(3º lugar no Concurso Sesc-DF de contos de 2004)
O iceberg da montanha do leite em pó na água do copo me esperava uma iniciativa. O pão confuso, deitado em duas fatias, pedia manteiga. A fome do fim da tarde fazia pressa em cada movimento, o estômago vociferava o apito da hora de comer. Ao fundo, lá no portão da frente, uma franzina palma seca se anunciava, meio que abafada pela música do toca-discos laser. Repetitiva, insistia na escuridão das 20 horas.
- Pronto.
- O dono da casa está? - mal se via o vulto preto por detrás daquela voz mole e escondida que muito se bate nas portas do por aí.
- Sou eu mesmo.
- Sabe o que é, você tem aí uma sacola para eu guardar meu cobertor? - em frase que acaba a pilha no final, emprestando palavras ao vento.
- Como? Eu não ouvi. O senhor poderia repetir?
- Você tem uma sacola pra eu carregar meu cobertor?
De perto, o vulto negro era um preto jovem, mulato de olhar tranquilo e ingênuo. Calças compridas, botas de pedreiro, uma velha e descorada camisa boiadeiro. Parecia um daqueles peões, campeões de rodeio em entrevista rápida para a televisão. Falava olhando ora pro chão, ora pra mim, tal qual gente simples da roça. Nem cheiro, nem olhar que exibisse pinga. Fala calma e sem rodeios daquele peão. Logo imaginei que andasse a pé e domasse a fome sempre a procura do teto de uma noite só.
- Espera só um momento que verei se tenho algo.
Ao procurar a sacola que faria mais rico o homem da roupa do corpo e do incômodo cobertor enrolado debaixo do braço, lembrava da cena crua a castigar a consciência. Mulato-peão-sem cavalo-a girar por aí, segurando criança o cobertor precioso, companheiro do frio e do calor, do pesadelo e da solidão. Talvez nele também abafasse seus medos. Homem só, noite seca, o vento prometendo frio. Seus dentes seriam cariados? Não sei, o sorriso de boca fechada do caipira, uma escuridão sem lampião e a lua esfumaçada pelos escapamentos insistentes do dia. Em setembro, o dia abandonado ao sol escaldante e a noite zunindo algum frio. E durante o dia? O que fazia com aquele cobertor, filho único nos braços? Gente em companhia de mochila nos ombros, nas costas, chapéu na cabeça, cigarro no bolso, filho nos braços, de mãos-dadas... mas com um cobertor na mão? Perplexo, divaguei. Na verdade o que aquele homem queria? Ele sonhava? Havia querer?
- Eu não entendi muito bem... - a sempre burra distância que nos separa do vulto da porta, por detrás das nossas grades, escondendo outros mundos. - Qualquer sacola serve? De plástico, de supermercado? Porque a mochila eu não tenho.
- Pode ser, pode ser. É só para guardar o cobertor.
- Já sei. Acho que tenho uma sacola grande de plástico, caberá o cobertor.
A melhor sacolinha moribunda que conseguia imaginar era aquela abandonada no canto mais empoeirado do quarto. Há muito não punha as mãos naquela bagunça. Tênis sem sola, cadernos usados, caixas de sapato e sacolas grandes de papelão. Essa de plástico, essa de papelão e ... divina descoberta! Uma mochila velha, marrom de poeira, praticamente inteira, esquecida e rejeitada naquele canto. Por que não? O homem do cobertor não merece aquela mochila velha, feia, quase-inteira e ainda em condições de uso? Mas, para onde iria o homem de mochila nas costas e sacola na mão?
- Por que você está carregando esse cobertor? - qualquer preconceito maior me chamaria de burro, respondendo o óbvio: não tem casa, mora na rua.
- Eu não sou daqui. Sou de Santos. Tô procurando emprego, mas não encontro nada, tá difícil, aqui tá muito difícil. Assim que der volto pra lá. No porto é fácil de encontrar serviço. Já chego e já arranjo.
- Que serviço você está procurando aqui na cidade?
