Wednesday, December 28, 2022

Pois é, doutores...

 Acerca dessa tradição atrasada de chamarmos quem quer que seja por meio do termo “doutor” na frente do nome,  lembro de um fato curioso que ocorreu comigo no final da década de 1990 ou bem início dos anos 2000.

Um sujeito, advogado, bacharel em direito, devia dinheiro à minha mãe. E ela já havia me dito que ele estava utilizando de diversos meios, que não os legais, para não pagá-la. 

Este sujeito fazia, por sinal, questão de ser apresentado ou tratado como “doutor”. Minha mãe sempre se referia a ele como o Dr. Luis (nome fictício). Era Dr. Luis pra cá, Dr. Luis pra lá. E ela, que não havia concluído nem mesmo o ensino fundamental, ia, com muita sabedoria, levando o Dr. Luis no banho-maria.

Eu já não tinha tanta paciência. Hoje tenho mais. Não chamava ninguém de doutor. Eu ficava indignado com essas formas obtusas de tratamento que nossa história de opressão ainda insiste em perpetuar.

Pois bem, um dia atendo o telefone, e quem era? 

“Ah, sim, o senhor deseja falar com minha mãe? Seu nome, por favor?” 

“Doutor Luis...”, respondeu. 

Era o coisa ruim, o próprio. 

“Doutor Luis?”, perguntei. 

“Sim, meu caro, Doutor Luis”. 

“Perdoe-me a pergunta, mas, por curiosidade, o senhor tem doutorado?”. 

Eu já tinha o título de mestrado e ainda achava interessante fazer tal pergunta, problematizar esta questão. Dr. Luis, porém, ficou ofendido com a pergunta. 

Foi logo dizendo que defender um processo jurídico, como advogado, era o equivalente a produzir um doutorado, “que a defesa de uma causa equivalia a um doutorado”. 

“Não equivale não. É doutor aquele que defendeu uma tese de doutorado”, respondi.

Ficou ainda mais ofendido e perguntou rispidamente: 

“E você, é o quê?”. 

“Não sou nada”, respondi. 

“O que você faz da vida? Trabalha com quê?”, reiterou com mais precisão. 

“Não, não sou nada. Somente sei que doutor é quem fez doutorado. O senhor aguarde um momento, que chamarei minha mãe (...) Mãe, telefone para a senhora. Sr. Luis.” 

E fiz questão que ele ouvisse. Eu não o chamaria, em hipótese alguma, de doutor.

Inflexibilidade pela qual não respondo mais. E o Dr. Luis não perdoou, passou uns cinco minutos me debulhando para a minha mãe ao telefone. E depois ainda tive de ouvir mais uns minutos de colérico e inflamado sermão da progenitora. Para ela ele continuou como Dr. Luis. O Dr. Luis que ela acionou juridicamente e teve, apesar da arrogância, de pagá-la com todos os juros e correções devidas. Ele não possuía metade da sabedoria dela.

E hoje, para evitar dor de cabeça, acabo chamando de doutor um ou outro médico ou advogado. Mas, confesso: é com uma certa ironia.

Thursday, December 22, 2022

Maradona me empolga mais do que Pelé

Pelé é para nós, brasileiros, um ícone de uma grandeza única. Simétrico, olímpico. A perfeição. Garrincha e Maradona, por outro lado, eram mais trágicos e me encantam mais, sem nem mesmo eu precisar entrar no mérito de quem foi melhor. Isso não me importa. Garrincha e Maradona eram mais marcados por imperfeições e surpresas. E como conheci melhor Maradona, quero me ater a ele. 

A baixa estatura e as pernas curtas ajudavam em muito a lhe conferir a surpresa e a sensação de absurdo ao vê-lo jogar. Conduzia e tocava a bola com toques curtos. Eu sinto que mal consigo ver os movimentos de suas pernas, já que eram curtas. Era como se ele rolasse junto com a bola, como se seus movimentos também fossem todos esféricos e de rolamento, e isso me remete ao andrógino, esse ser da mitologia grega, que era perfeito e todo esférico. 

Maradona era aquele sujeito nada simétrico, que produzia simetrias complexas. E de repente lá estava Maradona, correndo com a bola, que também, assim como com Messi, parecia impossivelmente grudar em seus pés.

Bola grudada no pé. Mas não perfeitamente, porque grudava e escapava, repetidamente, enganando a legião de zagueiros que o perseguia e o cercava. Aquele mundo de jogadores juntos a correr atrás de algo, que sumia no meio dessa multidão. Era Maradona. 

E de repente essa bola parece que espirrava de seus pés para algum colega, que marcava o gol. 

Ele praticamente fez só isso contra o Brasil nas oitavas da copa de 1990. E bastou isso para vencerem, por 1X0. Como todo craque, bastou um único lance.

E quem acompanhou a copa de 1986 sabe muito bem do que estou falando.

Tuesday, December 20, 2022

Nem mérito, nem culpa

Nem mérito, nem culpa. O mérito, ou a culpa, são do acaso e do mundo, que foram generosos, ou adequados, conosco. E obviamente que não estou falando aqui de questões judiciais ou morais.

E, rumando um pouco para uma certa ontologia existencial, é possível afirmar que ninguém tem culpa ou mérito por ser o que é. Culpa ou​ mérito talvez somente se apliquem a ações ou interações específicas, para as quais precisamos definitivamente apontar os responsáveis diretos. Sabemos que cada um ser o que é, e ter ou não responsabilidade sobre isso, é outra história.

Wednesday, December 14, 2022

Não é suicídio. É outra coisa...

Pacientes suicidas são algo com o qual qualquer psicólogo, e muitos profissionais de saúde, irão lidar com alguma frequência. Em minha experiência, no SUS, tenho que lidar com essa questão, com bastante frequência, no CAPS.

Quando o usuário (o paciente) chega ao CAPS pela primeira vez, deve passar pelo acolhimento (avaliação), para se proceder uma primeira análise do caso, com o objetivo de se saber qual é o melhor encaminhamento. Então, nesse primeiro contato, informamos que estamos fazendo uma avaliação e que, após esta, o paciente será encaminhado para o que será mais adequado e benéfico para o seu caso.

 Em nosso CAPS, como guia para esse primeiro contato, temos a ficha de acolhimento.  Esta ficha contém cinco eixos, cinco pontos de peso, a serem levados em conta: histórico psiquiátrico, sintomas, funcionalidade, risco auto e heterolesivo e redes de apoio.

Todos esses pontos devem ser levados em conta para se decidir sobre o encaminhamento mais adequado, pois os CAPS atendem, preferencialmente, casos graves. Então há fatores que aumentam a possibilidade de um paciente ser avaliado como elegível para acompanhamento em CAPS. São eles: a existência, o número e a duração de internações psiquiátricas; sintomas relacionados à perda do juízo de realidade (geralmente psicóticos), funcionalidade básica comprometida (atendemos pessoas até mesmo incapazes de tomar um banho ou de comer sozinhas); alto risco de cometer suicídio ou homicídio; e isolamento social.

Essa avaliação não é absolutamente objetiva, mas se trilha por esses pontos. E se o paciente não for elegível para acompanhamento pelo CAPS, deve se proceder seu encaminhamento para outro serviço da rede de saúde mental.

Em relação ao risco autolesivo devemos avaliar, no acolhimento do paciente, se existe ideação suicida, assim como a sua intensidade. Devemos então perguntar se o paciente tem pensado em morrer, e não basta que ele diga que sim, para que isso seja classificado como ideação suicida.

Alguém que somente diz que muitas vezes tem o desejo de “sumir”, de “desaparecer”, não é necessariamente alguém que esteja planejando cometer suicídio. Em termos de nível de ideação suicida, querer “desaparecer” é o que existe de mais leve na escala. Querer morrer, estar pensando em se morrer, estar pensando em se matar, estar planejando fazer isso, ter acesso a meios, e ter acesso a meios mais letais é uma configuração mais adequada de um possível escala de ideação suicida, que se estende gradualmente de sintomas leves a graves. E é assim que deve ser minimamente avaliada a ideação suicida e seu nível de gravidade.

Em minha experiência, no SUS, não tive porém contato com suicidas, com ideações suicidas, somente no CAPS. Na UTI também acompanhei pacientes que haviam tentado o suicídio. E, como já devo ter mencionado, minha atuação, durante seis anos, foi concomitante, tanto no CAPS quanto na UTI. Em metade de minha carga horária eu atuava no CAPS e a outra metade se dava na UTI.

A maioria dos casos que acompanhei era de mulheres que haviam tentado morrer por meio da ingestão de medicamentos. Dois casos, porém, de tentativas cometidas por dois homens, foram os que mais me marcaram, em função dos meios utilizados e das consequências.

