Acerca dessa tradição atrasada de chamarmos quem quer que seja por meio do termo “doutor” na frente do nome, lembro de um fato curioso que ocorreu comigo no final da década de 1990 ou bem início dos anos 2000.
Um sujeito, advogado, bacharel em direito, devia dinheiro à minha mãe. E ela já havia me dito que ele estava utilizando de diversos meios, que não os legais, para não pagá-la.
Este sujeito fazia, por sinal, questão de ser apresentado ou tratado como “doutor”. Minha mãe sempre se referia a ele como o Dr. Luis (nome fictício). Era Dr. Luis pra cá, Dr. Luis pra lá. E ela, que não havia concluído nem mesmo o ensino fundamental, ia, com muita sabedoria, levando o Dr. Luis no banho-maria.
Eu já não tinha tanta paciência. Hoje tenho mais. Não chamava ninguém de doutor. Eu ficava indignado com essas formas obtusas de tratamento que nossa história de opressão ainda insiste em perpetuar.
Pois bem, um dia atendo o telefone, e quem era?
“Ah, sim, o senhor deseja falar com minha mãe? Seu nome, por favor?”
“Doutor Luis...”, respondeu.
Era o coisa ruim, o próprio.
“Doutor Luis?”, perguntei.
“Sim, meu caro, Doutor Luis”.
“Perdoe-me a pergunta, mas, por curiosidade, o senhor tem doutorado?”.
Eu já tinha o título de mestrado e ainda achava interessante fazer tal pergunta, problematizar esta questão. Dr. Luis, porém, ficou ofendido com a pergunta.
Foi logo dizendo que defender um processo jurídico, como advogado, era o equivalente a produzir um doutorado, “que a defesa de uma causa equivalia a um doutorado”.
“Não equivale não. É doutor aquele que defendeu uma tese de doutorado”, respondi.
Ficou ainda mais ofendido e perguntou rispidamente:
“E você, é o quê?”.
“Não sou nada”, respondi.
“O que você faz da vida? Trabalha com quê?”, reiterou com mais precisão.
“Não, não sou nada. Somente sei que doutor é quem fez doutorado. O senhor aguarde um momento, que chamarei minha mãe (...) Mãe, telefone para a senhora. Sr. Luis.”
E fiz questão que ele ouvisse. Eu não o chamaria, em hipótese alguma, de doutor.
Inflexibilidade pela qual não respondo mais. E o Dr. Luis não perdoou, passou uns cinco minutos me debulhando para a minha mãe ao telefone. E depois ainda tive de ouvir mais uns minutos de colérico e inflamado sermão da progenitora. Para ela ele continuou como Dr. Luis. O Dr. Luis que ela acionou juridicamente e teve, apesar da arrogância, de pagá-la com todos os juros e correções devidas. Ele não possuía metade da sabedoria dela.
E hoje, para evitar dor de cabeça, acabo chamando de doutor um ou outro médico ou advogado. Mas, confesso: é com uma certa ironia.
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