- Trabalho como sevente de pedreiro, torneiro mecânico, mas tá muito difícil, o desemprego tá grande. Vou levantar uma laje aqui e aí eu volto pra Santos.
- E você está dormindo aonde?
- Onde dá, faz uma semana que estou aqui. Só não chover, tá bom.
- Você tá dormindo na rua?
- É... - responde meio hesitante.
- Se você arranja mais fácil um emprego no porto, por que ainda vai tentar trabalho aqui?
- Fazendo esse serviço aqui eu consigo o dinheiro da passagem.
- Você não tem o dinheiro para voltar?
- Não.
- Tentou pedir em alguma porta?
- Do jeito que a situação tá, não dá. Tá difícil, ninguém tem.
Humildemente relatava uma verdade estatística da qual era uma grande vítima. Porém, nem mesmo a verdade dos números era capaz de esconder a mentira de dezenas ou centenas de "não-tenhos", ideologicamente a negar o pedaço de pão duro aos nossos filhos vagabundos.
Ouvi algumas palavras de seu mundo arredio. Meu planeta mimado indignava-se com aquele peão sem rodeio, pião a girar sem futuro, de costas para a luz da lua. Rodava nos por aís, batendo palmas na pouca paciência sem memória de um mundo em só agora. Transmitido ao vivo para todo o Brasil, o cãopião só dava entrevistas algemado, à mercê de um carrasco ao microfone: "o que você acha que merece, Eudanel?". Após sonegar-se aos andaimes e ao salário-mínimo, o que você acha que merece, assassino?
Chamava-se Eudanel. E o nome estranho já não surpreende na estranheza daquelas vidas para as quais viramos o rosto, fugindo de alguma contaminação. Medo e fuga. Aquilo não existe, a miséria ao relento, o dente cariado, bichos em trapos a cambalear pela cidade lavada de sol e egoísmo, o rosto atacado de rugas chorando um pão-duro. Nosso olho não vê, não tem tempo. Façam silêncio, está na hora da novela, jornal nacional. Eles são menos, desimportantes, micro, microscópicos, bactérias. Lave as mãos, não se esqueça. Deixemos de lado, do lado de lá do portão, das câmeras... Dá logo o dinheiro! Não!! Não dê dinheiro, pode ser pra pinga. Tem que trabalhar, não vamos alimentar a vagabundice, a malandragem. E não vemos a bactéria no fundo da nossa retina míope, corroendo nosso globo ocular, globo solar, nossa luz a nos pedir esmolas.
Fuja, Eudanel-quase-nunca-Eudanel. Quem te chama pelo nome? "Vai trabalhá", vá passar frio em alguma marquise suja do centro da cidade. "Vai carpir, carregá saco". Afinal, "eu sô burro" mesmo, "se fodi na escola".
Os pais eram de Santos. Para o meu espanto, sabia ler, portava documentos e tinha o trocado do ônibus que o levaria até o centro da cidade para, na Prefeitura, contar o que queria, voltar para Santos.
- Se é isso o que você quer, espero que consiga. Boa sorte.
- Obrigado...
Minha fome reclamava a volta à cozinha. O iceberg de pó, intacto, ainda não 7havia derretido, leite em pó solúvel da melhor multinacional. O homem do cobertor me fazia bolhas no copo. Eu rezava por um estômago bem longe da consciência, que aquele leite não se revoltasse com alguma injustiça, seja meu sono guardado em outro mundo, seja a consciência também algo que o tempo consome. Estava Eudanel também com fome? Resposta sem rodeio, o frio pedindo o grito mais alto na noite de vento, o estômago pode esperar pra falar de comida. Ou havia acabado de comer, sobra fria, requentada, o luxo da esmola, resto de marmitex? Aquele vento balançava a realidade trazia poeira distante, a voz beduína no portão, pobres pedintes, refugiados do egoísmo, do desprezo moribundo. E vem sempre, voltam sempre os Eudaneis (que não voltam para Santos) com as palmas de sempre e os nomes de nunca.
