Parte 1:
É comum ouvirmos profissionais de Psicologia dizendo para as pessoas que elas devem ressignificar algumas coisas. Contudo, esse tipo de orientação, na minha concepção, tem somente alguns significados: é uma orientação ruim, vazia e confusa.
Quem diz isso a seus pacientes simplesmente está deixando-os sozinhos com alguma coisa que não faz sentido. Porque esta ressignificação não irá simplesmente surgir a partir de um ato de boa vontade e esforço.
Não existe geração espontânea de ressignificação. Não existe esse tipo de liberdade. Não existe, portanto, o que é definido como livre-arbítrio. Porque querer não é poder. Não temos o poder de desejar, do nada, algo que não desejamos, e vice-versa. A liberdade não brota da vontade. E o livre-arbítrio é, em certa medida, isso: acreditar que a liberdade brota da vontade.
Se a ingenuidade acredita que somos resultado de nossas escolhas, a próxima questão é: o que determina nossas escolhas, porque escolhemos uma coisa e não outra?
Isso não é resultado de um simples ato de vontade. Acreditar que assim o seja é negar algo absolutamente simples e básico: que o mundo é maior do que nós. Eis o narcisismo tolo.
Então um ponto importante é não confundir as coisas. Passamos a dar um novo sentido para o que existe, o que vivemos e o que nos cerca, a partir do momento em que nossas interações com o mundo e as coisas se alteram. Novas interações, novos ambientes, novas fontes de estimulação, novos modos de agir e estar no mundo produzem novos sentidos e não o contrário.
Você não precisa ressignificar nada. O trabalho do psicólogo é inevitavelmente sistêmico, social, familiar, lidando com tudo o que for possível à volta do paciente. É mudando o mundo que mudamos nós mesmos.
Então temos de fazer o possível para que as pessoas se desloquem, alterem posições, configurações, horários, locais, exposições, fontes de estimulação, alimentação, e tudo o que for necessário para que elas de fato mudem.
Porque não existe geração espontânea. O indivíduo não é o manancial de nada. Porque a mudança é sempre de fora para dentro.
Parte 2:
Acho que é primeiro importante entender a diferença entre sentido e explicação.
Uma pessoa está caminhando por uma rua deserta e algo raro ocorre: um vaso cai de cima de um prédio, em sua cabeça. Ela se fere ao ponto de ter de ficar alguns dias em um hospital, e passa por uma série de situações muito sofridas até que por fim se recupera. E juntamente com todo o sofrimento físico, ela também fica com uma pergunta muito sofrida: "Por que isso foi ocorrer logo comigo?".
A pergunta é compreensível, porque se a queda de um vaso de um prédio é algo muito raro, mais raro ainda é que a trajetória do vaso entre em colisão com a cabeça de um transeunte em uma rua deserta.
A vítima se sente vítima também do acaso. Sente que foi vítima de um azar muito grande. Se sente cruelmente injustiçada.
O primeiro problema é que a realidade não é justa. Não existe justiça na natureza. A justiça é uma invenção, uma aspiração humana.
Se essa pessoa quer algum tipo de justiça ou reparação, deverá entrar na justiça contra o proprietário do apartamento do qual o vaso caiu. Mas não há como voltar no tempo para reverter o dano, e não há como se comprovar que exista alguma entidade sobrenatural onipotente que tenha feito ou permitido isso.
Então simplesmente não há sentido para o que ocorreu. Porque não havia nenhuma finalidade para aquilo. O vaso não caiu na cabeça da pessoa para que ela se transformasse nisso ou naquilo, para que ela se transformasse numa pessoa mais forte ou para que ela aprendesse alguma coisa. Não havia finalidade alguma no ocorrido. Porque, para dizermos que havia finalidade, tem de existir uma entidade controladora de tudo, que atua com propósitos específicos para a vida desta pessoa.
Há, portanto, somente o campo das causas, dos determinantes do ocorrido. E, a partir disso, o que devemos buscar é uma explicação, e não um sentido.
Mas o problema é que boa parte das explicações não satisfaz a um bom número de pessoas. Para muitas parece haver um poder mais consolador no sentidos, nas ficções, nas mentiras que inventam para si mesmas, do que na simplicidade angustiante de uma explicação.
Concordo que a explicação, no exemplo citado, é de fato muito menos consoladora. O vaso caiu na cabeça daquele sujeito porque era ele quem estava passando ali naquele exato momento, oras. Sim, fato muito raro, mas não impossível. Sim, muito azar. Mas o azar sempre existiu e não merece um sentido individual e sobrenatural só porque ocorreu agora especificamente com você. Evento muito específico, mas que não torna você tão especial assim.