O primeiro caso era de um paciente anteriormente acompanhado pelo CAPS. Eu nunca havia atendido Arnaldo (nome fictício) no CAPS, e nem mesmo o conhecia. Só vim a saber que fora acompanhado pelo CAPS depois que já estava internado na UTI. Como já faz mais de 5 anos, não lembro dos detalhes, mas me recordo que Arnaldo aparentava ter entre 55 e 60 anos de idade, e tentou morrer cortando seu pescoço com uma faca. E seu golpe foi tão profundo, que sua traqueia foi cortada ao meio, por completo. Lembro-me também que, à época, pouco consegui interagir com ele. Arnaldo permaneceu durante muito tempo, muitos dias, completamente inconsciente. E nos dias em que esteve acordado, mostrava-se muito desorientado, fazendo com que nossa comunicação ficasse bastante comprometida. Fora o fato de ele receber talvez poucas visitas, ou então eu não ter tido a oportunidade de estar presente quando seus conhecidos e familiares lá estiveram para visitá-lo.

Então, no final das contas, não conheci melhor Arnaldo, nem no CAPS, nem na UTI. E também não sei como ele está hoje pois, do que tenho notícias, não tenho conhecimento sobre se ele retornou ao acompanhemento pelo CAPS ou não, e não sei nem mesmo como está atualmente. E não saber, com o grande volume de fluxo com o qual trabalhamos, é algo comum. O volume de pessoas que procuram nosso CAPS é muito grande, e muitas vezes somos simplesmente atropelados pela “correria”. Minha concepção de CAPS e UTI é muita clara: CAPS é o SUS que dá certo, que funciona. A UTI infelizmente não, porque representa um modelo biomédico falido e centrado em hospitais. Por isso que os relatos que faço nesse livro, sobre CAPS, são de modo geral nitidamente mais otimistas e empolgantes.

O outro caso de tentativa de suicídio que me marcou bastante, na UTI, foi o de Roberto (nome fictício), 35 anos de idade. Roberto estava fora do Distrito Federal, em um estado do Nordeste, cuidando de seu pai, que padecia de diabetes. Pegou uma quantidade grande da insulina, que aplicava em seu pai, e aplicou em si mesmo. Mas não morreu. Ficou com sequelas graves, e esteve internado na UTI durante meses, até seu falecimento. A minha lembrança é a de que sofreu muito. Tinha três filhos pequenos e sua tentativa de suicídio estava relacionada a uma vida financeiramente precária e muito sofrida, que ultrapassou seus limites de resistência. Roberto não suportou a pobreza, as péssimas condições de vida de seu pai, de sua esposa e filhos, além também do sofrimento por estar longe deles. Também não foi pouco penoso para mim acompanhar todo o seu drama, até o fim de tudo, sempre de modo brutal e revoltante.

E, da minha experiência como psicólogo e como pessoa, uma coisa é clara: todo o processo em direção a um suicídio é um ato muito solitário e horrivelmente triste. E quando algo grave se deflagra é um horror angustiante no seio de qualquer família que o experimenta. Então falar abertamente sobre o suicídio, tentando diminuir o tabu e sua proibição absoluta, é o que hoje faço como parte de minhas estratégias de prevenção.

O suicida precisa de vínculo, apoio, cumplicidade, carinho, amor, companhia, e muita conversa franca e transparente sobre seus desejos e planos para morrer. Sem desafios nem chantagens, e sabendo sempre que ele é o dono e responsável por sua própria vida.

Contudo, quando me lembro de vários casos de pacientes desenganados e internados por meses a fio naquela UTI, muitos dos quais inclusive pedindo para morrer, para mim fica claro que a vida de algumas pessoas pode adentrar um vórtice de sofrimentos extremos e incontornáveis. E aí, mesmo assim, muitos dizem:

- Ah, mas isso aí tem cura. Isso aí tem solução.

Tem cura, tem solução, veja bem, teoricamente. Porque, em muitos casos, no contexto em que a pessoa está vivendo, isso não foi possível e ninguém está conseguindo aliviar seu sofrimento extremo. E pior: essa pessoa não tem a menor condição nem mesmo de dar cabo de sua própria vida, pois em muitas situações ela está completamente paralisada, dos pés à cabeça, presa a uma cama, em seu próprio corpo agonizante.

E aí a minha questão é a seguinte: se ela comunica por meses, ou até anos a fio, que o sofrimento dela é absolutamente insuportável e nós, a família e a sociedade como um todo, que estamos cuidando dela, não damos conta de aliviar esse sofrimento, ela precisa então de ajuda para morrer. Porque seria exatamente isso o que ela faria se tivesse condições para tal, se pudesse se locomover, se movimentar, em um contexto tão extremo e penoso.

E há também o caso de algumas pessoas que talvez tivessem condições de dar cabo de sua própria vida com suas próprias mãos, as quais contudo preferem não fazê-lo dessa forma. Preferem mostrar ao mundo e à sua família que não estão simplesmente cometendo suicídio. Que estão simplesmente lutando para deixar de sofrer de modo tão intenso e irremediável. Que precisam do consentimento da família para tal. Que precisam de um ritual de despedida.

É o que, em parte, retrata um documentário de 2013 (Neighbour, 2013), da rede de televisão ABC, na Austrália, assim como vários outros textos presentes na internet. Narram como Jay Franklin, nascido em 1976, vinha lutando contra sua doença crônica incapacitante, que lhe causava sofrimento extremo e irremediável. Jay sofria da Doença de Hirschsprung (megacólon congênito), uma enfermidade congênita, caracterizada pela ausência de alguns grupos de neurônios em partes do intestino grosso. Os principais sintomas são: obstrução e distensão intestinal, infecções, vômitos, dores intensas, comprometimento do crescimento normal, e em cerca de 30% dos casos está associada a outras anomalias congênitas.

Então, para que não seja fatal, desde o nascimento são necessárias cirurgias para a retirada de partes do intestino, sendo que Jay foi submetido a mais de 100 cirurgias, tendo todo o seu intestino grosso e a maior parte de seu intestino delgado removidos. Sua condição era marcada por internações hospitalares frequentes, constantes dores crônicas severas e infecções repetidas, associadas à alimentação intravenosa e supressão imunológica. E em 2015 foi informado de que não era candidato a um transplante de intestino (“Euthanasia Pioneer Dies”, 2017).

Sua vida chegou a um ponto de sofrimento intenso, constante e irremediável. E isso fez com que começasse, em 2012, lutar pelo direito de morrer com dignidade. Entrou com um pedido para que fosse aceito pela Clínica Dignitas, na Suíça, a qual ajuda pessoas do mundo todo, que estão sofrendo como Jay, a morrerem. Seu pedido foi aceito. Porém Jay decidiu que iria lutar para alterar a legislação em seu país, para que a eutanásia voluntária e o suicídio assistido fossem legalizados.

Nesse documentário para a ABC, a fala de Jay Franklin é muito clara e até didática, ao tentar demonstrar que o suicídio assistido não é como um suicídio comum:

 

"Eu não quero fazer algo irracional. Você sabe, eu não quero me enforcar. Eu não quero me matar. Eu não quero pular de uma ponte. Eu não quero me jogar na frente de um trem, porque isso é suicídio. Não é suicídio, o que eu pretendo fazer.

(...)

Eles não tiveram de estar na minha pele nos últimos 36 anos e eles não estão passando pelo que passo todos os dias, você sabe, e não é sobre eles de qualquer maneira no final do dia. É sobre mim e eu sendo capaz de fazer minha própria escolha." (Neighbour, 2013)

 

Jay e todos os que o amavam já tinham aceitado que não havia mais outra alternativa a não ser morrer, pois todos já haviam feito tudo o que podiam, e o que não podiam, para acabar com a tortura que estava massacrando com todo e qualquer possível sentido para a vida moribunda, absurda e inaceitável que ele levava. Todos de sua família, apesar de toda a dor que isso implica, aceitavam a decisão dele de não mais continuar vivendo.

Jay, porém, lutou pela legalização do direito de morrer com dignidade, em seu país, Austrália, durante 5 anos, e veio a falecer entre outubro e novembro de 2017 devido a complicações resultantes das doenças crônicas que sofria.

Em um outro caso, também em uma entrevista, um rapaz, o qual já tinha tido o seu pedido para o suicídio assistido aceito para ser realizado na Suíça, foi perguntado assim pelo entrevistador:

- Mas você tem opióides de sobra em sua casa. Por que não utilizá-los?

E ele respondeu mais ou menos assim:

- Acho horrível e abominável a perspectiva de um suicídio comum, a perspectiva de minha mãe chegar em casa e encontrar repentinamente meu corpo morto. Desejo o consentimento e o ritual de despedida de minha família. A minha decisão vem sendo debatida com todos os membros da família há muito tempo. Tivemos conversas intermináveis. Fizemos absolutamente tudo o que podíamos ter feito, envolvendo sacrifícios de várias pessoas de nossa família, sem contar o maior deles, que é o meu próprio sacrifício nessa história toda.

