Tuesday, June 26, 2018

Pacientes aventureiros

Já pude atender alguns pacientes, ou mesmo conhecer pessoas, cujas histórias de vida estão recheadas de aventuras e acontecimentos impressionantes. Não me lembro de ter escutado histórias similares, provindas de pacientes que não tivessem sintomas psicóticos. O comprometimento do juízo de realidade está sempre presente.

Um dos grandes problemas é que essas pessoas são bastante gratificadas por seus comportamentos aventureiros e de risco, os quais, no final das contas, costumam gerar danos para elas e suas famílias.

A primeira vez da qual me lembro em que tive contato com alguém loucamente aventureiro, que simplesmente saia andando pelo mundo, sem planejamento nem rumo, foi em 1996 quando, em um ônibus, de Ribeirão Preto para Campinas, sentei-me ao lado de um senhor, cujo comportamento era um pouco chamativo e desorganizado, mas com uma desorganização que chamava atenção, que era talvez concebida por muitas pessoas como algo engraçado.

Era divertido conversar com ele. E essas pessoas percebem que estão sendo divertidas, que outras pessoas estão gostando de observar e interagir com a sua loucura.

Durante a viagem, lembro-me dele ter me relatado o quanto que já havia viajado, completamente sem rumo, pelo Brasil todo. Depois contou-me de sua vida, anteriormente a toda a desorganização decorrente de seu processo de transtorno mental.

Relatou-me que era motorista particular, que tinha uma vida comum. Porém, a partir do momento em que começou a ter suas crises, adentrou uma nova fase na qual as internações psiquiátricas e os tratamentos desumanizados passaram a fazer parte de sua biografia, inclusive com o relato dos eletrochoques que havia tomado, e o quanto havia sofrido com aquilo tudo. Tinha os olhos esbugalhados, e era estrábico, e inclusive atribuía seu estrabismo ao tratamento torturante que havia sofrido durante as vezes em que esteve internado.

No CAPS me lembro de ter atendido a dois pacientes que viveram muitas aventuras, as quais incluíam viagens. Um deles relatou que tinha dois filhos, e que morava com eles e a esposa, com uma vida absolutamente comum, no interior de algum estado do nordeste. Porém disse-me que se cansou dessa vida, e que queria sair dali daquela pequena cidade e explorar outros lugares, para poder inclusive aumentar a renda da família.

Disse-me também que estava bastante cansado de viver na mesma casa que a sogra. Relatou que não aguentava mais conviver com ela. Queria ter seu próprio canto, juntamente com sua família, mas até mesmo a relação com sua própria esposa já havia se desgastado em função de estarem vivendo na casa da mãe dela.

Porém a forma como decidiu que seria a melhor para dar um jeito nessa situação foi de repente, sem qualquer tipo de aviso, ir embora para outro estado do Brasil. Quando soube que havia uma oportunidade de trabalhar em uma mineradora no interior do Pará, simplesmente preparou uma pequena mala com somente uma troca de roupas e se foi, sem sequer avisar a esposa e aos filhos sobre o que estava fazendo. Depois de um ou dois dias, quando já estava no Pará, é que resolveu telefonar, avisando-lhes do que havia feito.

Ficou alguns meses nessa mineradora, e quando cansou-se também dessa vida resolveu ir para fora do Brasil, para uma das Guianas, para também trabalhar em alguma coisa referente a mineração ou exploração de madeira, no interior da floresta. Relatou-me que conheceu as Guianas e o Suriname, forcendo detalhes de cada um desses lugares, com os nomes das cidades e vilarejos, o que me fazia pensar que não estava inventando tudo aquilo, o que inclusive foi depois confirmado por familiares, quando pude escutar a essas pessoas também.

Outro paciente também me impressionou bastante, e sabia que impressionava as pessoas, e sabemos o quanto isso dificulta um processo de remissão, pois há assim um retorno, tanto em termos da liberdade que vivenciam viajando, quando bem querem, quanto da própria comunidade que se impressiona com o que eles fazem, achando engraçada boa parte de seus comportamentos.

