(Texto que escrevi para a colação de grau de alunos de licenciatura da Unip em dezembro de 2003)
O mundo cão do desemprego está latindo lá fora. Daqui sabemos do seu cheiro. Sabemos de desafios que nos esperam. Lá fora, ou melhor, em todo canto, o mercado está no cio, e a tudo devora. Como conciliar amor e dinheiro? Como estimular o espírito crítico de nossos jovens se há sempre o mercado em nossos calcanhares pondo tudo à venda. Ideologias são descartadas, utopias de fraternidade cedem lugar ao produtivismo. Como amenizar desigualdades sociais? Querem o consenso em torno do produtivismo. Ou seja, vamos aumentar o PIB, o produto interno bruto. Às vezes é tão bruto o mundo do trabalho, da caça pelo emprego, pelo sucesso, pela fama sem rumo, pelo “quero mais é salvar o meu”, “pelo sai da frente que quero passar”. Tão bruto que um só planeta não agüenta. Aumentar o PIB... Sim, vamos aumentar o PIB global! Mas quantos planetas Terra precisaremos para isso?
Bom, não me alongarei muito sobre este papo de PIB. Mas é que o Deus-mercado está aí, uivando freneticamente seu cio, mudando tudo e a todos. A minha questão é: onde fica a educação? Estaremos preparando-nos e preparando nossos jovens somente para responder ao mercado? E a formação crítica, o que é isto? É discordar de tudo, é ver gratuitamente defeito em tudo? É ser cri-cri? Não, isto não é ser crítico. Krisis, em grego, significa análise detalhada. Ser crítico é ter a capacidade de conduzir uma reflexão aos seu limites, às suas diversas dimensões possíveis e tangenciar o impossível do pensamento, onde o pensamento ainda não chegou. Qualquer perspectiva educacional, se puder estimular o espírito crítico, estará cumprindo uma parte imensa de uma educação que não somente atue para adestrar e adaptar as pessoas a uma sociedade injusta. Se a busca de uma sociedade mais justa é um valor inquestionável; e se esta busca não é somente a retórica vazia de um discurso demagógico que se construiu na fachada de nosso sonho de nação; a formação de cidadãos críticos é um dever também inquestionável.
Segundo Freud (não me pergunte por quê), a educação é uma tarefa impossível. Impossível, mas para a qual não temos como virar as costas. A perfeição, sim, é impossível. A educação, jamais. Mesmo que impossível, é um dever, uma meta da qual não há como fugir. Talvez boa parte das grandes obras humanas sejam fruto de mirar o impossível e lutar por conquistá-lo. A educação, como um ideal, não se furtaria a isto.
Comte-Sponville cita o pensamento cartesiano: julgar bem para fazer bem. Julgar bem é a parte contemplativa. Fazer bem, a prática. Há quem seja mais dotado para a contemplação e quem seja mais dotado para a prática. O primeiro terá de aprender a querer, a agir. O segundo terá de aprender a ver, a contemplar, a analisar. Há atualmente um imaginário dominante que privilegia a prática em detrimento da crítica. É mais importante fazer do que pensar. Como se o pensamento jamais pudesse basear a ação.
A prática sem crítica, sem teoria, sem consciência da finalidade da ação que se realiza é somente um automatismo, uma prática alienada. Todo processo educativo deve ser desalienante. O que digo aqui não é somente uma conversa fiada para marxista ouvir, não. A alienação está presente em diversos níveis: tanto no nível social como no nível psíquico. Não ter a posse de si mesmo é estar alienado. Quando uma pessoa faz algo não sabendo porque fez, não reconhecendo-se no que faz, há alienação. Dar um chute no cachorro no final do dia porque se está com raiva do chefe e não saber que assim o fez porque tinha raiva do chefe, é praticar um ato alienado. Nossa função, tanto como educadores quanto como psicológos é também em boa medida, desalienar, fazer com que as pessoas se reconheçam mais em suas ações, que tenham a posse de si mesmas.
Talvez todo empreendimento humano tenha como meta ideal não simplesmente a felicidade, mas sim a sabedoria tal como ela pôde ser definida em nossa história ocidental. Sabedoria: o máximo de felicidade no máximo de lucidez. Mas qual seria o problema de ser feliz sem lucidez? Qualquer felicidade já não seria suficiente para aniquilar qualquer condição que se lhe imponha? Se a felicidade fosse um bem absoluto, a educação teria que deixar de sê-lo. Se a educação é um bem absoluto, a felicidade deve estar condicionada a ela. A educação visa o bem comum. Quando pensamos em termos de espécie humana, a educação é o que vem primeiro. Pois ela é o caminho que inventamos para a felicidade.
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