Wednesday, December 29, 2021

Somos, em alguma medida, a média do que nos cerca

 Um colega escreveu assim:

"Uma coisa que fica cada vez mais clara - antes como intuição, agora reforçada por alguns estudos empíricos - é que somos, em alguma medida, a média de valores e opiniões que nos cercam."

Isso não é novidade alguma para os behavioristas radicais.

Friday, December 24, 2021

Sucesso e foco

Foco é fundamental para o sucesso. Quem se perde com muitos afazeres variados, pode mais facilmente se perder do rumo do sucesso. Já tive muito mais foco na vida. E muito mais sucesso. Porque o sucesso é desejar, o que de fato importa, e conseguir. Entrava às 8 horas na biblioteca, para estudar, e só saia às 23 horas. E tive o sucesso que almejava: não passei fome ou fiquei desempregado por mais de 6 meses. Não tomar um ferro bem grande no lombo era a minha motivação para esse nível de foco. Porque o sucesso é sobreviver e ter saúde. O resto é luxo.

Monday, December 06, 2021

Devedores compulsivos

Atuei em consultório particular durante muito tempo. Após a entrevista inicial é interessante avaliar se o caso é realmente para nós, se teria de ser encaminhado para algum outro profissional ou algum outro tipo de serviço. Porque ocorre de algumas vezes ser um caso que não teremos muitas condições de ajudar ou de sustentar. 

A questão é que não somos obrigados a aceitar, para um processo psicoterápico, qualquer paciente que aparece. Se achamos que não daremos conta, o mais ético é realmente encaminhar para outros, que terão mais condições.

Havia basicamente dois tipos de pacientes que eu evitava atender: sociopatas e devedores compulsivos.

Acho que no primeiro caso muito de vocês talvez entendam com mais facilidade os motivos da evitação. Mas quero aqui me ater ao segundo caso, o dos devedores compulsivos.

Em muitos desses casos sinto que essas pessoas fazem realmente alguns cálculos, para conseguir o que concebem como vantajoso para elas. 

São pessoas que têm o gozo de ficar devendo para outras. A dívida, principalmente aquela que for mais difícil de ser cobrada, é concebida, sentida, como uma espécie de lucro. Muitos sentem que levaram a melhor, que ganharam alguma coisa, fazendo uma dívida. É o gozo de ter algo de graça, de um modo que não pode ser chamado de roubo. É muito parecido com o prazer de ter roubado alguma coisa, porém de um modo bem mais suave e com consequências menos danosas para si.

O devedor compulsivo aproveita as mais variadas brechas para conseguir algumas coisinhas de graça, principalmente coisas pequenas, se possível, porque já conta com o comportamento resignado de seus credores.

Pode estar com o dinheiro no bolso, mas jamais paga no ato da compra. Sempre diz que vai pagar depois, ou pede para que o vendedor espere o dia em que irá cair seu salário, ou qualquer desculpa semelhante.

Você vê que o sujeito está muito longe de ser pobre ou de estar com algum problema de falta de grana. Mas ele acaba pedindo para você esperar até o mês seguinte quando, por exemplo, irá cair seu salário. Essa fala tem o cálculo de que você, vendedor ou prestador de serviços, irá se esquecer, depois de tantos dias após a venda de seu produto ou a prestação de seu serviço.

O devedor compulsivo conta constantemente com isso: com o esquecimento e o perdão de suas dívidas. E também fará de tudo para que o papel de vilão fique com qualquer pessoa que ouse cobrá-lo por alguma coisa que ele deixou de pagar.

E se você for psicoterapeuta, em alguns casos nem terá eficácia se criar uma regra de descontos para pagamentos antecipados. O devedor compulsivo não é besta. Começa pagando direitinho durante o primeiro ou os primeiros meses. Em muitos casos parece que até sabe da importância de começar direitinho, para depois se criar um vínculo, e assim tornar difícil qualquer tipo de interrupção do tratamento devido a seu comportamento impróprio.

Um modo de talvez se aceitar esse tipo de paciente, com um pouco mais de segurança (para nós terapeutas, obviamente), é encontrar uma terceira pessoa, que ficará inicialmente responsável pelo pagamento, e ir aos poucos transferindo essa responsabilidade para o próprio paciente.

Nunca procedi desse modo, porque na época em que eu atuava em consultório particular, meu trabalho ainda não era tão sistêmico e analítico-comportamental como hoje.

Talvez seja uma boa alternativa. É melhor do que colecionar calotes, algo com o qual convivi com certa frequência. Em alguns casos consegui consertar, e em outros nunca vi a cor da remuneração de meu trabalho.

Monday, November 08, 2021

Os limites da comunicação não-violenta (CNV)

Comunicação não-violenta não resolve tudo. 

É o que existe de mais eficaz para se quebrar com o ciclo da violência, nas interações em que é possível ocorrer um mínimo de comunicação. Contudo, há alguns casos nos quais algumas pessoas aumentam sua agressividade, mesmo quando são abordadas da forma mais pacífica possível, inclusive com as técnicas de comunicação não-violenta.

Eu fazia parte de um grupo virtual, no qual havia umas 40 pessoas, pelas quais, em sua maioria, eu tinha grande apreço e respeito. 

Porém, infelizmente, houve um dia em que um das pessoas do grupo ficou bastante irritada comigo e muito agressiva.

Eu estava transtornado com um evento trágico que havia ocorrido em alguma cidade do Brasil, e que estava sendo noticiado pelos jornais. E eu também estava revoltado, porque aquele aquela tragédia podia ter sido evitada. Havia claramente negligência e egoísmo envolvidos.

Porém, para tentar sensibilizar as pessoas para aqueles fatos, e do que podia ser feito, eu narrei a tragédia da forma mais realista possível.

E meu texto narrativo atuou como um gatilho para algumas das pessoas mais sensíveis do grupo. Era como se esse texto contivesse imagens muito fortes. Alguns ali não deram conta de ler sem ficar muito abalados.

Em poucas horas, em privado, comunicaram-se entre si, sobre meu texto, que ele continha excessos, que talvez eu não devesse me expressar daquele modo, ou que eu deveria ter deixado ali um aviso de gatilho para os mais sensíveis.

Até aí tudo bem. Porque qualquer pessoa mais serena teria plenas condições de me comunicar em privado, ou mesmo em público, dentro do grupo, de forma polida, como eu deveria ter procedido, como eles gostariam que eu tivesse procedido. Desse modo tudo teria sido resolvido da forma mais tranquila possível.

Porém  infelizmente, não foi isso o que ocorreu. Um dos membros do grupo tomou a palavra, em público, e me repreendeu de modo muito ríspido e truculento.

Confesso que nos primeiros minutos eu simplesmente não sabia o que falar ou o que responder. Fiquei bastante atônito com aquela reação tão desproporcionalmente agressiva. Foi assim que eu senti o contexto do ocorrido. Pode até ser que eu tenho me enganado. Mas meu sentimento, até hoje, é o de que a agressividade daquela pessoa foi muito grande e muito desproporcional.

Então a primeira coisa que fiz, sempre dentro da perspectiva de uma cultura da paz, foi a de pedir as minhas sinceras desculpa para todos os presentes, em virtude dos possíveis efeitos que aquele texto poderia ter provocado na sensibilidade de alguns.

Contudo, para a minha surpresa, isso fez com que essa pessoa aumentasse ainda mais o nível de sua agressividade. Ela pegou minha resposta e retrucou, fazendo trocadilhos e jogos de linguagem, ao ponto de transformar nossa interação, em público, em uma grande humilhação.