Quando o vi pela primeira vez, lembro-me de ter pensado que ele talvez fosse algum gestor da secretaria de saúde, porque estava muito bem vestido e com uma aparência padrão para pessoas que estão em postos de comando: alto, elegante, eloquente, e muitas vezes vinha ao CAPS vestido de terno.

Depois, conforme fui ouvindo-o, pude me dar conta do comprometimento de seu juízo de realidade, de sua megalomania, e que inclusive usava esse mesmo terno para vender balinhas nas ruas - o que não necessariamente caracteriza comprometimento do juízo de realidade, mas chama a atenção quanto ao fato de ser um comportamento que possui uma estética audaciosa. Contou-me muitas histórias sobre seu relacionamento com políticos, de altos cargos que havia ocupado nos locais onde havia trabalhado e diversas outras histórias um pouco difíceis de se acreditar.

Até que um dia sua esposa compareceu ao CAPS, e pude verificar com ela o que era verdade e o que não era. Ele certamente havia distorcido uma série de acontecimentos, para torná-los maiores porém, por outro lado, havia outros acontecimentos também impressionantes que havia omitido de mim.

Ele também tinha uma vida na qual desfrutava de grande liberdade, simplesmente desaparecendo. Era alguém que tinha o hábito muitas vezes de não voltar para casa, e ficar dias fora de casa, sem dar qualquer tipo de notícia, e em algumas dessas situações viajava para outras cidades.

Agindo dessa maneira, chegava um momento em que seus recursos se esgotavam e passava então a perambular pelas ruas de onde estava. Como nesses lugares suas interações com as outras pessoas eram marcadas por desencontros, pela percepção, dessas pessoas, de que seu juízo de realidade estava comprometido, principalmente com delírios religiosos e megalômanos, no final das contas acabava sempre sendo encaminhado para alguma instituição psiquiátrica, e internado por alguns dias até que sua esposa viajasse para a cidade em questão para trazê-lo de volta ao Distrito Federal.

As histórias que contam são muitos boas de se ouvir. A conversa com eles é sempre muito interessante, instigante, e eles sabem disso. Obviamente que é melhor que tenham rede social e apoio, que acabam angariando com sua simpatia e suas histórias fabulosas. Contudo existe um ciclo de gratificação de comportamentos psicóticos que é muito difícil de se romper, inclusive pelo fato de que é difícil colocar algo melhor no lugar disso, das redes sociais e de apoio das quais já dispõem.

A impressão que tenho é que a remissão, nesses casos, é muitas vezes somente facilitada com o avanço da idade. Quando essas pessoas começam a perceber limitações físicas significativas para as suas aventuras.

No caso de pessoas com transtorno de personalidade antissocial (que o senso comum denomina como psicopatas), isso já é um dado epidemiológico estabelecido: observa-se remissão, de modo significativo, somente a partir dos 45 anos de idade.

Porém não posso me esquecer que inclusive em minha família testemunho um caso no qual existem muitos comportamentos parecidos com esses que relatei, os quais geralmente são classificados pelos psiquiátricas como sintomas relativos ao transtorno afetivo bipolar (em sua fase maníaca). Esse caso, em minha família, possui um histórico de mais de 30 anos. A pessoa em questão já está com quase 70 anos de idade, e ainda desaparece e sai pelo mundo afora para viver algumas aventuras.

Concebo portanto que são casos de difícil manejo, pois em termos de planejamento de redes sociais, para que se alcance uma remissão, há uma dificuldade muito grande, pois esses pacientes não ficam reclusos à família. Sempre conseguem extrapolar, e escapar das interações mais próximas ou familiares, para se abraçarem com o mundo. Transformam o mundo em sua rede de apoio para as aventuras e loucuras que vivenciam em seu cotidiano.

No final das contas a maioria delas acaba tendo uma estabilização maior de seus sintomas quando passam a ingerir os medicamentos, geralmente estabilizadores de humor e um ou outro antipsicótico, de forma mais regular. Enfim, loucuras incontornáveis muitas vezes são o preço de se conquistar o mundo, ou a ilusão de que essa conquista somente pode ser remunerada com a simpatia e diversão dos outros.

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