O iceberg da montanha do leite em pó na água do copo me esperava uma iniciativa. O pão confuso, deitado em duas fatias, pedia manteiga. A fome do fim da tarde fazia pressa em cada movimento, o estômago vociferava o apito da hora de comer. Ao fundo, lá no portão da frente, uma franzina palma seca se anunciava, meio que abafada pela música do toca-discos laser. Repetitiva, insistia na escuridão das 20 horas.
- Pronto.
- O dono da casa está? - mal se via o vulto preto por detrás daquela voz mole e escondida que muito se bate nas portas do por aí.
- Sou eu mesmo.
- Sabe o que é, você tem aí uma sacola para eu guardar meu cobertor? - em frase que acaba a pilha no final, emprestando palavras ao vento.
- Como? Eu não ouvi. O senhor poderia repetir?
- Você tem uma sacola pra eu carregar meu cobertor?
De perto, o vulto negro era um preto jovem, mulato de olhar tranquilo e ingênuo. Calças compridas, botas de pedreiro, uma velha e descorada camisa boiadeiro. Parecia um daqueles peões, campeões de rodeio em entrevista rápida para a televisão. Falava olhando ora pro chão, ora pra mim, tal qual gente simples da roça. Nem cheiro, nem olhar que exibisse pinga. Fala calma e sem rodeios daquele peão. Logo imaginei que andasse a pé e domasse a fome sempre a procura do teto de uma noite só.
- Espera só um momento que verei se tenho algo.
Ao procurar a sacola que faria mais rico o homem da roupa do corpo e do incômodo cobertor enrolado debaixo do braço, lembrava da cena crua a castigar a consciência. Mulato-peão-sem cavalo-a girar por aí, segurando criança o cobertor precioso, companheiro do frio e do calor, do pesadelo e da solidão. Talvez nele também abafasse seus medos. Homem só, noite seca, o vento prometendo frio. Seus dentes seriam cariados? Não sei, o sorriso de boca fechada do caipira, uma escuridão sem lampião e a lua esfumaçada pelos escapamentos insistentes do dia. Em setembro, o dia abandonado ao sol escaldante e a noite zunindo algum frio. E durante o dia? O que fazia com aquele cobertor, filho único nos braços? Gente em companhia de mochila nos ombros, nas costas, chapéu na cabeça, cigarro no bolso, filho nos braços, de mãos-dadas... mas com um cobertor na mão? Perplexo, divaguei. Na verdade o que aquele homem queria? Ele sonhava? Havia querer?
- Eu não entendi muito bem... - a sempre burra distância que nos separa do vulto da porta, por detrás das nossas grades, escondendo outros mundos. - Qualquer sacola serve? De plástico, de supermercado? Porque a mochila eu não tenho.
- Pode ser, pode ser. É só para guardar o cobertor.
- Já sei. Acho que tenho uma sacola grande de plástico, caberá o cobertor.
A melhor sacolinha moribunda que conseguia imaginar era aquela abandonada no canto mais empoeirado do quarto. Há muito não punha as mãos naquela bagunça. Tênis sem sola, cadernos usados, caixas de sapato e sacolas grandes de papelão. Essa de plástico, essa de papelão e ... divina descoberta! Uma mochila velha, marrom de poeira, praticamente inteira, esquecida e rejeitada naquele canto. Por que não? O homem do cobertor não merece aquela mochila velha, feia, quase-inteira e ainda em condições de uso? Mas, para onde iria o homem de mochila nas costas e sacola na mão?
- Por que você está carregando esse cobertor? - qualquer preconceito maior me chamaria de burro, respondendo o óbvio: não tem casa, mora na rua.
- Eu não sou daqui. Sou de Santos. Tô procurando emprego, mas não encontro nada, tá difícil, aqui tá muito difícil. Assim que der volto pra lá. No porto é fácil de encontrar serviço. Já chego e já arranjo.
- Que serviço você está procurando aqui na cidade?