Eu me senti totalmente massacrado e humilhado. Confesso que tive muita vontade de também partir para a agressão franca. Eu teria poucas e boas para escrever para aquela pessoa. Mas, como venho há alguns anos fortemente cultivando uma cultura da paz, achei melhor me conter, e continuar com a minha pobre e quase inútil comunicação não-violenta.

Escrevi mais umas duas frases, em tom ainda bastante apaziguador, e me despedi do grupo.

E depois, como em outras vezes em que isso ocorreu em minha vida, eu sentei e chorei. Porque é muito difícil ser tão intensamente agredido, não reagir, se sentir absolutamente humilhado, em público, e ainda assim achar que não vamos sentir nada. Machuca, machuca muito. Dói, e fica doendo durante muito tempo. Isso ocorreu há quase dois anos, e quando começo a me lembrar ainda sinto a mesma dor. 

E uma das coisas que também fiz questão de fazer foi a de bloquear essa pessoa, em pelo menos uma de minhas redes sociais, que era a qual utilizávamos algumas vezes para nos comunicar, das poucas vezes em que nos comunicamos em privado, na vida.

Meu sentimento é o de que essa pessoa foi muito covarde. E eu jamais diria isso a ela ali, naquele contexto, porque não é assim que se faz uma comunicação não-violenta. Não é assim se faz redução de danos em interações com potencial para a violência. 

Ela percebeu que eu não revidei, que não houve troca de agressões, que houve um pedido de desculpas, e mesmo assim intensificou sua agressividade em cima de mim.

Eu somente soltei mais duas ou três frases, e me despedi do grupo. E não pretendo voltar, apesar da grande maioria das pessoas ali serem fantásticas.

É um grupo de WhatsApp, e eu detesto grupos de WhatsApp. Só faço parte mesmo dos grupos de trabalho, dos quais não há como fugir. E eu estava mesmo um pouco deslocado naquele grupo, me sentindo um completo estranho. Eu não conseguia me manifestar ou me sentir como uma pessoa que agradasse às outras naquele contexto, apesar, como já disse, da grande maioria delas serem pessoas fantásticas.

Horas depois de minha saída, alguns dos membros me enviaram mensagens, em privado, perguntando como eu estava. Perceberam que a agressão havia sido grande. Tiveram compaixão.

Mas ninguém, pelo visto, teve coragem de intervir enquanto as coisas estavam ocorrendo, dentro do grupo. Deixaram rolar, talvez pensando que eu fosse me defender, possivelmente revidando. Não foi isso o que ocorreu, e a humilhação foi completa. 

E quem está lendo esse texto pode até pensar que sou um completo idiota, uma pessoa resignada e tola, ou qualquer coisa parecida. Mas a cultura da paz que conheço não é algo que tirei da cartola, não é uma opinião. Está fundamentada pela contribuição de trabalhos acadêmicos. É uma técnica amplamente aceita e adotada, como instrumento de base para abordagens em mediação de conflitos e consultas com pacientes em variadas especialidades. E serve também para a vida diária.

Porém, como já disse, não é infalível. Diante de padrões de comportamento covardes e sádicos talvez seja completamente inútil, e possivelmente em muitos desses contextos não exista outro modo de nos comportarmos. Porque simplesmente revidar é sempre mais arriscado, e provavelmente mais danoso. A agressividade mútua pode se intensificar. E dependendo do contexto, e das pessoas envolvidas, os danos podem ser muito grandes e irreversíveis.

Uma das melhores coisas a se fazer em situações como essa é fugir, escapar, o mais rápido possível. E foi, de certo modo, o que fiz. 

Sim, dói, dói bastante. Mas minha experiência de vida me diz que foi o melhor a ser feito. Em várias outras situações, nos últimos 30 anos, atuei de modo bastante agressivo, conseguindo inclusive agredir muito mais a quem me agrediu, revidando, e os resultados, as consequências, não foram nada boas. Foi muito mais doloroso do que ser agredido, não revidar, e fugir. 

É isso também não quer dizer que eu sempre consigo atuar de modo pacífico. Algumas vezes eu revido, e parto mesmo para a agressão, o que deixa inclusive algumas pessoas bastante assustadas, porque não imaginavam que eu era capaz de tanta violência verbal e termos de bem baixo calão.

Porém, conscientemente, se alguém me perguntar qual é a opção que eu geralmente tento perseguir, ela é esta, a de uma cultura da paz e da comunicação não-violenta. E, sim, em muitos casos eu prefiro fugir. Podem me chamar de fujão.

Saturday, November 06, 2021

A questão do respeito na relação com os pacientes

Quando algumas pessoas, que não têm formação na área de saúde mental, aparecem para trabalhar no CAPS, costumam ocorrer alguns problemas. 

Tenho e tive colegas que estavam acostumados a trabalhar em hospitais, e quando chegaram ao CAPS se assustaram com algumas coisas. Nas reuniões era, e ainda é, comum reclamarem de que alguns pacientes foram desrespeitosos, por exemplo. E muitos, para tentar se impor, chegam até mesmo a dizer ao paciente a clássica frase: “Me respeite!”. Ou então alertam: “Você está me desacatando! E desacatar servidor público é crime!”.

Em algumas situações, durante essas a reuniões, eu digo que, em quase 30 anos de prática profissional, eu jamais senti que algum paciente estava me desrespeitando. Contudo, logo após me expressar desse modo, é nítida a expressão de incredulidade desses colegas, e alguns inclusive fazem questão de tentar mostrar que eu estou sendo desonesto ou mentindo.

É uma situação tensa e difícil, mas sempre mantive a tranquilidade, e tento dizer que, segundo minha formação técnica, e minha experiência profissional, eu não vejo o menor sentido em se afirmar que um paciente está me desrespeitando, e muito menos chegar ao ponto de ter que dizer para esse paciente algo como o clássico “Me respeite!”.

Lembro-me inclusive de uma ocasião em que alguém pregou alguns cartazes nas paredes do CAPS, com aquele aviso da lei do desacato. Aquilo me deixou suficientemente irritado para que eu imediatamente tirasse todos esses cartazes das paredes e os jogasse no lixo. 

Isso ocorreu durante o período em que essa lei havia sido extinta. Porém em junho de 2020 o STF decidiu que é crime. A votação não foi unânime, e a maioria dos ministros defenderam que não há incompatibilidade da lei do desacato com os direitos humanos de liberdade de expressão. Então ficou decidido que a população tem o direito de expressar o que pensa diante de servidores públicos, mas ninguém tem o direito de humilhar, injuriar ou agredir fisicamente o agente público.

Estou há 11 anos no SUS, atendo inúmeras pessoas diferentes todos os meses, e nunca nem mesmo senti que algum paciente alguma vez me desrespeitou. Porque meu sentimento é o de que aquela pessoa está em uma instituição de saúde, manifestando seu sofrimento, adoecimento e vulnerabilidade. Então o que temos nas instituições de saúde é um contexto muito específico, que facilita arroubos e excessos, e pode assim ocorrer de alguns pacientes serem mais ríspidos, hostis ou até xingarem algum servidor público.

E não é somente ter plena consciência disso que faz com que eu fique mais tranquilo e tolerante diante de pacientes e familiares mais agressivos ou hostis. Outra coisa que sinto é também que há uma assimetria muito grande entre os servidores e a população atendida. 

O servidor, na grande maioria das vezes, se encontra em uma posição de controle de muito mais poder do que o usuário do serviço. Ter plena consciência disso, e ter uma formação consistente em escuta empática e/ou comunicação não-violenta é fundamental.