Ele deixava claro o fato de que o pedido dele para ter direito ao suicídio assistido tinha sido aprovado segundo critérios específicos, rigorosos e muito claros, organizados segundo uma fundamentação consistente da legislação de seu país. Ou seja, o direito de morrer não se estende para toda e qualquer pessoa.

Em lugares como Suíça, Bélgica, Holanda e alguns estados americanos, existe sim o direito de morrer. Mas não são todas as pessoas que têm esse direito. São pouquíssimas as pessoas que podem fazer uso dele. E quem tem esse direito? Ele se aplica, de modo geral, para o caso de pessoas que se encontram em estado terminal ou padecendo de sofrimentos intensos e incontornáveis.

É inclusive também, atualmente, o que reconhece uma das instituições mais respeitadas mundialmente na área de prevenção ao suicídio, a Associação Americana de Suicidologia (American Association of Suicidology, 2018):

 

"Em geral, suicídio e assistência médica para se morrer são fenômenos conceituais, médica e legalmente diferentes, com uma quantidade indeterminada de sobreposições entre essas duas categorias. A Associação Americana de Suicidologia se dedica a prevenir o suicídio, mas isso não tem relação com a morte refletida e antecipada que um médico pode legalmente ajudar um paciente moribundo a facilitar, seja isso chamado de suicídio assistido, morte com dignidade, morte assistida por médico ou ajuda médica no morrer. De fato, acreditamos que o termo “suicídio assistido por médico” em si constitui uma razão crítica pela qual essas categorias de morte distintas são tão frequentemente confundidas [suicídio e suicídio assistido], e devem ser excluídas do uso. Essas mortes não devem ser consideradas casos de suicídio e, portanto, são um assunto fora do foco central do AAS."

 

Para finalizar acho importante reiterar a consideração de Paul-Henri Thiry, o Barão D'Holbach, em um livro escrito juntamente com Denis Diderot, em 1770:

 

"Se a aliança que une o homem à sociedade for considerada, será óbvio que cada contrato é condicional, deve ser recíproco, isto é, supõe vantagens mútuas entre as partes contratantes. O cidadão não pode ser ligado ao seu país, aos seus associados, mas pelos laços de felicidade. Se estes laços são cortados em pedaços, a este homem deve ser restabelecida a liberdade. A sociedade, ou aqueles que representá-lo, ao usá-lo com severidade, ao tratá-lo com injustiça, não tornam assim a sua existência dolorosa? A melancolia e o desespero lhe roubam o espetáculo do universo? Em suma, por qualquer razão que seja, se ele não é capaz de suportar seus males, deixe-o sair de um mundo que para ele é somente um deserto terrível." (D'Holbach, 1770/1970, 136-137)

Este relato foi retirado do livro "Agonia e sonho: memórias e reflexões de um psicólogo nos meandros do SUS" (2021), de minha autoria.

Todas as referências estão no final da obra, que pode ser encontrada facilmente na internet.

Sunday, December 04, 2022

O fim de Jair

Aliados e amigos alegam que Bolsonaro está com depressão. Ele já se comporta ou tenta aparentar que está retraído socialmente. Está recluso, interagindo bem pouco e apático.

Foi ontem que li sobre isso, sobre seu suposto quadro depressivo. E esta noite acabei sonhando com ele, como alguém próximo. No sonho ele exercia o papel de alguém como um tio, um colega de trabalho ou até mesmo um paciente.

Já não estava mais simplesmente em retraimento social. Já estava padecendo de algo bem mais grave, isolamento social, que ocorre quando há desqualificação e marginalização social. Nesse sentido não é mais a pessoa que não quer interagir com o mundo. É o mundo que já não interage mais com ela, isolando-a, marginalizando-a. É um estado cruel de desqualificação, de descrédito social. 

E era esse o Jair de meu sonho. Um desqualificado. Alguém em quem ninguém mais confiava, em casa, nas ruas e no trabalho. Ele estava sempre por perto. Mas quase nada do que dizia era valorizado. No trabalho era aquele colega que todos evitavam e detestavam. Ele, como sempre, fazia o tempo todo diversos comentários inconvenientes e horrorosos. As pessoas, porém, não davam mais bola. Somente toleravam aquele sujeito inútil e infeliz. 

E eu ali, por perto, fazendo meu trabalho. Tratando Jair como trato qualquer paciente que apareça para mim, seja no CAPS ou na UTI. 

Por sorte não trabalho mais na UTI, desde 2016. Ali muitas vezes ajudei os fisioterapeutas, fazendo massagens nos pacientes ou tentando alongar um pouco suas pernas. 

E lá estava eu, no sonho desta noite:

- Diga, Jair, o que está acontecendo? 

Ele então olhou para mim, sorrindo, como sempre, com seus dentes cariados, me pegou pelo braço, e falou bem perto de meu rosto, soltando perdigotos: 

- Ah, Adriano, não repare no que vou lhe dizer, mas esse pessoal aqui do CAPS é meio fresco. É tudo meio boiola, hahahaha... 

Alguns dos servidores o olhavam com expressão de desdém ou nojo. 

Ele continuava me segurando pelo braço, me abraçando. 

- Então, Adriano, a gente tem que namorar, cara! Eu sou apaixonado por você – tentando me abraçar. 

- Abraça, direito, seu Adriano! 

Apontava para os colegas e dizia: 

- O Adriano fica fugindo de mim. Acho que ele tem algo de boiola, de verdade. Eu abraço e ele fica irritado. O que é, tá com medo de sentir que gosta? Se você é macho, de verdade, não tem porque ter medo... 

E ele sempre se aproximava, com uma mão boba. Eu o segurava com uma chave de braço, imobilizando-o.

- Caraio, seu Adriano. Cê tá manjando do jiu-jitsu, hein? 

- Pois é, seu Jair. Não pode fazer isso com as pessoas. Eu não posso deixar que o senhor faça isso. É estupro, sabia? 

- Tá bom, tá bom. Prometo que não faço mais. Agora me solta e vamos só conversar, vai... 

Soltei. 

- Ah, seu bichinha, eu sabia que você não ia aguentar muito tempo – e tentou me dar um soco. 

- Poxa, seu Jair. Assim fica difícil, hein... 

- Hehehe, quase te peguei. 

E novamente o contive, por alguns minutos. 

- Tudo bem, Adriano. Pode soltar. Eu desisto. Você ganhou. 

Despedi-me dele e fui fazer relatórios. 

Depois de cerca de uma hora cruzo com ele novamente nos corredores. Estava chorando, com uma coriza que lhe escorria pelo rosto, seus olhos azuis se destacavam na vermelhidão do choro e das lágrimas. 

- Ninguém gosta de mim. Essa vida não tem mais valor. Eu vou lá pra a avenida. Vou me jogar na frente dos carros... 

- Jair, querido. Mas você tava tão bem agora há pouco? Até tinha feito piada e lutado jiu-jitsu comigo, lembra? O que tá acontecendo? 

- Ninguém gosta de mim. Desse jeito é melhor morrer... 

- Senta aqui. 

- Não consigo. Eu tô com o corpo todo doendo. Tá tudo ruim. Não tenho mais porque viver. 

Coloquei-o então sentado em um colchonete e comecei a ajudá-lo a se alongar. Apareceu um fisioterapeuta, que me instruiu. 

Eu fazia por Jair, aquele genocida do passado, agora em séria convalescença, tudo de melhor que já tinham feito por mim um dia. Porque minha especialidade não era matar.

 

 

Sunday, November 27, 2022

O que é o futebol?

Futebol é o jogo surpreendente com uma bola que rola. Com alguma avalanche de pedras que se anuncia nos declives de nossas angústias e desesperos. É um jogo difícil, jogado com os pés. Há algo meio primitivo ou selvagem nisso. A bola não pode ser manuseada. As mãos, que constroem e constituem o mundo humano, tão caracteristicamente humanas, não entram na equação. E mesmo assim é uma encenação quase perfeita da vida, cuja finitude não pode ser manipulada. Porque nessa vida, com todos seus revezes, acasos e surpresas, apesar das mãos e de todo o seu poder, a gente precisa também se jogar e jogar com os pés.

As surpresas do futebol

É difícil uma copa do mundo de futebol não ser divertida ou não ter algo divertido.

Acompanho copas desde de 1982, quando o Brasil era a sensação, com seu futebol-arte e goleadas em quase tudo o que é time. Mas a grande surpresa foi mesmo a Itália, que na primeira fase empatou em 0 x 0 com a Polônia, 1 x 1 com o Peru e 1 x 1 com Camarões. Mas que da segunda fase em diante foi progressivamente arrasadora, batendo a Argentina de Maradona por 2 x 1 e o favorito, o Brasil, por 3 x 2, com 3 gols de Paolo Rossi em ascensão fulminante durante a competição. Sendo que daí em diante ninguém mais segurou os italianos, até a sua vitória na final por 3 x 1 contra a Alemanha.

