Ouvi por inúmeras vezes em minha vida que sou muito inteligente. E, não tem muito outro jeito, quando se ouve algo repetidamente, vindo de diversas pessoas, isso tende a colar na gente. Nos identifica e passa a fazer parte de como também nos vemos, nos percebemos e nos descrevemos.
E houve inclusive um momento em que fiquei tão seguro em relação às minhas capacidades intelectuais, que eu tranquilamente conseguia brincar com isso, ao ponto até de nunca, que eu me lembre, ter me incomodado se alguém alguma vez pensou que eu fosse burro.
Há muitos anos que não me incomodo ou tenho medo de errar, de cometer gafes ou parecer burro. Porque o mais comum, desde que me entendo por gente, é alguém que me julgou como burro logo em seguida se surpreender com algo incisivo em sentido contrário.
Então quando cometo alguma gafe, de parecer mesmo muito burro, eu mesmo já falo, em alto e bom tom:
“Nossa, que burrice!”; “Como eu fui burro agora...”; “Desculpe a burrice, mas eu não entendi.”
Então nunca tive medo de dizer que não entendi ou que não sei algo, porque isso tudo sempre se resolveu da melhor forma possível em minha vida. Tive a sorte grande da loteria do mundo e talvez da genética terem me ajudado bastante.
Mas houve algum momento no qual, neste sentido, minha autoestima balançou? Sim, houve. Nos dois primeiros anos de graduação, em 1991 e 1992, na USP.
Eu havia passado em segundo lugar no vestibular, tendo estudado em casa, com notas que alguns colegas do curso de medicina me diziam serem suficientes para ser aprovado junto com eles.
Então entrei no curso de Psicologia achando que meu desempenho acadêmico permaneceria como sempre foi, em um nível tranquilamente bem alto.
Porém não foi isso o que ocorreu. Minha primeira nota, de 0 a 10, em Neuroanatomia, foi 2,5. E talvez não tenha sido muito diferente em outras disciplinas.
Eu tinha muito sono durante as aulas. Não conseguia estudar em casa. Dormia muito no ônibus. Chegava mal disposto na faculdade. Me sentia sobrecarregado e sem capacidade para entender um monte de coisas. Não conseguia entender o que estava escrito nos textos de antropologia e sociologia, e nem conseguia lê-los até o final. Me saia muito mal nos seminários, e alguns professores e colegas de sala deixavam isso bem claro:
- Você é um cara legal, Frank (sim, meu apelido era Frank, de Frankenstein, mas isso é uma outra história), e até inteligente. Mas o problema é que você é relapso.
Lembro de ter ouvido isso, talvez mais de uma vez, de um dos melhores alunos da turma. E meses depois eu me dei conta de que eu nem sabia o significado da palavra “relapso”. Minha mãe me chamava muito de relapso, dando a entender que eu era distraído. Ela me chamava, e eu não ouvia, ou demorava a responder. Ficava brava e logo soltava, com agressividade:
- Ô, seu relapso, acorda! Acorda, relapso! Tô falando com você!
Cresci ouvindo maravilhas sobre minha capacidade intelectual, associada a uma distração irritante. Essas falas elogiosas vinham das professoras e a reclamação sobre a distração vinha de minha mãe. Não me lembro de meus pais dizendo que eu era inteligente, porque na minha família ninguém tomava sopa na cabeça do outros, dando um show de inteligência. Ninguém parecia ser muito destacado com isso e isso nem era louvado em função de sua suposta capacidade intelectual. Se eu era um bom ou o melhor aluno da turma, eu só estava cumprindo com minha obrigação.
- Esse não nos dá dor de cabeça com escola – lembro que era mais ou menos isso que meus pais diziam.
A admiração, principalmente de meu pai, surgia quando percebia coragem e pendores artísticos nos filhos. Porque ele tinha sido ilustrador, saltou umas 20 vezes de paraquedas, e sonhou em ser piloto da FAB. Então, quando chegavam as visitas, mostrava os desenhos de meu irmão caçula (que hoje é ilustrador profissional, em Londres) e os aeromodelos que meu irmão mais velho fazia e pintava primorosamente.
Até que um dia alguém perguntou, apontando pra mim:
- E esse, faz o quê?
Meu pai hesitou, gaguejou, e respondeu, sem graça:
- Esse? Hum... Ah, esse vai bem na escola!
E como o ato de gaguejar e a hesitação foram engraçadas, surpreendentes, após sua resposta todos se riram. Porque ficou no ar que ir bem na escola era bosta nenhuma perto de lindos desenhos e maquetes de aeronaves. Foi uma resposta parecida com “Esse aí, como artista, vai bem na escola!”. Não vai espetáculo nem glamour algum em ir bem na escola.
Mas a minha lembrança era a de que eu cagava e andava pra tudo isso. Desde bem pequeno eu simplesmente não tinha a necessidade da admiração de meu pai. Se algum dia eu senti essa necessidade ela foi muito tênue e breve. Meu sentimento é o de que eu nunca movi uma palha para conquistar sua admiração. E seu amor eu acho que o tinha, mesmo que de modo meio atrapalhado, bruto ou questionável. Não sei se o tinha em grande medida. Mas devia sim ter alguma coisa, porque ele foi capaz de me acolher e me proteger em muitas situações.
E com minha mãe a coisa talvez tenha sido bem diferente até por volta de meus 6 anos de idade, porque havia abraços, carinho e desejos declarados de me casar com aquela linda mulher que abarcava minha existência inteira.
