Comecei meu percurso na Psicologia em 1991, quando iniciei meu curso de graduação, e hoje, depois de tantos anos, tive possivelmente meu momento mais intenso de medo no contato com um paciente.
Pedro (nome fictício) está internado no CAPS há cerca de uma semana. Está em crise psicótica desde então. Houve um dia em que ele queria cigarros. Comprei um maço pra ele, o qual fumou em menos de 3 horas, depois de ter comido 10 pães no café da manhã e quatro marmitas no almoço.
E nada disso ainda o havia satisfeito. Queria mais cigarros e mais comida. Ainda está bastante agitado, com o comportamento e o discurso completamente desorganizados.
Meu grupo, agora à noite, estava com 20 pacientes, fora os familiares que os acompanhavam. Contudo meu grupo não é uma atividade apropriada para alguém que está na situação de Pedro. O grupo de metas é indicado para pacientes mais organizados. Porém Pedro entrava e saía de nossa sala com uma frequência muito grande. Entrava e saía rapidamente, falando sozinho, e batendo a porta. Fez isso por várias vezes hoje durante o tempo em que estive com essas mais de 20 pessoas, em atividades focadas, as quais demandavam silêncio e concentração, e Pedro sempre entrando e saindo, e interrompendo a fala dos presentes. Não foi nada fácil.
Até que de repente algo se insinuou como a pior das possibilidades. Pedro, com 1,80 m e mais de 100 kg, adentrou a sala bruscamente e se sentou em uma cadeira, com seu cinto de couro, amarrado às mãos, com a fivela pendendo, uma fivela enorme que ele fazia questão de balançar de um lado para o outro, com um olhar de ódio para todos que estavam ali, principalmente pra mim.
- O que é isso Pedro?
- Isso aqui é um chicote. Você sabe pra que serve um chicote?
Ele repetiu por algumas vezes a pergunta, com sua intensa dificuldade de dicção, devido à crise psicótica, à falta de suas próteses dentárias e a impregnação medicamentosa.
Assim fui contornando como pude, torcendo para que não se levantasse e viesse em minha direção. Se isso ocorresse eu pegaria a cadeira pelas mãos, e a colocaria à minha frente, como uma espécie de escudo, mas mesmo assim acho que, diante da agressividade de alguém do tamanho dele e com tal arma na mão, o resultado seria possivelmente bastante complicado para o meu lado.
Essa situação tensa, dele balançando aquele cinto, com aquela fivela enorme, com aquele olhar de ódio, durou mais ou menos uns 3 minutos. Então ele se levantou e saiu da sala. Fui até a enfermaria e fiz o que pude para que todos os funcionários presentes no CAPS pudessem se amparar da melhor forma possível.
Como já estava no horário da medicação dele, foi isso o que foi feito, e parece que assim ficou um pouco menos agitado.
Retomamos as atividades do grupo, e mais coisas extremas continuaram a ocorrer, mesmo sem a presença de Pedro.
Atendi no grupo um caso novo, muito parecido com aqueles casos da série House, nos quais um paciente tinha uma infecção que havia afetado o cérebro, e feito com que tivesse surtos psicóticos recheados de agressividade e autodestruição. Fora a gritaria da discussão que um casal teve no grupo, sendo que esse casal está atualmente em risco sério de agressões físicas, pois a postura do marido é muito possessiva e ameaçadora, naqueles típicos contextos suscetíveis a feminicídio.
Aí Pedro adentrou a sala mais uma vez, interrompendo mais uma vez a fala dos presentes, só que agora em minha direção, para me abraçar e me pedir desculpas pelo episódio do cinto. Ficamos, diante de todos ali, abraçados por um bom tempo, com ele me pedindo desculpas repetidamente, e eu repetidamente aceitando suas desculpas e lhe abraçando, com carinho, e olhando em seus olhos, o que era pronta e intensamente retribuído por ele.
Um dos pacientes sugeriu que orássemos por ele. Todos aceitaram a sugestão, inclusive Pedro. Sentou-se e todos pousaram suas mãos nele, e assim foi feita a oração.
Depois alguém da equipe me disse que ele estava com a higiene precária, com odor forte. Em nenhum momento eu percebi isso, e achei bom que não tenha mesmo percebido. Pedro está precisando de mais atenção e carinho. Hoje demorei para me aperceber disso, e não tive tempo suficiente pra ele. Perdão, Pedro...
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