Em 1986 a sensação foi a Argentina, com Maradona, que nos presenteou com lances e gols incríveis, sendo um deles um dos mais bonitos de todas as copas - aquele no qual ele percorre quase o campo todo, driblando meio mundo e o goleiro. Mas também tivemos outras surpresas, como a Dinamarca, que a imprensa chamava de Dinamáquina. Porque os dinamarqueses tinham sido arrasadores nas eliminatórias, com várias goleadas memoráveis nos anos anteriores, além de, na primeira fase, vencerem o Uruguai por 6 x 1 e a Alemanha por 2 x 0 . Foram para as oitavas contra a Espanha (que naquela época era um time bem mais fraco que Alemanha e Uruguai), e levaram uma surra dos espanhóis de 5 x 1, que depois perderam para os belgas nas quartas.

A copa de 1990 foi uma das mais chatas da história, porque caracterizava o fim do futebol-arte e a hegemonia do futebol-força, tendo a menor média de gols da história. Mas também teve suas surpresas: o desempenho empolgante de Camarões, que foi o primeiro país africano a avançar até as quartas de final; e as reiteradas defesas de pênaltis do goleiro argentino; isso somente para citar duas das surpresas das quais me lembro.

Em 1998, na França, houve alguns jogos emocionantes. Na primeira fase o Irã surpreendentemente venceu seus rivais geopolíticos, os EUA. O Brasil avançava bem, com Ronaldo explodindo, fazendo com que fôssemos para a final como favoritos. Mas aí Ronaldo “amarelou” e a França venceu por 3 x 0, um placar surpreendente. Apesar da derrota, foi bonito de ver a festa em Paris, com os franceses extasiados por serem campeões do mundo pela primeira vez.

Sobre 2002 nem preciso dizer nada. Porque ganhamos o penta com alguns jogos e vitórias memoráveis.

2010 teve a delícia de vermos pela primeira vez uma copa na África e a Espanha levando seu primeiro caneco.

Em 2014 teve a memorável vitória de 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil.

Lembro-me também de Nigéria, Costa Rica, Costa do Marfim e Grécia surpreendendo em copas passadas, as quais não consigo agora especificar.

E nesta copa já tivemos algumas saborosas surpresas. O Japão venceu a Alemanha, e hoje perdeu para a Costa Rica que, por sua vez, havia perdido para a Espanha por 7 x 0. Sendo que o Japão dominou o jogo e a Costa Rica venceu com um belo gol, no final, com seu único chute a gol durante todo o jogo.

A Arábia Saudita venceu a Argentina por 2 x 1 com dois golaços, com preleção cinematográfica de seu treinador, no intervalo, nos vestiários.

O Irã, depois de perder de 6 x 2 para a Inglaterra, venceu Gales por 2 x 0, com dois gols nos dois últimos minutos dos acréscimos. Sendo que Gales empatou com os EUA, que empataram com a Inglaterra.

E ontem, na vitória de 2 x 0 da Argentina sobre o México, Messi marcou o primeiro gol, na primeira oportunidade que teve, de fora da área, depois de ter passado o jogo todo apagado.

Futebol é o jogo surpreendente com uma bola que rola. Com alguma avalanche de pedras que se anuncia nos declives de nossas angústias e desesperos. É um jogo difícil, jogado com os pés. Há algo meio primitivo ou selvagem nisso. A bola não pode ser manuseada. As mãos, que constroem e constituem o mundo humano, tão caracteristicamente humanas, não entram na equação. E mesmo assim é uma encenação quase perfeita da vida, cuja finitude não pode ser manipulada. Porque nessa vida, com todos seus revezes, acasos e surpresas, apesar das mãos e de todo o seu poder, a gente precisa também se jogar e jogar com os pés.

Sunday, November 06, 2022

Orações e religião em meus grupos no CAPS

Sou agnóstico. Ou seja, simplificando: não acredito em nada, e não me comprometo com qualquer tipo de crença religiosa. Não acredito na existência de Deus nem na sua inexistência.

E hoje, no CAPS (em um grupo de terapia pela fala que coordeno), houve muita oração. Sim, oração: ficou parecendo um templo, uma igreja.

O paciente que assim quisesse se sentava numa cadeira, no centro da sala, e os outros, que também assim quisessem, se aproximavam e tocavam esse paciente com as mãos, sendo que cada um ficava à vontade para proferir suas orações, sua fala, da forma como achasse melhor.

Não entrarei em maiores detalhes sobre como o grupo chegou a esse estágio para não expor nenhum de meus pacientes. Mas posso lhes dizer que hoje os efeitos dessa prática, dessa vivência, em especial, foram muito interessantes.

Um dos pacientes estava muito resistente, tanto ao grupo quanto à minha pessoa. Simplesmente se negava à comunicação verbal, com expressões faciais de profundo desprezo em relação a todos os presentes. Dei a oportunidade para que todos se expressassem sobre como se sentiam em relação a esse tipo de interação. 

A sensação que de certo modo imperava era a de que essa pessoa estava com uma raiva muito grande de tudo e de todos nesse mundo. Havia um abismo imenso, e muitíssimo incômodo e constrangedor, entre o grupo e esse paciente, o qual já faz parte desse grupo há mais ou menos dois anos. 

Senti que não seríamos capazes de avançar, e de quebrar um pouco o gelo, se continuássemos somente nesse tipo de interação verbal, mais convencional. Tenho percurso, experiência, com outras formas de intervenção e resolvi então propor essa vivência, a qual já tínhamos realizado várias vezes em outros grupos, tais como o grupo de teatro ou o grupo de expressão total, ambos atualmente não mais ativos, mas que foram também coordenados por mim. 

No início todos tocavam a paciente, que estava no centro, e oravam em completo silêncio. Observando as expressões de cada um, percebi que um deles estava muito compenetrado. De modo bastante sutil fui até ele e sussurrei que ficasse completamente à vontade, e que inclusive soltasse a voz, se assim o desejasse.

Ele se empolgou e passou a orar em voz alta e com bastante vigor. Indaguei se mais alguém gostaria de fazer sua oração em voz alta, e ninguém se manifestou. Então, feito isso, houve o momento em que cada um, individualmente, abraçou o paciente em questão. 

Nessa hora me emocionei e não contive minhas lágrimas. Aliás, não fiz esforço algum para contê-las. Quando todos já tinham lhe dado um abraço, fui na direção desse paciente e também o abracei, pedindo-lhe desculpas por qualquer coisa que eu pudesse ter feito, ou falado, que o tivesse machucado. Nos abraçamos e choramos, juntos, abraçados.

Portanto fiz questão de mostrar ao grupo que eu estava emocionado. Também verbalizei sobre o que estava sentindo naquele momento e por quê.

Foi uma intervenção muito difícil. O paciente estava muito resistente e por vários momentos pensei que o caldo fosse entornar, que esse paciente fosse me hostilizar. Isso causaria danos ao nosso precioso vínculo. 

Quando isso ocorre não há como não nos entristecermos. Quebra de vínculo com quem a gente cuida, com quem a gente ajuda, com quem a gente ama, é sempre doloroso. E psicólogo que não cuida, que não interage com seus pacientes com carinho, com muito carinho, com amor, está fazendo tudo errado. Então a quebra de vínculo é sempre dolorosa, porque é uma quebra muito similar a qualquer quebra de vínculo que existe entre duas pessoas que se amam.

Enfim, é isso o que eu queria dizer aqui pra vocês: que hoje de manhã, esse momento, essa ocasião de minha interação com esses pacientes, foi emocionante. E continuo tranquilamente sendo agnóstico.

Texto de 22/09/2016

Saturday, November 05, 2022

Louco do 4º ano

 Já me comportei muitas vezes nessa vida de um modo mais próximo a algo parecido com a psicose, a loucura clássica. Porque já fui fascinado pela estética psicótica. Já agi de modo alegremente enlouquecido por inúmeras vezes.

Isso tudo começou por volta de meus 21 anos de idade, quando eu cursava o terceiro ano de psicologia. Em minha adolescência assisti a alguns filmes de comédia nonsense,  os quais inclusive talvez tenham sido uma das primeiras sementes de alguns de meus comportamentos psicóticos, ou dissociados, ou dissimulados mesmo, talvez simplesmente calculados para que eu conseguisse, naquele contexto, ter a interação que fosse a mais saudável possível para a minha sobrevivência social.

Em diversas situações eu me via encurralado com uma série de demandas e questionamentos, para os quais eu não encontrava a resposta que eu julgasse como 

satisfatória para dar para as outras pessoas. E assim acontecia o comportamento divergente, marcado pela bizarrice e o nonsense.