- Trabalho como sevente de pedreiro, torneiro mecânico, mas tá muito difícil, o desemprego tá grande. Vou levantar uma laje aqui e aí eu volto pra Santos.
- E você está dormindo aonde?
- Onde dá, faz uma semana que estou aqui. Só não chover, tá bom.
- Você tá dormindo na rua?
- É... - responde meio hesitante.
- Se você arranja mais fácil um emprego no porto, por que ainda vai tentar trabalho aqui?
- Fazendo esse serviço aqui eu consigo o dinheiro da passagem.
- Você não tem o dinheiro para voltar?
- Não.
- Tentou pedir em alguma porta?
- Do jeito que a situação tá, não dá. Tá difícil, ninguém tem.
Humildemente relatava uma verdade estatística da qual era uma grande vítima. Porém, nem mesmo a verdade dos números era capaz de esconder a mentira de dezenas ou centenas de "não-tenhos", ideologicamente a negar o pedaço de pão duro aos nossos filhos vagabundos.
Ouvi algumas palavras de seu mundo arredio. Meu planeta mimado indignava-se com aquele peão sem rodeio, pião a girar sem futuro, de costas para a luz da lua. Rodava nos por aís, batendo palmas na pouca paciência sem memória de um mundo em só agora. Transmitido ao vivo para todo o Brasil, o cãopião só dava entrevistas algemado, à mercê de um carrasco ao microfone: "o que você acha que merece, Eudanel?". Após sonegar-se aos andaimes e ao salário-mínimo, o que você acha que merece, assassino?
Chamava-se Eudanel. E o nome estranho já não surpreende na estranheza daquelas vidas para as quais viramos o rosto, fugindo de alguma contaminação. Medo e fuga. Aquilo não existe, a miséria ao relento, o dente cariado, bichos em trapos a cambalear pela cidade lavada de sol e egoísmo, o rosto atacado de rugas chorando um pão-duro. Nosso olho não vê, não tem tempo. Façam silêncio, está na hora da novela, jornal nacional. Eles são menos, desimportantes, micro, microscópicos, bactérias. Lave as mãos, não se esqueça. Deixemos de lado, do lado de lá do portão, das câmeras... Dá logo o dinheiro! Não!! Não dê dinheiro, pode ser pra pinga. Tem que trabalhar, não vamos alimentar a vagabundice, a malandragem. E não vemos a bactéria no fundo da nossa retina míope, corroendo nosso globo ocular, globo solar, nossa luz a nos pedir esmolas.
Fuja, Eudanel-quase-nunca-Eudanel. Quem te chama pelo nome? "Vai trabalhá", vá passar frio em alguma marquise suja do centro da cidade. "Vai carpir, carregá saco". Afinal, "eu sô burro" mesmo, "se fodi na escola".
Os pais eram de Santos. Para o meu espanto, sabia ler, portava documentos e tinha o trocado do ônibus que o levaria até o centro da cidade para, na Prefeitura, contar o que queria, voltar para Santos.
- Se é isso o que você quer, espero que consiga. Boa sorte.
- Obrigado...
Minha fome reclamava a volta à cozinha. O iceberg de pó, intacto, ainda não 7havia derretido, leite em pó solúvel da melhor multinacional. O homem do cobertor me fazia bolhas no copo. Eu rezava por um estômago bem longe da consciência, que aquele leite não se revoltasse com alguma injustiça, seja meu sono guardado em outro mundo, seja a consciência também algo que o tempo consome. Estava Eudanel também com fome? Resposta sem rodeio, o frio pedindo o grito mais alto na noite de vento, o estômago pode esperar pra falar de comida. Ou havia acabado de comer, sobra fria, requentada, o luxo da esmola, resto de marmitex? Aquele vento balançava a realidade trazia poeira distante, a voz beduína no portão, pobres pedintes, refugiados do egoísmo, do desprezo moribundo. E vem sempre, voltam sempre os Eudaneis (que não voltam para Santos) com as palmas de sempre e os nomes de nunca.
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