Então, para finalizar, eu diria que me sinto muitíssimo tranquilo e seguro com minha formação, a qual tem me permitido, em muitos anos de atuação, quase sempre conseguir, com facilidade, contornar esse tipo de situação um pouco mais delicada. 

Quem tem uma formação técnica mais consistente quase sempre consegue fazer com que aquele paciente, ou familiar, que chegou mastigando marimbondos, saia do atendimento com gosto de mel na boca.

Wednesday, October 20, 2021

Duplo-vínculo

A expressão "se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come" é conhecida. E ajuda a entender um pouco o que é o duplo-vínculo. 

É um conceito que foi criado por terapeutas e pesquisadores da área de intervenção sistêmica. Diz respeito basicamente a uma situação na qual um comando duplo é emitido.

A duplicidade desse comando contém, porém, uma contradição fundamental. Porque é pedido ou ordenado a alguém que faça uma coisa, e que ao mesmo tempo faça o seu contrário.

Mas por que alguém faria isso com outra pessoa?

Pessoas indecisas ou mal resolvidas podem fazer isso com outras. E ódio e sadismo também produzem esse tipo de interação. 

É claramente um tipo de relação entre as pessoas, na qual uma oprime e outra é oprimida. 

Creio que pessoas indecisas ou mal resolvidas podem fazer isso com outras, de modo aparentemente involuntário, e pessoas que estão com muito ódio, ou tomadas por sadismo, estando ou não com ódio, também podem fazer esse tipo de coisa.

Fora o fato de que relações muito assimétricas, com excesso de poder para um dos lados, também podem se transformar em terreno fértil para tais abusos.

E o que o duplo-vínculo causa? As observações desses pesquisadores mostram que, durante a infância, é possível que o duplo-vínculo tenha um papel significativo na geração de transtornos mentais severos, tais como a psicose, cujo sintoma central é a perda do juízo de realidade.

O duplo-vínculo tortura, e tem o potencial para enlouquecer e matar. E pode ser perpetrado até mesmo por pessoas, em tese, bem intencionadas, que não sabem muito bem o que querem ou o que estão fazendo.

E o problema é que muitas das pessoas, que são envolvidas e oprimidas por este tipo de interação, não se dão conta do que está acontecendo.

Tenho um histórico relativamente longo, de ter percebido isso precocemente em algumas das interações que já tive em minha vida, e aprendi, em boa medida, talvez por volta do final de minha adolescência, a escapar de tal infortúnio.

Porque, se por acaso estivermos sendo vítimas de tal situação, é crucial que consigamos identificar que isto está ocorrendo. 

Em alguns casos basta identificar e comunicar isso a quem está assim nos oprimindo. Em outros casos, possivelmente a maioria, isso fica longe de ser suficiente. E assim somente nos restará fugir para o mais longe possível dessas pessoas, ou então conseguir denunciá-las a instâncias capazes de detê-las.

É um tipo de interação que tem um poder enorme de destruição. É realmente triste e violento. E muitas vezes o que torna o duplo-vínculo um evento ainda mais lamentável é o fato de que ele pode muitas vezes irromper no seio de um grupo ou família aparentemente funcional ou feliz.

Monday, October 11, 2021

Como manter a autoridade, com carinho e muito bom humor

No CAPS tenho uma paciente que é muito divertida.

Uma vez ela me deu bom dia e logo perguntou como é que estavam meus oxiúrus. Porque ela de fato sabe que eu faço a terapia helmíntica, e  sabe que perguntar dessa maneira, como se eu tivesse oxiúrus, é realmente para me sacanear. 

Respondi que eu fazia mesmo a terapia helmíntica, que eu tinha de fato vermes no bucho, mas que não tinha todo esse fogo no rabo. 

Há poucos dias ela ficou dizendo, repetidas vezes, que eu tinha de ir ver como estava o bazar do CAPS, que eu tinha de aparecer lá para prestigiar o evento. Aí eu lhe disse que eu já tinha ido lá, e que eu já tinha comprado algumas coisas. Ela me perguntou o que eu tinha comprado, e eu prontamente lhe respondi,  bastante sério, e na frente de outros pacientes, que eu tinha comprado algumas calcinhas pra mim. 

Ela é muito divertida, e desperta isso nas pessoas, que geralmente ficam mais divertidas perto dela. É uma maravilha!

Então, como brinco muito com alguns de meus pacientes, um colega, psicólogo, me perguntou como concilio as brincadeiras e "gozações" com a manutenção de minha autoridade na relação com eles.

Respondi-lhe assim:

"Já testei minha autoridade de tudo o que é jeito, tentando levá-la ao limite, mas ainda não encontrei esse limite. Só perco autoridade quando perco o vínculo afetivo. Isso geralmente ocorre com pacientes que foram frustrados por mim, antes de haver apego."

As éticas capitalista e comunista

Tenho profunda admiração por Carlos Lamarca e Ernesto Che Guevara.

Ambos, com seus vinte e poucos anos, viajaram pelo mundo afora, testemunharam a miséria de muitas pessoas, e retornaram com ideais mais igualitários.

Lamarca testemunhou a pobreza, a miséria e o sofrimento inaceitável na Palestina, no início da década de 60, assim como também o que percebia da realidade brasileira, e Che Guevara viajou por toda a América Latina.

Os ideais socialistas e comunistas são, em princípio, moralmente superiores à ética capitalista. 

São éticas diferentes. Os ideais comunistas se pautam por uma ética de cunho mais principialista. O capitalismo se pauta mais por uma ética consequencialista.

Quero então fazer uma analogia, com um exemplo bem simples. 

Suponha que alguém está se afogando, e uma pessoa lhe arremessa uma boia, para tentar salvá-la, e esta mesma boia atinge sua cabeça, provocando um desmaio, e que por fim a mata afogada.

Nesse caso temos uma intenção que é boa, porém com um resultado catastrófico. É fundamentalmente disso que é acusado o socialismo, geralmente com críticas que se referem ao socialismo soviético.

Agora suponha que, ainda como no primeiro exemplo, alguém esteja se afogando. Porém, do alto de um barco, alguém arremessa uma boia, com o objetivo de atingir o afogado na cabeça, para que ele desmaie, e morra.

A intenção neste caso é no mínimo difícil de ser compreendida, ou então é de fato maléfica, ou somente pode ser explicada por motivos egoísticos. 

Quem está tentando matar alguém que está se afogando pode tentar se justificar com argumentos mais típicos da extrema-direita, de cunho  nazi-fascista, dizendo que os afogados estão emperrando com a possibilidade de progresso material, econômico, da coletividade. Deve-se então deixar que os mais fracos pereçam, para que a própria coletividade, como um todo, possa se fortalecer.

Contudo, segundo o exemplo que dei, observamos que a intenção é ruim, e o resultado acaba sendo, contudo, satisfatório. Alguém tentou matar outra pessoa e acabou, no final das contas, salvando sua vida.

E não é muito difícil de julgar qual das duas ações é moralmente superior. Mesmo que o resultado da primeira ação tenha sido catastrófico, ela pode ser vista como moralmente superior. 

Então a impressão que tenho é que, em termos principialistas, a moral comunista é superior à moral capitalista.

A moral capitalista é muito mais tortuosa. É aquela história de que existem benefícios privados que produzirão, no final das contas, benefícios coletivos, de que é melhor cada um cuidar da sua própria vida, da melhor forma possível, que isso irá, no final das contas, produzir um grande benefício coletivo.

O motor do capitalismo é o individualismo, o egoísmo. Ele aproveita o egoísmo como uma grande força motriz para a produção de riquezas que, no final das contas, aumenta o tamanho do bolo, aumenta a riqueza da sociedade como um todo.