Dos 13 aos 14 anos de idade eu tive os piores anos de minha vida, com sintomas de ansiedade e depressão, marcados por sentimentos de intensa angústia e solidão. 1985 e 1986 foram dois anos torturantes, aos quais sobrevivi mediante um apaziguamento e uma estabilização lentos, na quietude de uma vida regrada em ser a pessoa mais boazinha que eu podia, aquele sujeito adolescente que nem mesmo sabia reconhecer em si sentimentos de raiva e de agressividade. 

Os dois primeiros anos no curso de psicologia fizeram com que eu me abrisse para algumas influências do Romantismo, relacionadas a permitir que as emoções e até mesmo a agressividade fluíssem com mais facilidade, e assim eu pudesse melhor me adaptar a uma complexidade das interações humanas da qual eu não tinha a menor ideia que era possível.

Passei então a me utilizar com cada vez mais frequência de instrumentos contracomunicativos e de uma interação mais esquisita, mais estranha com as pessoas. Assim deixava muitos desconcertados ou sem saber como me classificar.

Para muitas situações, principalmente as situações de encontro informal com outras pessoas, em ambiente festivo ou recreativo, esses comportamentos eram muito adaptativos e muito gratificados. As pessoas de modo geral gostavam muito e me tinham em alta conta nesses meios, inclusive também nos meios artísticos e culturais, porque tinha uma marca estilística muito forte. Essa estética da estranheza, juntamente com uma certa comicidade, despertava a admiração de muitos de meus pares.

E eu, por sorte, não era assim o tempo todo. Eu ficava mais agudamente pirado, como já mencionei, em ambientes recreativos ou festivos e culturais.

Então, classicamente falando, eu nunca fui louco e nunca enlouqueci. 

Porém, para quem me conhecia muito superficialmente, talvez coubesse esse tipo de classificação abusiva.

Lembro-me claramente de uma determinada vez, quando eu saía do restaurante universitário, quando uma estudante do quinto ano de psicologia apontou para mim e disse para outra, da mesma turma:

 - Aquele ali é o louco do quarto ano.

Lembro-me que achei o comportamento dela um pouco ridículo e risível. Então comentei com alguns colegas, e ficamos dando risada sobre o ocorrido. Nossa sensação era a de que aquela moça era bastante ingênua, para dizer o mínimo.

Sua vida era o que, por volta de 1968, muitos na França chamavam de metrô boulot dodô, para se referir à vidinha besta de alguém que só faz todos os dias a mesma coisa e sem qualquer tipo de abertura para atividades diferentes ou um pouco mais aventureiras.

Hoje não mais, mas sei que durante muitos anos, fui visto por muitas pessoas, que não me conheciam direito, como um sujeito meio doido. E eu continuava daquele jeito porque era muito divertido e gratificado. Meus amigos adoravam minhas doidices. E eu carrego comigo muito boas lembranças e saudades daqueles tempos.

Monday, October 24, 2022

Inteligentes de tão burras

Há pessoas inteligentes que são um pouco caricatas, meio Enéas Carneiro. Se acham muito mais inteligentes do que todo mundo e acabam assim se comportando de modo meio ridículo. Narram feitos intelectuais, cuja inverossimilhança é nítida. Ficam irritadíssimas e revoltadas com quem não concorda com elas, a partir de teses que outras pessoas, tão inteligentes quanto, não compreendem, por serem meio obscuras, contraditórias ou sem sentido, sem lógica. Se comportam geralmente de modo convicto e professoral. Quase não demonstram dúvidas ou pedem um tempo para analisar um determinado quadro ou situação. Ávida e constantemente tentam se impor ao mundo por meio de sua capacidade intelectual. E a cereja do bolo: carecem de habilidades sociais e vivem em constante e intenso conflito com inúmeros e variados tipos de pessoas. Sim, são inteligentes. Mas como são burras!

Tuesday, September 20, 2022

Não passarão!

Eu voltava do trabalho de bicicleta, como sempre, em um dia de sol escaldante e umidade bem baixa. 

Percebi que a mais de 100 metros de mim, à minha frente, havia um ciclista, pedalando na mesma direção que eu. Mantive meu ritmo normal, e 300 metros depois eu já estava ultrapassando-o, serenamente e sem pressa alguma.

Ele andava sem capacete e tinha uma bicicleta esportiva, veloz. Estava vestido como se estivesse indo malhar em uma academia, e tinha um boné com a propaganda política de um candidato de extrema-direita, neofascista.

Assim que foi ultrapassado, olhei pelo retrovisor e percebi que seu comportamento se alterou completamente. Ele passou a pedalar com muito mais intensidade.

Quem anda de bicicleta sabe que isso é muito comum. Muitos ciclistas, em seus trajetos para o trabalho ou para qualquer outro lugar, quando ultrapassados se sentem talvez meio desonrados ou desafiados, e assim se instaura uma competição tácita e feroz pelas ciclovias da cidade.

Ele estava então frenético, e pelo visto se sentiu muito contrariado de ser ultrapassado por alguém vestido com calça jeans, camisa, em uma bicicleta com aparência bem menos esportiva e com dois grandes alforges no bagageiro.

Ele realmente parecia ter uma boa capacidade atlética e sua bicicleta tinha um desempenho muito bom em declive. Estávamos em um declive ameno, de uns 4 km.

Ele manteve um ritmo muito forte e, por fim, após uns 800 metros, me ultrapassou.

Eu me esforcei bastante e estava talvez até mesmo desrespeitando alguns limites de minha própria capacidade. Abaixei a cabeça, me concentrei e passei a inspirar com mais intensidade. Eu precisava de mais oxigênio e de mais concentração. Eu somente conseguia olhar para seu boné, ver escrito o nome do fascista e pensava: 

- Não passarão!

Mantive o ritmo e o ultrapassei novamente. Ele, porém, não arredou. Continuava na minha cola.

A ciclovia chegou num ponto em que desembocava num posto de gasolina. Era necessário passar por dentro do posto, que tinha um terreno um pouco mais acidentado, composto por lajotas.

Olhei para sua bicicleta, com amortecedores, uma mountain bike, e senti que ali ele iria disparar na frente.

Porém, para minha surpresa, atravessamos o posto pareados. Quando chegamos novamente na ciclovia, eu estava novamente na frente.

Contudo, 200 metros depois, ele me ultrapassou novamente para, 100 metros depois, eu estar de volta na frente. E ele sempre bem próximo de mim, colado.

Fizemos uma curva, e chegamos na avenida. Eram muitos os carros que passavam. Estávamos um do lado do outro, pareados, esperando o fluxo diminuir para atravessar a avenida. Nem olhamos um para o outro. A concentração no fluxo de carros era total. Quem partisse primeiro teria uma boa vantagem.

Sai na frente e mantive o ritmo intenso. Olhei pelo retrovisor e percebi que ele foi desaparecendo sob a névoa seca. 

Eu me regozijava com sua silhueta que ia se desvanecendo, e pensava:

- É sempre uma batalha. Nunca foi fácil. Não é fácil. Mas temos de perseverar na luta. Não passarão!

Wednesday, September 14, 2022

Tropeços de um calouro

Março de 1991. Eu tinha 18 anos. Eram meus primeiros dias de aula na graduação, no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (a Filô), em Ribeirão Preto.

Desde a matrícula, em janeiro ou fevereiro de 1991, até 1993, quando eu já estava no quinto semestre do curso, tive diversos atropelos e desencontros, dentre alguns felizes encontros, repletos de redenção. 

Lembro perfeitamente. Cheguei para a matrícula vestido com uma camiseta amarela, com alguma estampa infeliz, talvez com coisas bobas escritas aleatoriamente em inglês. Era uma camiseta velha, desbotada, cavada, que eu mesmo havia cortado com uma tesoura, sem qualquer tipo de costura. Eu também vestia uma bermuda preta, também muito velha, um par de tênis Bamba preto nos pés (daqueles mais simples, que pareciam Congas), sem meias e uma cueca roxa, daqueles modelos antigos que ninguém mais usava, bem velha, com dupla entrada na frente. Era muito provavelmente uma cueca com uns 5 anos de uso, herdada de meu irmão mais velho, e talvez tivesse até um furo na bunda.

Fui sozinho. Pedalei cerca de 10 km, num sol escaldante. Pensei que seria algo trivial e burocrático: assinar alguns papéis e cair fora. E eu não imaginava que na Filô houvesse trote ou qualquer imbecilidade similar.

Porém, para minha infelicidade, em volta da porta de entrada do bloco do auditório, onde estavam realizando a matrícula, havia uns 20 veteranos, e alguns deles sedentos para maltratar os calouros. Outros mais tranquilos, somente querendo nos conhecer. 

Percebi que havia algumas veteranas da Psicologia, que somente queriam nos conhecer. Uma delas, do segundo ano, me olhava dos pés à cabeça. 

- Qual teu nome, bicho?

- Adriano.

- Por que você prestou Psicologia?

- Por necessidade.

- Como assim? – perguntou-me, sorrindo, estranhando a resposta.

