágicos.
E a Xuxa entra poderosa, abrindo a manhã, toda cor-de-rosa. Isso é coisa lá do meu tempo, quando a Xuxa ainda mimava nossas crianças em seus programas matinais. Hoje a coisa mudou um pouco de figura. Contudo, a marca registrada de Xuxa e que lhe conferiu toda a popularidade que tem é, como sabemos, a relação com as crianças, ou com os “baixinhos”, como ela prefere chamar. E é desse lado essencial de Xuxa que estou falando aqui.
Muitas mães de crianças também tinham uma identificação fora do comum com Xuxa. Sinto isso, por vezes, como a sexualidade contida da dona de casa prestes a explodir. O melhor lugar para se construir uma bomba de sexo dentro de casa, passando só de camisola do quarto para a sala, logo de manhã, antes do café; ou de shortinho, esparramada no sofá, assistindo TV. Somente estas imagens já podem nos sugerir o quanto a intimidade doméstica é um estado à parte, um poder paralelo que esconde e protege uma sexualidade pulsante, prestes a sair nua para a rua. E é neste cenário que se encontra a dona de casa, pedindo para ser ao menos invadida.
Donas de casa se excitam em levantar o cartaz: “Xuxa, te amo !”. essa donas de casa são as mães das crianças-bonecas que rebolam-se libidinosamente no programa da Xuxa. Todas amam a rainha. É chique a Xuxa. Era chique o seu café da manhã ao vivo. Com Xuxa vivemos eternamente um clima úmido, de água na boca. Xuxa troca nossas fraldas mas nos mantém molhadinhos. Precisamos estar molhadinhos para nunca devorá-la. Xuxa também é Piu-piu. Dentro de seu vídeo-gaiolinha ela não tem (aparentemente) sexo, nem idade e nem maldade.
Apesar do Piu-piu possuir uma identidade múltipla, indefinível (é um “várias caras”) e ser possivelmente o personagem mais diabólico jamais visto na TV, é sempre tomado como herói da doçura, o mártir dos tempos de pelúcia de um mundo ingênuo e puro. Mas é um pecado comparar Xuxa com o Piu-piu. O personagem Xuxa não foi desenhado para, no final, mostrar suas maldades. Xuxa é um personagem arquitetado para reinar inocente para sempre, como as crianças.
O problema é que o personagem Xuxa se entremeia com a ficção e extrapola o vídeo para canonizar-se como um patrimônio da boa vontade, idoneidade e caridade nacional. À Xuxa é advogado o posto de madame de uma ficção matutina (hoje vespertina-dominical) para buscar uma solução afogada de dramas compadecidos pelos alienígenas encarnados na pele enrugada e áspera do povo faminto e carente. Xuxa quer reinar loira, poderosa, chique, generosa e casta por entre as tristezas de um Brasil favelado ou no conforto de sua mansão solitária.
E as crianças no seu programa. Outro dia está lá o trio-mirim – bem mirim mesmo, três crianças de cinco a seis anos de idade. Eram perfeitos. Uma loirinha, uma moreninha e uma pretinho. Bem pequeninos, maravilhosos na sua inocência, na sua performance inacreditável. Aliás, muito bem treinados, ensaiados. Rebolado, coreografia e frases bem diplomáticos. “Xuxa, adoramos o seu público, estávamos com saudades de vir aqui...”, “Xuxa, a gente ama a Sacha, a gente tava louco para ver vocês...”.
É lindo observar crianças em desempenho excepcional. O problema é a manipulação, cumprir todos os rígidos “scripts” que os adultos lhes imputam. Despertam uma emoção muito similar a de animais em números de circo. A precocidade passa a caminhar junto com o sonho egoísta de um adulto a se desejar metamorfoseado num sonho que é instalado na vida da criança. Projetamos tudo o que podemos nas crianças, dos sonhos às frustrações e erros. E Xuxa, sem o saber, encarnou muito bem essa projeção, pois teve um papel educativo relevante na geração que a idolatrou. A negação de nossas identidades originais e de nossas raízes também se compreende através, por exemplo, do sucesso que a nossa rica e loira Xuxa obteve.

1 comment:

Anonymous said...

Rapaz a Xuxa era uma sensação entre meus amigos de 7/8 anos nos tempos do Clube da Criança. Aos 11 eu gostava muito das musicinhas... "xuxuxu xaxaxa é um jeito louco de se dançar".... Eu me acabava assistindo o programa dela. Realmente ela influenciou um pouco minha formação... Ha!ha!ha!ha!ha!

Frank