Para o capitalismo é fundamental que todo mundo queira ser rico, que todo mundo queira ganhar muito dinheiro, porque isso acaba depois sendo convertido em benfeitorias para toda a coletividade. Porque, em tese, uma pessoa muito rica, no sistema capitalista, querendo ficar cada vez mais rica, emprega outras pessoas, consome muitos bens e serviços, coleta uma quantidade muito grande de impostos, e assim o mundo vai progredindo.

Os capitalistas acusam os comunistas de não conhecerem a natureza humana, e de não saberem que é importante levar em conta a motivação individual. Falam, com razão, que "não existe almoço grátis", que nada é de graça, que tudo demanda o trabalho de alguém, que é preciso ter uma certa proporcionalidade, que as pessoas não podem simplesmente receber as mesmas gratificações, independentemente do que fizeram, que quem faz mais precisa ser gratificado por isso.

Outro ponto importante é a crítica de que talvez alguns comunistas tenham uma visão da natureza humana que é ingênua, pois talvez concebam o ser humano como essencialmente bom. E isso está obviamente longe de ser um fato.

Então algumas críticas da direita para esquerda talvez tenham fundamento quando acusam os comunistas de serem equivocados. Porque não dá para acusar os comunistas de serem, em princípio, maus ou desprovidos de compaixão. E esse tipo de acusação, por sua vez, dá para ser feita a muitas pessoas que defendem a defesa do egoísmo como algo que vai salvar a humanidade.

Em termos freudianos é mais arriscado o altruísmo desesperado do que o egoísmo esclarecido. Muitas vezes quem se manifesta como se fosse o herói, que está lutando pelos pobres e miseráveis, é alguém também carregado de narcisismo e desejo de poder.

Muitos que dizem que estão lutando para aumentar a igualdade no mundo, muitas vezes estão lutando por simples projeção de seus próprios desejos narcisísticos. Mas, convenhamos, isso é mais comum na caridade paternalista do que em um projeto estruturado de desconcentração de poder e renda. Então, para início de conversa, não confundamos comunismo com caridade. E é exatamente neste ponto que a crítica de muitos, da direita para a esquerda, é também fundamentalmente equivocada. Porque comunismo não é caridade nem cristianismo. Não é, por um ato de boa vontade, doar tudo o que se tem para os pobres. 

E também não é a crença de que o ser humano é fundamentalmente bom. Porque, se assim o fosse, não haveria porque haver, na fase socialista, o peso da mão do Estado planejando a vida social e econômica.

Tanto Carlos Lamarca como Ernesto Che Guevara vislumbraram a possibilidade de um sistema socioeconômico diferente que, da forma como entendemos hoje, possa aproveitar tudo de bom que o capitalismo produziu e, a partir disso, construir um mundo mais igualitário e benéfico para todos nós.

Porque o socialismo não é o contrário do capitalismo, e nem mesmo a negação deste. É sua assimilação e superação necessária.

Thursday, October 07, 2021

Caos e bom humor no CAPS

A depender da situação, os atendimentos em um CAPS podem se transformar em um verdadeiro caos, com o qual tem de se lidar com muita serenidade, tranquilidade e até bom humor.

Um paciente com autismo severo, incapaz de articular qualquer tipo de palavra, emitia gritos altos a cada 20 segundos, na recepção, e deixava todos muito estressados, porque não é nada fácil tentar trabalhar com alguém que está gritando o tempo todo. 

Seus gritos estavam comprometendo o trabalho de toda a equipe, com todos os outros pacientes. Entraram na sala na qual eu atendia um outro paciente, interrompendo o que eu fazia, para que eu pudesse atender a este caso severo.

Como se não bastasse essa interrupção, ainda houve outra interrupção, de uma paciente em crise, agitada e irritada, dizendo que queria ser atendida por mim. Esta paciente, por sua vez, não estava agendada comigo, e devia ser atendida por um outro profissional, escalado para as emergências.

Comecei a atender o autista e seus familiares. Ele continuava gritando, e emitindo sons em volumes bem altos, o que tornava difícil até mesmo escutar o que os familiares tinham a dizer. Ele andava constantemente de um lado para o outro dentro da sala. 

Por sorte a sala era grande. Os familiares me diziam que ele gostava de música. Colocamos algumas músicas de que ele gostava no volume mais alto possível dos aparelhos de celular, e ele parecia de vez em quando hesitar um pouco, para ouvir, e parecendo que ia se acalmar. Mas, 3 ou 4 segundos depois, tudo retornava à estaca zero.  

Então tivemos a ideia para que um dos familiares começassem a tentar dançar com ele, e mesmo assim pouco se resolveu. 

Porém, de repente, a mesma paciente que havia invadido a sala onde eu estava atendendo o paciente anterior, invadiu novamente a sala onde eu estava tentando atender agora esse autista grave com seus familiares, exigindo ser atendida por mim imediatamente.

- Só atenderei você, se você dançar com ele - disse a ela, apontando para o paciente com autismo severo.

Ela sorriu, e me respondeu:

- Sim, podemos tentar!

Tentamos, com muita suavidade e delicadeza, mais um movimento para que ele de repente se encontrasse um pouco com a música e algum movimento parecido com dança, mas nada disso resultou em qualquer resultado significativo.

Ela pelo menos se acalmou um pouco, ao ponto de entender que seria atendida por um outro profissional, porque havia outros pacientes agendados comigo, e eu não podia fazer com que ela furasse a fila. Não era justo com quem estava agendado.

O nível de energia e disposição para se lidar com uma situação dessas é bem alto. Mas para uma família conviver com aquela situação diuturnamente era certamente bem mais complicado.

Sunday, September 19, 2021

Epiteto, Sartre e behaviorismo radical

Epiteto teria dito assim: “O que perturba o ser humano não são os fatos, mas a interpretação que ele faz destes”.

As pessoas costumam citar esta frase para ressaltar que somos responsáveis pelo modo como interpretamos o que acontece conosco. 

Muitas dessas pessoas inclusive ressaltam que podemos interpretar nossas desventuras de modo vitimista ou transformá-las em uma visão mais otimista e fortalecedora. Chegam a dizer que não somos responsáveis pelo que nos ocorreu, mas que somos totalmente responsáveis pelo modo como interpretamos o que nos ocorreu.

Então imaginemos uma pessoa que tenha sido, por exemplo, torturada. E imaginemos também que esta pessoa, durante um certo tempo, tenha tido uma interpretação “vitimista” do ocorrido. Durante um certo tempo ela costumava relacionar as torturas que sofreu com tudo o que havia de errado em sua vida.

Porém, agora imaginemos que há alguns anos ela vem convivendo com um novo grupo de amigos e que, a partir dessa convivência, essa interpretação tenha mudado.

Sabemos muito bem que esse tipo de coisa ocorre na vida das pessoas. Muitas mudam a partir de novas influências. E se mudam sua interpretação a partir de novas influências, faz sentido dizer que são as responsáveis, ou as únicas responsáveis pelo modo como interpretam o mundo?

Dizer que somos os responsáveis pelo modo como interpretamos o mundo, que interpretar de modo otimista ou pessimista é simplesmente um ato de escolha, individual, é assumir que não existe influência possível. Se somos totalmente responsáveis pelo modo como interpretamos a realidade, somos todos ilhas incomunicáveis umas com as outras.

O mesmo se aplica a uma frase que é geralmente atribuída a Sartre, que teria dito que “não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.”

Mas se essa frase faz você agir, logo o que você faz é resultado de algo que fizeram com você.

Saturday, September 18, 2021

Como saber se alguém enlouqueceu mesmo?