- Estudar Psicologia pra mim não será somente como estudar qualquer outra coisa. Minha necessidade é visceral. Hoje não consigo imaginar minha sobrevida fora da Psicologia...

Ela continuava a me olhar como se não estivesse entendendo nada do que eu falava. E nem eu sabia muito bem o que eu mesmo estava falando. Desencontro, logo no primeiro minuto, apesar de toda a gentileza dela.

Eu já estava para entrar no auditório, quando um veterano da Biologia apareceu com sua turma.

- Ei, bicho, onde você pensa que vai? Não vai entrar agora pra fazer sua matrícula não, querido. Você vem com a gente! Vamos dar um passeio. 

Fui pego à força e levado ao banheiro. Senti-me sequestrado. Dentro do banheiro éramos eu mais uns quatro veteranos, todos da Biologia e da Química. Ninguém da Psicologia. 

- Você vai fazer o seguinte. Vai tirar essa bermuda e vestir tua cueca por cima dela!

- Nem a pau! – respondi, da forma mais serena possível. 

- Vai sim! E sem dar um pio.

- Nunca.

Esse jogo de braço se estendeu por alguns minutos. Esse veterano da Biologia, que se comportava como o líder dos quatro, foi ficando bem nervoso. Saiu do banheiro. Voltou alguns minutos depois, e bem irritado.

- Phohrra! Não acredito que esse moleque ainda não fez o que a gente mandou. Você é bicho e tem que me obedecer, cahrallho!

O banheiro tinha um corredor, e ele disse isso gritando, dando murros nas paredes e vindo em minha direção. Era bem maior que eu e tentou me assustar. 

Como eu estava numa fase de excelente preparação física, com porte atlético, não tive medo algum dele. A minha sensação era somente a de que um rapaz adiposo estava querendo me intimidar. 

- Desculpa aí, mas não vou não. Não vou fazer nada do que você mandar. Tem mais alguém aí fora pra me fazer companhia com a cueca por cima da roupa? Se tiver, eu encaro. Se não, nada feito. Vocês não vão me pegar pra Cristo não. 

Esse sujeito somente fazia gritar e socar as paredes, fazendo jus a seu apelido, Brucutu. Era outro apelido, mas posto aqui algo similar, para preservar a identidade do infeliz.

Havia um outro rapaz, da turma do Brucutu, que pintava meu rosto. Esse parecia mais tranquilo. Seu apelido era Chupeta.

- Phohrra, Chupeta... Aqui não é a Filô? Ceis não são mais papo cabeça? Não tô entendendo esse Brucutu querendo sair no braço comigo.

- Não, pode deixar, Adriano. A gente vai fazer um trote legal com você. 

E assim Chupeta serenamente pintou um símbolo da paz na minha testa e me liberou para a matrícula, porque careca eu já estava, desde o trote que meu próprio irmão mais novo havia me dado uma ou duas semanas antes.

Entrei no auditório, fiz minha matrícula, e um representante do centro acadêmico muito gentilmente me deu as boas-vindas e uma série de informações importantes. 

Só ali, dentro do auditório, eu percebera o quanto a gritaria do Brucutu havia sido estressante. As pessoas que estavam lá fora perceberam a truculência. Eu entrei no auditório batendo boca com ele. Os servidores da USP ficaram um pouco assustados. Fomos repreendidos. Não era exatamente um bom começo, exceto pelo acolhimento gentil do rapaz do centro acadêmico e do Chupeta.

Fui embora sentindo que eu havia me matriculado no tumulto, sendo uma das causas do tumulto, e talvez tendo passado bem perto de alguma agressão física. 

“Mas tudo bem, tudo bem. Faz parte.” – pensei, após respirar fundo.

Fui para casa. Umas duas ou três semanas depois começariam as aulas.

Mas eu faltei à primeira semana de aulas. Havia feito uma cirurgia de hérnia inguinal, no SUS, poucos dias antes, e mal conseguia andar. Como eu iria de ônibus, não havia como. 

Uma semana depois do início das aulas eu por fim achei que tinha condições de pegar um ônibus que, com destino à USP, passava somente a cada 45 minutos. 

O ponto se situava a 500 metros de minha casa. Segundo o Google isso corresponde a 6 minutos da casa onde eu morava. Mas eu ainda estava debilitado e caminhava com dificuldades, bem lentamente. 

Quando eu estava a 50 metros, vi que o ônibus se aproximava. Tentei correr, mancando. O motorista percebeu e acho que esperou que eu chegasse até o ponto.

Cheguei à USP atrasado em uma semana e mancando.

- O que aconteceu? Por que você está andando curvado?

- Fiz uma cirurgia de hérnia inguinal.

Conversa vai, conversa vem, e assim perceberam que eu tinha muitas cicatrizes, devido a suturas com pontos, pelo corpo todo, cada uma contando a história de um acidente ou uma cirurgia diferente.

- Cahraio, bicho. Você parece o Frankenstein.

E assim fui carimbado com um novo apelido, Frank, que perdurou por todo o período de graduação. 

Nos primeiros dias de aula eu estava bombardeado por vários sentimentos diferentes. Fascinação por aquele novo universo que se abria, com suas inúmeras possibilidades e um pouco de ansiedade, porque era tudo muito novo e com muita coisa ainda a ser decifrada.

Meu sentimento em relação ao curso ser integral, e de haver na USP toda uma estrutura para isso, era de muita alegria. Havia um restaurante universitário, a preço subsidiado, o bandejão. 

Isso era incrível! Se eu quisesse, eu podia ficar na USP nos três períodos (manhã, tarde e noite) porque, antes de tudo, lá havia alimentação balanceada e acessível. 

Muitos reclamavam da comida. Diziam que tinha salitre, "para diminuir o desejo sexual dos estudantes". Que o arroz era gato, porque se arremessado ao teto, grudava. Que o feijão era chuá-pim-pão, porque seria muito aguado. Que o bife era James Bond, duro e com nervos de aço.

Mas para mim nunca houve problema. Eu amava a USP e amava tudo aquilo, porque o banquete do bandejão não era a comida, mas as companhias, as preciosas e belas amizades que cultivei enquanto fazia minhas refeições. 

Eu estava ansioso por aprender tudo o que fosse possível. Sentia que precisava aprender muito em termos acadêmicos, mas principalmente sobre a vida, sobre como se viver melhor, de modo mais saudável e feliz.

Foram muitas horas de aulas, de estudo, de esforço, mas também muitas horas conversando, confraternizando, bebendo ou fumando um baseado com amigos e gente de todo o jeito.

A primeira semana foi de deslumbre, para todos os estudantes. Havia um sentimento generalizado de desbravamento do mundo e de si.

E uma coisa ainda me incomodava. Alguns veteranos, até mesmo da Psicologia, insistiam em tratar mal os calouros. E achava esse tipo de comportamento ridículo, e não deixava de dizer o que pensava.

Ainda na primeira semana, eu jantava no bandejão, e uma turma estava de saída para uma festa. Peguei carona com eles. Entrei em algum carro e fui.

Era na casa de uma veterana. Havia muita gente, e a maioria ficou na calçada e até na rua. Meu sentimento era o de que todos bebiam e muito. Então eu bebi também. 

Vi que havia uma rodinha, com todos cheirando lança-perfume, que me ofereceram.

- Obrigado, mas não curto não. Hidrocarbonetos phodem com o cérebro. Até cocaína é mais saudável.

- Ah, bicho! Você é chato pra cahrallho! Sai daqui se não te dou uma porrada – esbravejou uma veterana.

- Uai, pode vir. Eu to operado, estrupiado, mas acho que consigo chutar teus peito.

- Seu filho da phutta! Eu vou te quebrar no meio!

E assim tiveram de segurá-la. Ficou fora de si. Babava de raiva. Eu fiquei apreensivo, mas sem desesperar. Tinha confiança de que ela não seria capaz de me espancar, mesmo com toda a debilitação pós-cirúrgica. 

E também fiquei chateado. Interagi com outras pessoas, e fui bem tratado pela maioria. Um veterano da Psicologia se aproximou.

- Poxa, cara, eu vi o que rolou. Você tá bem?

- Tô tranquilo.

Trocamos mais algumas palavras. Falamos de coisas boas e difíceis. Ele me falava de sua vida, de suas desventuras, e seus olhos marejavam. No final ele me deu uma carona até minha casa, que era bem mais distante que a dele. Chegando a meu destino, me deu um abraço.

- Falou, Frank! Muito bom conversar contigo!

- Tamos aí, meu irmão!

Seus olhos marejaram novamente. Foi-se embora, com um cigarro aceso na boca.

E foi assim, com muitos tropeços, até 1993.

Sunday, September 11, 2022

Mas Edu está vivo...

Solange (Sol) era atriz. Realizava um trabalho belíssimo de extensão junto às comunidades da periferia, e também fazia performances. Ela estava participando da instalação de alguns novos dispositivos em um dos centros culturais da cidade.

