Sunday, January 02, 2005

UMA CARICATURA DO JEITÃO ACADÊMICO

(Publicado no "Modus Vivendi", em 1999)

No reino dos discursos lógicos geralmente afirma-se o lado pejorativo da representação caricata, tratando-a meramente como simplória e digna de reavaliação, correção. No reino do humor, a caricatura já pode emergir como um modelo de representação para qualquer experiência que busque o riso ou a descoberta de um traço significativo, uma analogia, antes cegamente ignorados. O texto que aqui se inicia almeja tratar das caricaturas do dito jeitão acadêmico, não furtando-se do risco mesmo de parecer caricato, pois, à prova dos nove, que lhe reste pelo menos um pouco de graça e beleza.
Para começar, eu diria que não é fácil entender o mundo acadêmico. Às vezes dá a impressão de ser somente um mundinho, ensimesmado, tratado sempre como se fosse algo fora do resto da humanidade a qual ele constantemente disseca ou dilacera nas suas disjunções analíticas de querer a tudo isolar para poder observar melhor. As lentes míopes e eurocêntricas do mundo acadêmico das ciências humanas, desesperademente ancoradas em autores e escolas de pensamento, produzem diversas impressões, dentre as quais, a de um grande circo romano, onde homens se degladiam para afirmar a sua tradição monovalente. Digo sim tradição, pois escolas se formam e sedimentam-se em suas práticas e teorias, construídas conforme um inaudito esboço prévio de toda uma visão da história e da vida humana. A tradição funciona para ser perpetuada independemente das novas que possam vir a surgir e colocar em xeque suas ideologias. Ela entroniza entidades e dogmas vitalícios que possuem sua adequação e correção coroados por mandamentos superiores, sagrados e divinos. Existem portanto tabus, núcleos bíblicos sagrados, isolados de qualquer possibilidade de alcance do nosso pobre questionamento mundano, ou melhor dizendo, terceiro-mundano - pois as especiarias teóricas não são produzidas, inventadas ou deliradas aqui, nos “pobres trópicos”: o sol na cachola dilui demais as idéias, não há consistência que aguente, vira tudo uma confusão, um suruba incontrolável, e aí quem cria essas idéias sem pai, filhas de um sopão do calor de quebra-coco?
A tradição, como eu dizia, é portanto a parideira da fórmula mágica: “em ciência nada se cria, tudo se copia”. De certo modo ainda impera em nossa vida acadêmica o peso histórico do Antigo Regime. A academia tem como merenda as modernidades e pós-modernidades e continua a arrotar a estrela maior da tradição. Não existe mesmo o tão sonhado estado de direito epistemológico, ou a cidadania epistemológica, essas miragens absurdas, pois eles sem dúvida só se efetivariam sob a utopia de um anarquismo metodológico, o qual, de longe, nega uma enormidade de procedimentos e práticas que se primam pela tradição. A academia preza por uniformidades que se trilham, queiramos ou não, por uma série de ideais voltados para a desejada apreensão e controle lógico dos seus objetos de estudo. Desse modo, os policiamentos discursivos adquirem contornos por vezes obsessivos e caricatos. Qualquer estilização que minimamente escape ao sacerdócio da divinizada forma enaltecida por determinada linha de pesquisa é logo amputada ou reprimida. Isso vem a se concretizar em um certo nível de controle dos discursos que aborta qualquer estilização ou desvio que possa anunciar-se como fruto de um não-saber, o qual talvez até venha a se mostrar como fecundo para aquele momento de desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Ou seja, o erro, como em nosso sistema educacional como um todo, é execrado, estirpado segundo os ditames e ditados das cartilhas da correção e do entronado estilo redundante-prosaico, purista. A cara feia e amarrada do purismo é eleita em função da tolerância zero ao erro. E o quanto se aprende com um erro já é muito bem aceito no imaginário acadêmico, no entanto a academia não permite-se como sujeito de errância. Prefere não correr o risco de perder um pouco o controle das variáveis e da linguagem-uniforme.
Cada corporação ideológica veste-se com sua linguagem específica e sua marca registrada, não permitindo qualquer espécie de orgia teórica, pois esta extrapola o ideal de completude visado pela lógica dual das desejadas e clássicas simetrias entre objeto e teoria, entre linguagem e mundo. As corporações, as patrulhas acadêmicas são clássicas no seu sentido mais obtuso, pois sonham e creêm piamente na perfeição das simetrias, na perfeita adequação entre o mundo e o que podem dizer, expressar dele. Isso tudo sem aperceber-se de que aí só se trata de uma questão de olhar, de beleza, de gosto, e não de verdade. Seu classicismo tacanho rodeia seus objetos no mesmo automatismo repetitivo do papagaio que mimetiza com perfeição mas não pode interpretar o que ouve com vistas à integração e associação com elementos naturalmente díspares da sua cotidiana e pequena existência.
Claro, não podemos negar, o realismo, o clássico, eles também podem revelar muito, pois são ótimos e fiéis escrivãos de fatos; fotografam e dão as provas do crime adequadamente, corretos com o que foi de fato, e foto, e em foco. No entanto o problema recai é na questão da interpretação, pois “as histórias baseadas em fatos reais” levam ao extremo a sua vitória tecnológica de querer também se afirmar como as rainhas das ciências do espírito, esbanjando descritivismos, “apresentações” (ao invés de somente representar), “imagens claras e transparentes dos objetos”, que não seriam nada se não houvesse alguém para dizer, nomear o que são, interpretá-las e inviesá-las.
Bom, como este artigo não é sério, mas somente uma caricatura. Como esta história não é baseada em fatos literalmente reais... O que visei aqui, no fundo, foi somente sugerir um pouco do quanto o espírito racional humano funciona segundo princípios de separação e exclusão, o quanto os estereótipos são fundamentais enquanto reguladores dessa mesma razão (como já nos dizia Kant); e o quanto a voracidade de veracidade contida nas profundezas de nossos impulsos categóricos e teóricos restringem a produção de conhecimento em ciências humanas, a qual possue tanto saber como sabor. Ou seja, produzir conhecimento, é produzir tanto verdade quanto beleza, é imergir tanto no mundo que informa quanto no mundo das formas.

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