 No filme "Reine sobre mim", Adam Sandler faz o papel de um sujeito que enlouqueceu. Mas não se trata de loucura clássica, de psicose. Está mais para um transtorno dissociativo. É um filme muito interessante. Recomendo a todas as pessoas que se interessam por saúde mental e a questão da loucura.

O personagem padece desse transtorno de um modo muito sofrido e triste. Seu adoecimento é enigmático. Não é simplesmente uma loucura comum, como já disse, uma loucura clássica. Não é psicose.

Alguns especialistas talvez até mesmo classifiquem esta condição como uma pseudopsicose. E podem até alegar que o personagem do filme não enlouqueceu de verdade.

E é possível mesmo pensar que não é psicose, porque o risco autolesivo é bem mais baixo do que em um transtorno psicótico. Quem sofre de transtorno dissociativo se comporta de modo muito parecido com pessoas que estão em estado hipnótico. 

É pouco provável que pessoas, nestas condições, se exponham a riscos extremos. Quando a situação fica de fato bastante perigosa os sintomas supostamente delirantes tendem a retroceder.

Há alguns anos acompanhamos um caso assim no CAPS, o qual possui nuances impressionantes, assim como o que pode ser observado no filme.

E esses aspectos impressionantes têm relação com o fato de serem paradoxais. Trata-se de um paciente que possui uma oratória e uma retórica muito acima da média dos outros pacientes que têm o mesmo nível de instrução formal que ele.

Ele sabe ler. Contudo é incapaz de lidar com dinheiro. Não consegue fazer o básico das operações de adição e subtração. E possui inclusive uma classificação diagnóstica de deficiência cognitiva.

Porém, faz discursos grandiloquentes, dizendo-se alguém de grande projeção social. Jamais se identifica com seu próprio nome. Sempre se identifica com um único codinome, cuja biografia remete a outra região do Brasil. A partir desse codinome que encarna, se apresenta como um homem de 30 a 40 anos mais velho, muito rico, poderoso e ocupando cargos políticos em nível nacional. 

Em uma única conversa costuma se apresentar como deputado federal, candidato a governador, médico, advogado e quantas posições sociais de prestígio puder mencionar.

Sua retórica e oratória são articuladas e envolventes. Praticamente toda e qualquer interlocução com ele se transforma em uma espécie de discurso político, em ritmo que é sempre solene e vigoroso, com diversas menções a grandes projetos de infraestrutura, com os quais ele garante que tem envolvimento direto.

Quando fala de outros políticos ou celebridades, sempre fala em tom de intimidade, mencionando supostos detalhes da vida dessas pessoas, que não seriam divulgados na imprensa ou para o grande público.

Tem também uma capacidade muito grande para o improviso e construções verbais carregadas de ironia e humor, sempre com aparência de sofisticação e intensa linguagem simbólica. Quem geralmente ouve o que ele diz fica envolvido, e acha divertido, engraçado.

Durante uma determinada época ele comparecia às reuniões de meu grupo terapêutico no CAPS. Ele não havia sido inscrito no grupo, mas adentrava a sala como se assim tivesse ocorrido. E suas intervenções eram, na maioria das vezes, jocosas e hilárias. Mencionava, de modo bastante elegante, sua suposta vida amorosa com suas secretárias e seus problemas de ereção.

Isso fazia com que muitas pessoas ali no grupo dessem risadas, mesmo aquelas que estavam muito abatidas, com o humor bem rebaixado. 

Sua participação era sempre um imenso desvio do tema, ou uma extrapolação cômica, que quebrava um pouco com o ritmo, ou fazia com que ficássemos todos um pouco mais alegres e relaxados.

Eu tinha sempre de limitá-lo, de contê-lo, de dizer que as coisas não eram assim, que aquilo não podia, que alguma outra coisa que ele tinha dito talvez fosse para um outro momento, ou então eu fazia isso também de um modo debochado, e aí todos se riam ainda mais.

Era realmente muito divertido, e eu confesso que sinto muita falta dele em meus grupos. Às vezes era tão engraçado e divertido que eu dizia a todos os presentes que tínhamos de montar um grupo de humor.

Um olhar mais superficial iria somente classificar a participação dele como perturbadora e ruim para a evolução do grupo. Mas hoje, relembrando tudo o que acontecia, sinto que ele era na verdade uma peça muito importante.

Há ainda uma série de eventos, provindos da interação com esse paciente, que são muito interessantes, sobre os quais talvez posso um dia fazer alguma narrativa mais reflexiva e pormenorizada. 

Mas o que fica mesmo é minha saudade da participação dele em meus grupos.

Sunday, September 05, 2021

Muito foram torturados, escravizados, estuprados

 A variedade de casos impressionantes no CAPS é grande. Atendo muitos pacientes que foram torturados, escravizados, estuprados. E muitos não se dão conta de que foram torturados, escravizados, ou estuprados. 

Muitos familiares só se dão conta de que esses pacientes estão numa situação grave quando cortam sua própria traqueia ao meio ou matam seu amado cachorro a pauladas. 

O fluxo de pacientes é tão grande que muitas vezes não damos conta de saber se hoje estão em melhor condição ou não. 

Um desses, que foi esse que cortou a própria traqueia ao meio, em uma tentativa malograda de autoextermínio, somente fui ter conhecimento do fato em minha atuação na UTI, há uns 7 anos (por sorte já não atuo mais em ambiente de UTI há 5 anos). 

Ele estava lá, internado na UTI, e era paciente registrado no CAPS, para acompanhamento conosco, em reabilitação psicossocial. É tanta correria que nem sei o nome dele, e nem tive tempo de acompanhar para saber se sobreviveu, se hoje está vivo ou como está. 

Era ficar correndo atrás disso ou atender o outro que havia tomado um copo duplo de água sanitária e que, segundo ele, isso tinha sido lhe ofertado por um policial militar. Segundo ele, o policial militar teria lhe ofertado esse copo, e o obrigado a beber todo o conteúdo. 

Ele tinha um histórico de drogadição, de morar nas ruas, e era com frequência torturado por policiais militares. 

Nem sempre temos tempo para fazer tudo que gostaríamos de fazer. Muitos pacientes têm meu número pessoal de celular, e me enviam mensagens com sermões de insandescidos pastores neopentecostais, ou de que estão pensando em se matar, no meio da madrugada. 

Hoje mesmo entrei na internet para abrir conta de e-mail, cadastro no governo federal e cadastro para microempreendedor individual para um paciente.

Reuni muitas dessas histórias em livro, e talvez haja ainda material para um segundo livro.

Wednesday, September 01, 2021

Você não precisa ressignificar nada

Parte 1:

É comum ouvirmos profissionais de Psicologia dizendo para as pessoas que elas devem ressignificar algumas coisas. Contudo, esse tipo de orientação, na minha concepção, tem somente alguns significados: é uma orientação ruim, vazia e confusa. 

Quem diz isso a seus pacientes simplesmente está deixando-os sozinhos com alguma coisa que não faz sentido. Porque esta ressignificação não irá simplesmente surgir a partir de um ato de boa vontade e esforço. 

Não existe geração espontânea de ressignificação. Não existe esse tipo de liberdade. Não existe, portanto, o que é definido como livre-arbítrio. Porque querer não é poder. Não temos o poder de desejar, do nada, algo que não desejamos, e vice-versa. A liberdade não brota da vontade. E o livre-arbítrio é, em certa medida, isso: acreditar que a liberdade brota da vontade.

Se a ingenuidade acredita que somos resultado de nossas escolhas, a próxima questão é: o que determina nossas escolhas, porque escolhemos uma coisa e não outra? 