Após um dia intenso de trabalho, estendeu sua rede em um dos galpões do próprio centro cultural. Enquanto relaxava um pouco, conversamos sobre os novos projetos que estavam surgindo e as perspectivas culturais, que eram promissoras.

Dois dias depois haveria um evento marcante, com exposições e performances. 

- Nossa, Sol, pela sua descrição sinto que esse evento tem tudo a ver com meu irmão. Ele iria adorar!

- Então no sábado ele não pode faltar! Você tem que avisá-lo. Ele tem que vir aqui.

- Sim, sim... Vou entrar em contato com ele e fazer de tudo para que ele venha. Mas às vezes é um pouco complicado...

- Não entendi. Como assim?

- Ele passou por uma situação muito difícil, muito traumática, ao ponto de todo mundo pensar que ele tinha morrido. Aliás, ele quase morreu. Foi um milagre ele não ter morrido.

Era sempre muito difícil falar de Edu. Sempre que eu o mencionava em alguma conversa, e que o assunto se estendia um pouco mais, eu sabia que depois eu teria que explicar algo bastante difícil para as pessoas, porque a vida dele tinha sido marcada por um rombo muito grande, por um trauma enorme. E esse trauma o havia transformado em um ser completamente diferente. Era sempre importante ir preparando as pessoas para entenderem que conheceriam alguém talvez um pouco assustador.

Porém, conforme fui conversando com Sol, fui me dando conta de que eu às vezes pensava pouco sobre ele. Eu às vezes esquecia que ele existia, onde morava e o que estava fazendo no presente. 

Isso me incomodava bastante. Era sempre importante não esquecer que ele existia, porque ele já tinha passado por algo muito difícil e era fundamental agora cuidar bastante de Edu para que ele não voltasse para o mesmo buraco escuro onde um dia havia se metido.

- Adriano, eu estou aqui te ouvindo e pensando no que deve ter acontecido com ele. Ele por acaso sofreu um acidente? Ele é sobrevivente de um acidente terrível? É isso?

- Ele sobreviveu a uma tentativa extrema de suicídio. E uma coisa triste nisso tudo é que eu às vezes sinto que ele morreu. Mas ele não morreu, e eu não consigo entender  o porquê desse meu sentimento. Poxa, o cara não morreu. O cara tá vivo e trabalha aqui, nas imediações de Ribeirão Preto, ainda com Odontologia, que é o ganha-pão dele. E ele continua a todo vapor com a sua produção em artes plásticas e performances. Ele vai adorar esse evento. Eu preciso fazer com que ele venha. Mas o difícil é conseguir encontrá-lo e convencê-lo de que ele precisa vir. 

- Então ele não pode perder esse evento! Ele vai amar, e tem mesmo tudo a ver com ele!

- Nossa, só não me conformo com esse meu pensamento, às vezes automático e involuntário, de achar que ele morreu. Não tem cabimento isso. O susto, o trauma, foi gigantesco. Mas o cara tá vivo, tocando a vida dele, apesar de todas as dificuldades...

Eu estava deitado numa posição que não era muito confortável, e acordei, mais uma vez. Edu faleceu há 24 anos.

Tuesday, September 06, 2022

"Mermão..."

 - Mermão, isso aí é piração total – disse-me minha filha, de 8 anos de idade.

Eu dei risada. Achei engraçadinho.

- Viche, papai... Você não é meu irmão. Foi mal...

- Não tem problema, filha. Pode chamar o papai de irmão. Eu sei que é um modo comum de se chamar alguém.

Porque meu sonho sempre foi o de ver minha filha se misturando com o mundo, absorvendo, aprendendo e se tornando parte de tudo. Porque a gente não cria os filhos para si. A gente os cria para o mundo, mermão.

Saturday, August 27, 2022

Moto-contínuo

Às vezes sonho que estou em uma casa que nunca vi como se fosse a coisa mais familiar do mundo. Sinto isso no sonho, e me pergunto, já quase desconfiando de que estou somente sonhando:

- Por que estou aqui? Não faz sentido estar aqui. Essa casa é estranha e eu não moro aqui!

Então de repente eu me lembro que aquela realmente não é a casa em que moro. É a casa de minha infância. Isso me mantém dormindo, sonhando. É o sonho protegendo o sono.

Quando acordo e me lembro do sonho, me dou conta de que aquela casa, do sonho, não era nem mesmo a casa de minha infância. Mas enquanto eu sonhava havia a convicção de que era a casa de minha infância. Enquanto sonhava eu forjava falsas de memórias de uma infância que nunca tive.

Vidas inventadas todas as noites

Às vezes sonho que estou em uma casa que nunca vi como se fosse a coisa mais familiar do mundo. Sinto isso no sonho, e me pergunto, já quase desconfiando de que estou somente sonhando:

- Por que estou aqui? Não faz sentido estar aqui. Essa casa é estranha e eu não moro aqui!

Então de repente eu me lembro que aquela realmente não é a casa em que moro. É a casa de minha infância. Isso me mantém dormindo, sonhando. É o sonho protegendo o sono.

Quando acordo e me lembro do sonho, me dou conta de que aquela casa, do sonho, não era nem mesmo a casa de minha infância. Mas enquanto eu sonhava havia a convicção de que era a casa de minha infância. Enquanto sonhava eu forjava falsas de memórias de uma infância que nunca tive.

Monday, August 15, 2022

Seu burro!

Ouvi por inúmeras vezes em minha vida que sou muito inteligente. E, não tem muito outro jeito, quando se ouve algo repetidamente, vindo de diversas pessoas, isso tende a colar na gente. Nos identifica e passa a fazer parte de como também nos vemos, nos percebemos e nos descrevemos. 

E houve inclusive um momento em que fiquei tão seguro em relação às minhas capacidades intelectuais, que eu tranquilamente conseguia brincar com isso, ao ponto até de nunca, que eu me lembre, ter me incomodado se alguém alguma vez pensou que eu fosse burro.

Há muitos anos que não me incomodo ou tenho medo de errar, de cometer gafes ou parecer burro. Porque o mais comum, desde que me entendo por gente, é alguém que me julgou como burro logo em seguida se surpreender com algo incisivo em sentido contrário. 

Então quando cometo alguma gafe, de parecer mesmo muito burro, eu mesmo já falo, em alto e bom tom:

“Nossa, que burrice!”; “Como eu fui burro agora...”; “Desculpe a burrice, mas eu não entendi.”

Então nunca tive medo de dizer que não entendi ou que não sei algo, porque isso tudo sempre se resolveu da melhor forma possível em minha vida. Tive a sorte grande da loteria do mundo e talvez da genética terem me ajudado bastante.

Mas houve algum momento no qual, neste sentido, minha autoestima balançou? Sim, houve. Nos dois primeiros anos de graduação, em 1991 e 1992, na USP. 

Eu havia passado em segundo lugar no vestibular, tendo estudado em casa, com notas que alguns colegas do curso de medicina me diziam serem suficientes para ser aprovado junto com eles.

Então entrei no curso de Psicologia achando que meu desempenho acadêmico permaneceria como sempre foi, em um nível tranquilamente bem alto.

Porém não foi isso o que ocorreu. Minha primeira nota, de 0 a 10, em Neuroanatomia, foi 2,5. E talvez não tenha sido muito diferente em outras disciplinas. 

Eu tinha muito sono durante as aulas. Não conseguia estudar em casa. Dormia muito no ônibus. Chegava mal disposto na faculdade. Me sentia sobrecarregado e sem capacidade para entender um monte de coisas. Não conseguia entender o que estava escrito nos textos de antropologia e sociologia, e nem conseguia lê-los até o final. Me saia muito mal nos seminários, e alguns professores e colegas de sala deixavam isso bem claro:

- Você é um cara legal, Frank (sim, meu apelido era Frank, de Frankenstein, mas isso é uma outra história), e até inteligente. Mas o problema é que você é relapso.

Lembro de ter ouvido isso, talvez mais de uma vez, de um dos melhores alunos da turma. E meses depois eu me dei conta de que eu nem sabia o significado da palavra “relapso”. Minha mãe me chamava muito de relapso, dando a entender que eu era distraído. Ela me chamava, e eu não ouvia, ou demorava a responder. Ficava brava e logo soltava, com agressividade: 

- Ô, seu relapso, acorda! Acorda, relapso! Tô falando com você!

Cresci ouvindo maravilhas sobre minha capacidade intelectual, associada a uma distração irritante. Essas falas elogiosas vinham das professoras e a reclamação sobre a distração vinha de minha mãe. Não me lembro de meus pais dizendo que eu era inteligente, porque na minha família ninguém tomava sopa na cabeça do outros, dando um show de inteligência. Ninguém parecia ser muito destacado com isso e isso nem era louvado em função de sua suposta capacidade intelectual. Se eu era um bom ou o melhor aluno da turma, eu só estava cumprindo com minha obrigação.