Porém em casa, creio que depois dessa idade, os três filhos saíram do ninho da primeira infância talvez de um modo um pouco mais bruto, porque não tenho na memória o registro de palavras como “eu te amo” e longos abraços ou carinhos mais prolongados.
O ambiente era de cuidado um com outro, de solidariedade, trabalho, luta, apoio, conflitos (muitos conflitos e às vezes com muita agressividade e até violência), mas não de beijos e abraços.
E meu colega de faculdade tinha razão, eu era mesmo muito distraído, relapso. Porém, meses depois, eu me dei conta de que ele estava somente me chamando de vagabundo. Só isso. E eu nunca nem me defendi, para pelo menos tentar me justificar, mostrando para ele que eu era esforçado, e que meu maior problema era mesmo, naquele contexto, uma brutal fraqueza, deficiência, incapacidade.
Passei dois anos angustiado, me sentindo extremamente burro, inferiorizado e paralisado em uma espécie de catatonia intelectual. Abria a boca em muitas aulas, porque sempre fui muito falante. Mas eu sentia que os membros mais influentes de minha turma tinham uma rejeição muito grande ao que eu dizia, porque quase tudo era prontamente rechaçado. Eu era um verdadeiro idiota para a maioria daquelas pessoas. Me viam como infantil, machista, equivocado, relapso, cafona e ignorante.
E assim, perante aquelas pessoas, eu realmente me sentia, com a desconfiança de que na verdade aquela turma era doente, porque foram muitos os conflitos e os traumas. Foram muitos os desentendimentos e muitas pessoas talvez estejam marcadas, até hoje.
Eu, porém, me dei conta disso muito rapidamente. Ou pelo menos classifiquei assim, e isso foi o suficiente para me afastar e não me esmerar em tentar alcançar a aprovação que eu nunca teria dessas pessoas.
Havia poucas disciplinas optativas e poucas oportunidades para montarmos nosso próprio curso, como costuma ser comum no sistema de algumas grandes universidades públicas. Se não houvesse reprovação, a tendência era começarmos o curso em uma turma e permanecer com ela até o final do curso, 5 anos depois.
E foi o que fiz. Comecei com esta turma, em 1991, e fui até o final do curso com eles(as).
Porém, a partir de meados do segundo ano (em 1992) e do terceiro comecei a frequentar e me enturmar com a Filô, com a faculdade como um todo, com estudantes de outros cursos e turmas, nos intervalos e nos eventos.
Então nos intervalos de aulas eu ia para o centro de convivência ouvir música, conversar, beber e paquerar. E ia também muito às festas, regadas com muita música punk, cerveja Polar no copão de 600 ml e maconha. Era nessas situações que eu me sentia aprendendo um pouco mais da vida, nesse contato com “gente muito doida”, fazendo os amigos que eu nunca tinha feito, descobrindo novas formas de se viver e se lidar com as dificuldades, admirando a imensidão que se descortinava perante a minha miopia existencial.
Era o início de minha liberdade a nadar de braçadas, de meus saltos para fora de casa, para longe de meus pais e mais perto da conquista de uma vida mais plena, ética e saudável.
Em 1991 fui a muitas festas e voltei para casa pegando os primeiros ônibus da manhã, porque eles paravam de rodar por volta de meia-noite e só retornavam às 5 ou 5:30. Porque eram sempre dois ônibus para ir e dois para voltar. Então me lembro de ter dormido algumas vezes nos bancos de concreto do terminal.
E minha sensação era sempre a de que aquilo tudo fazia parte do misterioso processo de aprender a viver. Sendo que isso, por acaso, faz agora eu me lembrar de há poucos dias, quando minha filha, brincando de entrevistadora, me perguntou:
- Como é ser psicólogo?
- Difícil...
- Por quê?
- Porque as pessoas esperam que um psicólogo saiba viver, e eu não sei ainda.
Estávamos na área de lazer do condomínio. Ela saiu, rindo-se, com suas amiguinhas. Dois vizinhos, com quem eu conversava, entreolharam-se, talvez um pouco chocados.
E eu ainda só sei que não sei, que ainda aprendo muito, o tempo todo, e que ainda erro, demasiadamente. Mas muitos tombos são de ensaio e erro. São testes que constantemente realizamos aqui e ali, mesmo com todo o arsenal teórico possível, e tentando lidar com todo o conhecimento que vem sendo depurado há décadas pelo método científico. E sempre aprendo algo novo, aqui e ali, inclusive com autores e técnicas das quais eu nunca antes havia ouvido falar, ou só conhecia superficialmente.
E alguém poderia alegar que fugi de enfrentar mais assertivamente as pessoas com as quais não fui capaz de conviver mais harmoniosamente, que eu não soube me comunicar com elas, que minha aversão foi maior do que minha habilidade social. Talvez seja verdade. Ou talvez esse tipo de alegação seja também, por um lado, bem equivocada, pois insiste numa resolução impossível de conflitos, em interações já totalmente desgastadas, queimadas. Porque pontes se queimam, e insistir em algumas travessias sem base é lançar-se e perder-se no abismo.
Porque nessa vida eu aprendi muito mais com quem não estava contaminado pelo ranço de ter me conhecido e se enjoado ou se enojado de mim. Porque depois que as pontes são derrubadas vêm as muralhas a nos separar. E eu nunca fui muito bom em bater com a cabeça na parede. Sempre fui mais habilidoso para pegar minhas trouxas e cair no mundo.
Porque às vezes o maior problema não é sentir-se burro ou incapaz, e assim ser dotado de pouca autoconfiança. Saber que não sabemos, ou que não somos tão capazes quanto gostaríamos, é quase nada perto de saber que não somos queridos, aceitos ou amados.
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