Isso não é resultado de um simples ato de vontade. Acreditar que assim o seja é negar algo absolutamente simples e básico: que o mundo é maior do que nós. Eis o narcisismo tolo.

Então um ponto importante é não confundir as coisas. Passamos a dar um novo sentido para o que existe, o que vivemos e o que nos cerca, a partir do momento em que nossas interações com o mundo e as coisas se alteram. Novas interações, novos ambientes, novas fontes de estimulação, novos modos de agir e estar no mundo produzem novos sentidos e não o contrário.

Você não precisa ressignificar nada. O trabalho do psicólogo é inevitavelmente sistêmico, social, familiar, lidando com tudo o que for possível à volta do paciente. É mudando o mundo que mudamos nós mesmos. 

Então temos de fazer o possível para que as pessoas se desloquem, alterem posições, configurações, horários, locais, exposições, fontes de estimulação, alimentação, e tudo o que for necessário para que elas de fato mudem. 

Porque não existe geração espontânea. O indivíduo não é o manancial de nada. Porque a mudança é sempre de fora para dentro.


Parte 2:

Acho que é primeiro importante entender a diferença entre sentido e explicação.

Uma pessoa está caminhando por uma rua deserta e algo raro ocorre: um vaso cai de cima de um prédio, em sua cabeça. Ela se fere ao ponto de ter de ficar alguns dias em um hospital, e passa por uma série de situações muito sofridas até que por fim se recupera. E juntamente com todo o sofrimento físico, ela também fica com uma pergunta muito sofrida: "Por que isso foi ocorrer logo comigo?".

A pergunta é compreensível, porque se a queda de um vaso de um prédio é algo muito raro, mais raro ainda é que a trajetória do vaso entre em colisão com a cabeça de um transeunte em uma rua deserta.

A vítima se sente vítima também do acaso. Sente que foi vítima de um azar muito grande. Se sente cruelmente injustiçada.

O primeiro problema é que a realidade não é justa. Não existe justiça na natureza. A justiça é uma invenção, uma aspiração humana.

Se essa pessoa quer algum tipo de justiça ou reparação, deverá entrar na justiça contra o proprietário do apartamento do qual o vaso caiu. Mas não há como voltar no tempo para reverter o dano, e não há como se comprovar que exista alguma entidade sobrenatural onipotente que tenha feito ou permitido isso.

Então simplesmente não há sentido para o que ocorreu. Porque não havia nenhuma finalidade para aquilo. O vaso não caiu na cabeça da pessoa para que ela se transformasse nisso ou naquilo, para que ela se transformasse numa pessoa mais forte ou para que ela aprendesse alguma coisa. Não havia finalidade alguma no ocorrido. Porque, para dizermos que havia finalidade, tem de existir uma entidade controladora de tudo, que atua com propósitos específicos para a vida desta pessoa.

Há, portanto, somente o campo das causas, dos determinantes do ocorrido. E, a partir disso, o que devemos buscar é uma explicação, e não um sentido.

Mas o problema é que boa parte das explicações não satisfaz a um bom número de pessoas. Para muitas parece haver um poder mais consolador no sentidos, nas ficções, nas mentiras que inventam para si mesmas, do que na simplicidade angustiante de uma explicação.

Concordo que a explicação, no exemplo citado, é de fato muito menos consoladora. O vaso caiu na cabeça daquele sujeito porque era ele quem estava passando ali naquele exato momento, oras. Sim, fato muito raro, mas não impossível. Sim, muito azar. Mas o azar sempre existiu e não merece um sentido individual e sobrenatural só porque ocorreu agora especificamente com você. Evento muito específico, mas que não torna você tão especial assim. 

Então, a partir desse exemplo, temos a percepção de que o sentido não serve para nada. Porque ou você tem uma explicação ou você simplesmente não tem nada. O sentido entra na situação e embola o meio-de-campo. 

Alcançamos as causas por meio de explicações, e alcançamos os sentidos por meio de interpretações. Mas se o sentido não coincide com a causa, com o determinante, ele é falso, não? Se uma interpretação permite um sentido que difere dos fatos, trata-se de uma interpretação equivocada.

E claro, não nos esqueçamos: existe o sentido no sentido de sentir. No sentido de que cada um sente o mundo de modo individual. Quando perguntamos a uma pessoa o que é ser mãe, cada uma, em tese, dirá uma coisa diferente. 

Alguém poderia dizer que o trabalho de ressignificação incide exatamente aí, em fazer com que as pessoas passem a sentir, em perceber de modo diferente o que lhes acomete.  

Porém, insisto. É uma ilusão acreditar que isso será obtido somente por meio de conversas sobre o que a pessoa vem sofrendo. Claro, conversar já é uma forma de exposição, que facilita por exemplo a dessensibilização, ou a habituação. E, ocorrendo isso, a pessoa passa a dar um sentido diferente para sua experiência.

Também, ao falar sobre o que está acontecendo, e assim entrar em contato com outras perspectivas, o paciente vai elaborando e ressignificando. Mas é incrível como muitos psicólogos não se dão conta de que isso muitas vezes não basta. Acreditam que bastam os pacientes falarem sobre o que estão sentindo, e que somente isso terá um efeito de mudança significativa em suas vidas. 

O sujeito que foi vítima da queda de um vaso em sua cabeça não precisa da mentira de que aquilo aconteceu para que ele se transformasse em uma pessoa mais forte. Ele somente precisa seguir com sua vida, se envolvendo com atividades e pessoas que preencham sua vida e seu cotidiano. 

Não precisamos nem mesmo responder à pergunta de qual é o sentido de nossa vida se nossa vida tem sentido. Quando a vida tem sentido, esse tipo de pergunta não faz sentido algum.

Não basta ressignificar. A produção de um novo sentido só tem finalidade prática, e terapêutica, se ele for concebido como um indício para se alcançar um estado mais elevado de qualidade de vida ou de compreensão da realidade. O encadeamento de novos sentidos somente é útil se estiverem a caminho do encontro com a realidade.

O risco da profusão de sentidos é quando ela desemboca em uma espécie de pântano ou ciranda hermenêutica. Ou quando damos sentido ao que não tem sentido, que é o caso da superstição. 

Como muito bem enuncia André Comte-Sponville (2003, p. 577 - 578): 

"Toda superstição submete o real ao sentido: ela explica o que é (um sonho, um eclipse, um gato preto) pelo que quer dizer (por exemplo, uma desgraça por vir)".

E Comte-Sponville dá sequência a seu raciocínio, para mostrar o risco de psicoterapias ou mesmo de processos, ditos psicanalíticos, que podem se perder em hermenêuticas vazias, ou mesmo em algo que mais se parece com superstição do que com um trabalho que mira a própria realidade:

"A psicanálise faz o inverso. Ela submete o sentido ao real. Ela explica o que quer dizer (o sentido de um sonho, de um ato falho  de um sintoma) pelo que é (um desejo reprimido, um trauma, uma neurose). A superstição dá sentido ao que não tem sentido; a psicanálise reduz o sentido a outra coisa, que o dissolve. 

É por isso que é um equívoco pedir que a psicanálise aponte o sentido da vida. Ela pode apontar apenas o sentido de nossos sintomas ou dos nossos sonhos. Senão deixa de ser análise para ser superstição. Deixa de ser conhecimento (da minha história) para ser religião (do meu inconsciente). Pobres analisandos, que buscam um sentido! Freud só buscava a verdade. 

Dirão que as duas coisas estão ligadas, que é esse o caminho real da psicanálise... Resta, todavia, não tomá-la na contramão. Freud é o contrário de um profeta. Ele não anuncia, explica. (...) O sentido é apenas um caminho que conduz à verdade. (...) A terapia é feita de palavras, mas a saúde é feita de silêncio. 