- Esse não nos dá dor de cabeça com escola – lembro que era mais ou menos isso que meus pais diziam.

A admiração, principalmente de meu pai, surgia quando percebia coragem e pendores artísticos nos filhos. Porque ele tinha sido ilustrador, saltou umas 20 vezes de paraquedas, e sonhou em ser piloto da FAB. Então, quando chegavam as visitas, mostrava os desenhos de meu irmão caçula (que hoje é ilustrador profissional, em Londres) e os aeromodelos que meu irmão mais velho fazia e pintava primorosamente.

Até que um dia alguém perguntou, apontando pra mim:

- E esse, faz o quê? 

Meu pai hesitou, gaguejou, e respondeu, sem graça:

- Esse? Hum... Ah, esse vai bem na escola!

E como o ato de gaguejar e a hesitação foram engraçadas, surpreendentes, após sua resposta todos se riram. Porque ficou no ar que ir bem na escola era bosta nenhuma perto de lindos desenhos e maquetes de aeronaves. Foi uma resposta parecida com “Esse aí, como artista, vai bem na escola!”. Não vai espetáculo nem glamour algum em ir bem na escola.

Mas a minha lembrança era a de que eu cagava e andava pra tudo isso. Desde bem pequeno eu simplesmente não tinha a necessidade da admiração de meu pai. Se algum dia eu senti essa necessidade ela foi muito tênue e breve. Meu sentimento é o de que eu nunca movi uma palha para conquistar sua admiração. E seu amor eu acho que o tinha, mesmo que de modo meio atrapalhado, bruto ou questionável. Não sei se o tinha em grande medida. Mas devia sim ter alguma coisa, porque ele foi capaz de me acolher e me proteger em muitas situações. 

E com minha mãe a coisa talvez tenha sido bem diferente até por volta de meus 6 anos de idade, porque havia abraços, carinho e desejos declarados de me casar com aquela linda mulher que abarcava minha existência inteira.

Porém em casa, creio que depois dessa idade, os três filhos saíram do ninho da primeira infância talvez de um modo um pouco mais bruto, porque não tenho na memória o registro de palavras como “eu te amo” e longos abraços ou carinhos mais prolongados.

O ambiente era de cuidado um com outro, de solidariedade, trabalho, luta, apoio, conflitos (muitos conflitos e às vezes com muita agressividade e até violência), mas não de beijos e abraços.

E meu colega de faculdade tinha razão, eu era mesmo muito distraído, relapso. Porém, meses depois, eu me dei conta de que ele estava somente me chamando de vagabundo. Só isso. E eu nunca nem me defendi, para pelo menos tentar me justificar, mostrando para ele que eu era esforçado, e que meu maior problema era mesmo, naquele contexto, uma brutal fraqueza, deficiência, incapacidade. 

Passei dois anos angustiado, me sentindo extremamente burro, inferiorizado e paralisado em uma espécie de catatonia intelectual. Abria a boca em muitas aulas, porque sempre fui muito falante. Mas eu sentia que os membros mais influentes de minha turma tinham uma rejeição muito grande ao que eu dizia, porque quase tudo era prontamente rechaçado. Eu era um verdadeiro idiota para a maioria daquelas pessoas. Me viam como infantil, machista, equivocado, relapso, cafona e ignorante.

E assim, perante aquelas pessoas, eu realmente me sentia, com a desconfiança de que na verdade aquela turma era doente, porque foram muitos os conflitos e os traumas. Foram muitos os desentendimentos e muitas pessoas talvez estejam marcadas, até hoje.

Eu, porém, me dei conta disso muito rapidamente. Ou pelo menos classifiquei assim, e isso foi o suficiente para me afastar e não me esmerar em tentar alcançar a aprovação que eu nunca teria dessas pessoas.

Havia poucas disciplinas optativas e poucas oportunidades para montarmos nosso próprio curso, como costuma ser comum no sistema de algumas grandes universidades públicas. Se não houvesse reprovação, a tendência era começarmos o curso em uma turma e permanecer com ela até o final do curso, 5 anos depois.

E foi o que fiz. Comecei com esta turma, em 1991, e fui até o final do curso com eles(as).

Porém, a partir de meados do segundo ano (em 1992) e do terceiro comecei a frequentar e me enturmar com a Filô, com a faculdade como um todo, com estudantes de outros cursos e turmas, nos intervalos e nos eventos.

Então nos intervalos de aulas eu ia para o centro de convivência ouvir música, conversar, beber e paquerar. E ia também muito às festas, regadas com muita música punk, cerveja Polar no copão de 600 ml e maconha. Era nessas situações que eu me sentia aprendendo um pouco mais da vida, nesse contato com “gente muito doida”, fazendo os amigos que eu nunca tinha feito, descobrindo novas formas de se viver e se lidar com as dificuldades, admirando a imensidão que se descortinava perante a minha miopia existencial.

Era o início de minha liberdade a nadar de braçadas, de meus saltos para fora de casa, para longe de meus pais e mais perto da conquista de uma vida mais plena, ética e saudável.

Em 1991 fui a muitas festas e voltei para casa pegando os primeiros ônibus da manhã, porque eles paravam de rodar por volta de meia-noite e só retornavam às 5 ou 5:30. Porque eram sempre dois ônibus para ir e dois para voltar. Então me lembro de ter dormido algumas vezes nos bancos de concreto do terminal.

E minha sensação era sempre a de que aquilo tudo fazia parte do misterioso processo de aprender a viver. Sendo que isso, por acaso, faz agora eu me lembrar de há poucos dias, quando minha filha, brincando de entrevistadora, me perguntou:

- Como é ser psicólogo?

- Difícil... 

- Por quê?

- Porque as pessoas esperam que um psicólogo saiba viver, e eu não sei ainda.

Estávamos na área de lazer do condomínio. Ela saiu, rindo-se, com suas amiguinhas. Dois vizinhos, com quem eu conversava, entreolharam-se, talvez um pouco chocados. 

E eu ainda só sei que não sei, que ainda aprendo muito, o tempo todo, e que ainda erro, demasiadamente. Mas muitos tombos são de ensaio e erro. São testes que constantemente realizamos aqui e ali, mesmo com todo o arsenal teórico possível, e tentando lidar com todo o conhecimento que vem sendo depurado há décadas pelo método científico. E sempre aprendo algo novo, aqui e ali, inclusive com autores e técnicas das quais eu nunca antes havia ouvido falar, ou só conhecia superficialmente.

E alguém poderia alegar que fugi de enfrentar mais assertivamente as pessoas com as quais não fui capaz de conviver mais harmoniosamente, que eu não soube me comunicar com elas, que minha aversão foi maior do que minha habilidade social. Talvez seja verdade. Ou talvez esse tipo de alegação seja também, por um lado, bem equivocada, pois insiste numa resolução impossível de conflitos, em interações já totalmente desgastadas, queimadas. Porque pontes se queimam, e insistir em algumas travessias sem base é lançar-se e perder-se no abismo. 

Porque nessa vida eu aprendi muito mais com quem não estava contaminado pelo ranço de ter me conhecido e se enjoado ou se enojado de mim. Porque depois que as pontes são derrubadas vêm as muralhas a nos separar. E eu nunca fui muito bom em bater com a cabeça na parede. Sempre fui mais habilidoso para pegar minhas trouxas e cair no mundo.

Porque às vezes o maior problema não é sentir-se burro ou incapaz, e assim ser dotado de pouca autoconfiança. Saber que não sabemos, ou que não somos tão capazes quanto gostaríamos, é quase nada perto de saber que não somos queridos, aceitos ou amados.

Saturday, July 30, 2022

O peso do amor

Minha filha já tem 8 anos de idade mas, sempre que posso, ainda a pego no colo, e saio caminhando com ela, no colo, por longas distâncias, até me extenuar e chegar em casa com as pernas tremendo. Essa é uma das minhas atividades físicas preferidas e meu desejo é que eu pudesse ainda exercê-la durante muitos e muitos anos. Ela deita sua cabecinha em meu ombro, como se dormisse, e eu sigo caminhando, carregando-a pelo mundo afora. Há, para mim, um senso de amor e de realização intenso nessa atividade aparentemente trivial, ou até mesmo excessiva, já que ela não é mais um bebê.

Friday, July 29, 2022

Redução de ajudas

Um plano para o futuro, para começar desde já: reduzir meu “furor curandis”. E não é nem mesmo para cumprir a regra freudiana de que um altruísmo desesperado pode ser pior do que um egoísmo esclarecido, que se antecipa e projeta no outro necessidades que na verdade são nossas. Tenho que dar uma reduzida em meu furor curandis porque ele é prejudicial a mim mesmo. Às vezes acabo inclusive colocando minha saúde em risco quando me empenho demais em ajudar algumas pessoas. Muitas pessoas, de agora em diante, terão somente meu silêncio.