Então, a partir desse exemplo, temos a percepção de que o sentido não serve para nada. Porque ou você tem uma explicação ou você simplesmente não tem nada. O sentido entra na situação e embola o meio-de-campo.
Alcançamos as causas por meio de explicações, e alcançamos os sentidos por meio de interpretações. Mas se o sentido não coincide com a causa, com o determinante, ele é falso, não? Se uma interpretação permite um sentido que difere dos fatos, trata-se de uma interpretação equivocada.
E claro, não nos esqueçamos: existe o sentido no sentido de sentir. No sentido de que cada um sente o mundo de modo individual. Quando perguntamos a uma pessoa o que é ser mãe, cada uma, em tese, dirá uma coisa diferente.
Alguém poderia dizer que o trabalho de ressignificação incide exatamente aí, em fazer com que as pessoas passem a sentir, em perceber de modo diferente o que lhes acomete.
Porém, insisto. É uma ilusão acreditar que isso será obtido somente por meio de conversas sobre o que a pessoa vem sofrendo. Claro, conversar já é uma forma de exposição, que facilita por exemplo a dessensibilização, ou a habituação. E, ocorrendo isso, a pessoa passa a dar um sentido diferente para sua experiência.
Também, ao falar sobre o que está acontecendo, e assim entrar em contato com outras perspectivas, o paciente vai elaborando e ressignificando. Mas é incrível como muitos psicólogos não se dão conta de que isso muitas vezes não basta. Acreditam que bastam os pacientes falarem sobre o que estão sentindo, e que somente isso terá um efeito de mudança significativa em suas vidas.
O sujeito que foi vítima da queda de um vaso em sua cabeça não precisa da mentira de que aquilo aconteceu para que ele se transformasse em uma pessoa mais forte. Ele somente precisa seguir com sua vida, se envolvendo com atividades e pessoas que preencham sua vida e seu cotidiano.
Não precisamos nem mesmo responder à pergunta de qual é o sentido de nossa vida se nossa vida tem sentido. Quando a vida tem sentido, esse tipo de pergunta não faz sentido algum.
Não basta ressignificar. A produção de um novo sentido só tem finalidade prática, e terapêutica, se ele for concebido como um indício para se alcançar um estado mais elevado de qualidade de vida ou de compreensão da realidade. O encadeamento de novos sentidos somente é útil se estiverem a caminho do encontro com a realidade.
O risco da profusão de sentidos é quando ela desemboca em uma espécie de pântano ou ciranda hermenêutica. Ou quando damos sentido ao que não tem sentido, que é o caso da superstição.
Como muito bem enuncia André Comte-Sponville (2003, p. 577 - 578):
"Toda superstição submete o real ao sentido: ela explica o que é (um sonho, um eclipse, um gato preto) pelo que quer dizer (por exemplo, uma desgraça por vir)".
E Comte-Sponville dá sequência a seu raciocínio, para mostrar o risco de psicoterapias ou mesmo de processos, ditos psicanalíticos, que podem se perder em hermenêuticas vazias, ou mesmo em algo que mais se parece com superstição do que com um trabalho que mira a própria realidade:
"A psicanálise faz o inverso. Ela submete o sentido ao real. Ela explica o que quer dizer (o sentido de um sonho, de um ato falho de um sintoma) pelo que é (um desejo reprimido, um trauma, uma neurose). A superstição dá sentido ao que não tem sentido; a psicanálise reduz o sentido a outra coisa, que o dissolve.
É por isso que é um equívoco pedir que a psicanálise aponte o sentido da vida. Ela pode apontar apenas o sentido de nossos sintomas ou dos nossos sonhos. Senão deixa de ser análise para ser superstição. Deixa de ser conhecimento (da minha história) para ser religião (do meu inconsciente). Pobres analisandos, que buscam um sentido! Freud só buscava a verdade.
Dirão que as duas coisas estão ligadas, que é esse o caminho real da psicanálise... Resta, todavia, não tomá-la na contramão. Freud é o contrário de um profeta. Ele não anuncia, explica. (...) O sentido é apenas um caminho que conduz à verdade. (...) A terapia é feita de palavras, mas a saúde é feita de silêncio.
Notemos, para terminar, que toda superstição tende a se verificar. Quem quebra um espelho e se assusta com isso, seu temor já confirma o presságio que o inspira. A superstição dá azar."
Referência:
Comte-Sponville, A. (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.