Notemos, para terminar, que toda superstição tende a se verificar. Quem quebra um espelho e se assusta com isso, seu temor já confirma o presságio que o inspira. A superstição dá azar."

Referência:

Comte-Sponville, A. (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.

Tuesday, August 17, 2021

A vida vale a pena?

 Fiz um vídeo, de 6 minutos de duração, há 5 anos, cujo título é uma pergunta: "A vida vale a pena?". Tem mais de 4 mil visualizações e, modéstia à parte, ficou muito bom. Tentarei transformá-lo em texto, e talvez acrescentar ainda alguns complementos, porque certamente merece figurar em meu blog, ou talvez um dia em algum livro.





Friday, August 06, 2021

Gente sem caráter...

 Cuidado com gente que se expressa assim, tentando chantagear: 

"Você nunca encontrará alguém como eu!"

Há exceções, mas isso é geralmente coisa que sai da boca de gente sem caráter.

Ciúme

Relacionamentos repletos de ciúme, de ambas as partes, costumam ser um inferno. Mas isso somente se aplica a quem tem senso moral. Para sociopatas é o paraíso. Porque somente o outro lado se contém, obedece e fica refém. Esquema perfeito para uma relação abusiva. Ciúme nunca é sinal de um relacionamento justo ou saudável.


Thursday, May 20, 2021

Vontade doida

 Vontade de dar uma de pregador doido, que prega com megafone no centro da cidade.

- Vinde para a luz, proferia o senhor! Olhai  para o céu iluminado, para o azul! Contemplai a luz que emana do sol, essa luz primordial, e o vento em vosso rosto! Despertai, despertai! O dia é de luz e músculos! A noite é da escuridão! Cantai com os pássaros! Sente a imensidão do cosmo, sente a imensidão de ti mesmo, espalhado, derramado sobre o mundo! Comei as plantas em colorido profundo, os vegetais do infinito, o mosaico das raízes, a mandioca divina, para que o músculo todo o dia trabalhe e renasça na aurora do universo! Ohmmmm....

Saturday, May 15, 2021

Ajudar alguém que amamos a viver e a morrer...

Outubro de 2012.

Tive uma conversa importante com minha mãe esses dias. Ela está com uma doença crônica que muitas vezes a incapacita quase que totalmente, prostrando-a na cama durante todo o dia, em várias ocasiões.

Ela tem quase 66 anos. Vive sozinha e com uma rede de apoio social e familiar deficitária. Eu estou vivendo a 720 km dela e meu irmão mora na Inglaterra.

Quando está em crise, ela sempre se queixa e muitas vezes diz que preferia deixar de viver. O fato de seu filho mais velho (meu irmão mais velho) ter cometido suicídio em 1998, com 28 anos de idade, não produziu nela qualquer espécie de repúdio pelo suicídio ou pelos suicidas. Pelo contrário. Ela muitas vezes se refere ao meu irmão como alguém de coragem, como alguém que aproveitou bastante de sua juventude e se foi dessa vida sem envelhecer, sem viver todos os dramas da velhice.

Assim como meu irmão, sei que minha mãe é também muito bem capaz de cometer suicídio. Esta possibilidade me aterroriza mais do que se ela tivesse uma morte natural ou acidental. Assim como o era com meu irmão, conviver com essa possibilidade de minha mãe fazer o mesmo era muito perturbador para mim até termos essa conversa, há poucos dias. Hoje minha angústia e meu medo são bem menores. Nessa conversa franca, a qual não fui capaz de ter com meu irmão, eu lhe disse mais ou menos assim:

“Mãe, por favor, não tome uma decisão drástica como a do Edu sem antes pedir socorro, sem falar comigo, sem abrir o jogo. Se você quiser morrer, me fale, porque aí eu largo tudo e vou fazer de tudo para ajudar a aliviar a sua dor. Pego um avião e vou correndo praí. Faremos tudo o que for possível para seu conforto, para a sua felicidade. 

E se mesmo assim não conseguirmos contornar a sua dor, e você ainda quiser morrer, se não tiver mesmo remédio, se for de fato o fim da linha, também estarei com você. Mas, por favor, não faça como o Edu. Não tome esta decisão sozinha. Se não tiver mesmo jeito, aí eu aceitarei e vou querer me despedir de você, lhe abraçar, dizer o quanto a amo, o quanto sentirei sua falta, e o quanto você representa e sempre representou o absurdo de tudo o que existe de bom na minha existência. 

Se morrer for de fato o caso, eu lhe ajudarei, minha mãe, com unhas e dentes, por mais que isso me cause uma dor absolutamente profunda e não dimensionável. Pegaremos um avião e irei junto com você para a Suíça; ou, se não houver essa possibilidade, eu sei como encontrar o caminho menos doloroso para tal, para que você possa partir em paz e com todas as despedidas e carinhos necessários em um momento tão delicado e crucial para você e todos nós que tanto te amamos. 

No que depender de mim, minha mãe, você não sofrerá os absurdos que eu mesmo testemunho em meu cotidiano. Com certeza não. Não deixarei e você sabe que pode confiar em mim. Isso é o mínimo que posso fazer pela pessoa mais importante da minha vida. O mínimo.”

Ela compreendeu e se sentiu mais segura. E eu também, acima de tudo. Hoje estamos bem mais leves e tranquilos em relação aos seus desejos de morrer ou qualquer coisa análoga.

O suicídio é um ato muito solitário e horrivelmente triste. É um horror angustiante no seio de qualquer família que o experimenta. Falar abertamente sobre ele, tentando diminuir o tabu e sua proibição absoluta, é o que hoje faço como parte de minhas estratégias de prevenção.

O suicida precisa de vínculo, apoio, cumplicidade, carinho, amor, companhia, e muita conversa franca e transparente sobre seus desejos e planos para morrer. Sem desafios nem chantagens e sabendo sempre que ele é o dono e responsável por sua própria vida. 

Estou somente lutando pela vida e pela morte digna, minha e de quem amo. Acho isso absolutamente justificável, prudente e totalmente dotado de sentido e amor. 

Mas já estou me cansando de tratar disso no mundo em que vivo... Talvez essa luta só renda frutos e direitos (liberdades individuais, autonomia) para quem está mais próximo de mim. Uma pena... 

Deixo alguns pontos mais claros em minha vídeo-aula sobre o tema, a qual também posto aqui nesse grupo.

Monday, April 12, 2021

Sobre a mãe de Henry Borel

Muitas pessoas estão inconformadas sem entender como que uma mãe acaba privilegiando um amante a um filho pequeno e indefeso. Mas se esquecem que muitas pessoas atualmente, em nosso país, estão tomadas  por um enlouquecimento coletivo, baseado em ostentação de poder e força. Ela estava apaixonada por uma pessoa que ela sentia como extremamente poderosa e inatingível. Ame-o ou morra. Ame-o ou jamais faça parte do paraíso que ele promete. Ela talvez se sentisse casada com uma espécie de imperador romano, um Calígula. 

Em setembro do ano passado me fiz as seguintes perguntas:

"O que é pior? Amar alguém que não tem caráter, mas é a melhor pessoa do mundo na interação conosco? Ou odiar alguém que parece ser um modelo de ser humano, mas que errou feio conosco, e nunca percebeu isso?"

E a primeira pergunta eu só consegui me fazer quando me imaginei sendo filho de Jair Bolsonaro. Agradeço muito a minha sorte de não ser filho de alguma pessoa poderosa que é como Jair Bolsonaro. Ser filho de uma pessoa sem caráter, mas que é boa conosco, deve ser muito ruim. Eis uma das piores prisões existenciais. Depender de um canalha, ou ter uma vida que te obriga a aprender a amar um canalha, deve ser horrível.

E não estou querendo, com esse pequeno texto, aliviar a barra de criminosos e seus cúmplices. Tudo indica que ela foi no mínimo cúmplice das torturas e do bárbaro assassinato de seu próprio filho pequeno e indefeso. 

O que estou tentando dizer é que uma parte significativa dos brasileiros está presa a um projeto de poder que lhes é muito sedutor, do qual se sentem partícipes, e a partir disso também inatingíveis. Seu líder se vende como um escolhido por Deus, e quem compra também em boa medida se sente assim, escolhido por Deus e inatingível.

Porque se existe um ser sobrenatural absolutamente bom e onipotente, vale tudo em seu nome. Porque não existe qualquer tipo de questionamento, e está acima de qualquer julgamento. E essas pessoas estão o tempo todo falando que fazem tudo em nome de Deus.

Evolução?

 Acabei de ler um meme assim: "Você é o resultado de 3,8 bilhões de anos de evolução. Aja de acordo."

Porém devo dizer que isso me parece bastante equivocado. Porque a evolução não ocorreu com o propósito de culminar na espécie humana. Não somos o resultado mais lindo da história da vida na Terra. Não se trata disso. 

Todas as espécies de seres vivos que existem no planeta, e todos os seres que estão vivos, são também, assim como o seres humanos, o resultado de 3,8 bilhões de anos de evolução. Somos, portanto, somente mais um animal, somente mais um produto da evolução. Não havia ninguém por detrás de todo o processo, trabalhando ativa, intencional e esforçadamente nisso. 

Esse meme está mais para o criacionismo do que para o evolucionismo. Usa o termo evolução para dizer algo que não tem nada a ver com ela, para afirmar o que a nega.

Monday, March 29, 2021

Competindo tacitamente

Ter uma bicicleta elétrica é divertido, sob vários aspectos. Um deles diz respeito à tácita competição que existe entre ciclistas. Nas ruas se um ciclista é ultrapassado por outro, uma coisa que muito usualmente ocorre é esse ciclista tentar retribuir. Então é muito comum isso, que os ciclistas fiquem, tacitamente, apostando corridas.

Quando ultrapasso algum ciclista-esportista a reação costuma ser extrema, cômica. Porque os caras ficam muito irritados, e fazem de tudo para logo poderem me ultrapassar. Em poucos segundos testemunho uma reação quase que violenta e desesperada.

Agora há pouco, voltando para casa, para o almoço, houve uma interação engraçada com um ciclista não-esportista. Ele tinha uma bicicleta muito boa, e me acompanhou por boa parte do trajeto, em uma velocidade alta.

Eu simplesmente me mantive em minha velocidade usual, sem qualquer tipo de desespero ou tentativa de fazê-lo comer poeira. E ele também não se desesperou.

Porém chegou um momento em que paramos na faixa de pedestre, e ele olhou para minha bicicleta e disse:

- Essa sua bicicleta parece uma Barra Forte, mas corre demais, rapaz...

Desesperou

Na volta do trabalho, eu vinha pedalando em minha velocidade normal, de cruzeiro. Havia um rapaz, em uma mountain bike, a uns 100 ou 200 metros de mim, que pedalava vagarosamente, em ritmo de passeio.

Bastou eu ultrapassá-lo para ele alterar totalmente seu comportamento. Olhei pelo retrovisor e agora ele pedalava frenético, completamente louco. Tivemos de passar por dentro de um posto de gasolina e havia alguns meio-fios a serem transpostos. Como ele estava de mountain bike, passou por cima de tudo como se não houvesse obstáculo algum, e eu tive de frear e fazer alguns desvios.

Isso fez com que ele me ultrapassasse e ficasse a uns 100 metros à minha frente. Ele pedalava de modo insano. Tinha muito mais giro do que eu. Mas era instável. Pedalava demais e se cansava. Depois pedalava de modo frenético novamente, e se cansava novamente.

Como estávamos na descida, esse contexto era mais favorável para seu tipo de bicicleta. Mas depois adentramos uma reta de quase 1 km, e isso foi suficiente para que eu pacientemente conseguisse me aproximar dele, ultrapassando-o novamente.

Bateu-lhe um desespero que vexatoriamente o despiu das migalhas de compostura que ainda tinha. Tentou cortar caminho pelo meio do mato, e por pouco não se esborrachou no chão, porque havia pedras e galhos como obstáculos. Ele tinha uma mountain bike, mas aquilo não é um helicóptero, não sai voando por cima das coisas.

Para sua infelicidade mesmo assim não conseguiu me ultrapassar. Consegui olhar para seu rosto. Sua expressão era de angústia, de desolação. Olhei para o retrovisor, e sinceramente não entendi o que ocorreu. Ele simplesmente desapareceu. Coisa de Arquivo-X.

Falar com uma porta

 A queixa que mais ouço de pessoas que se frustraram com psicoterapia é a de que nunca tinham uma orientação mais clara ou direta de seus terapeutas.

Diziam simplesmente não entenderem o que estavam fazendo ali, porque falavam o tempo todo e o terapeuta não falava nada. Ou então perguntavam sobre alguma coisa que não sabiam, e o terapeuta continuava se abstendo de responder ou orientar.

Para algumas pessoas esse procedimento funciona, mas para muitas delas não é o caso. E assim muitas terapias vão se arrastando, e o próprio terapeuta não se dá conta, ou parece não querer se dar conta de que não estão ocorrendo progressos. Ou então não tem conseguido comunicar isso ao paciente.

E se de fato não estão ocorrendo progressos, se a terapia não sai do lugar, se aquele é um espaço onde o paciente está sentido que nada de muito significativo está sendo feito, e se o terapeuta já fez o que pôde para alterar a situação e não conseguiu, talvez seja importante que esse terapeuta perceba seus próprios limites, que ele não está conseguindo dar conta do recado.

E quando o terapeuta percebe seus próprios limites, e deixa isso claro na relação, mostrando claramente que não está mais conseguindo ajudar seu paciente, conseguindo comunicar isso claramente, novas portas se abrem, inclusive a porta do encaminhamento. Porque é muitas vezes em situações assim que o encaminhamento é o mais recomendável, o mais ético.

Porque ninguém aguenta, durante muito tempo, sentir que vem interagindo, conversando, por meses a fio, com uma porta. O paciente vai embora, e não indicará esse terapeuta para outras pessoas.

Wednesday, February 24, 2021

O que torna alguém psicopata?

 Uma combinação explosiva nos psicopatas é a indolência com o poder de sedução. O mundo inteiro pode tentar punir um psicopata. Ele, porém, sempre encontrará alguém para ser seduzido. Um psicopata jamais fica isolado, em ostracismo. Porque é sempre capaz de seduzir. Sente menos dor, para quase tudo. Sofre menos. E alguns sofrimentos jamais teve ou terá. Desse modo sobra pouco espaço para empatia, compaixão, as quais, antes de tudo, somente são possíveis em alguém que sofre. É esse tipo de superioridade que o transforma em um monstro, em alguém com uma capacidade de destruição muito acima da média.

Karol Conká é psicopata?

Não sei como é Karol Conká, porque não assisto ao BBB. O que sei é das descrições que fazem da suposta vilã, da suposta psicopata. E não fico surpreso, porque já conheci e sofri muito com pessoas assim, principalmente no ambiente de trabalho. E essas pessoas são assim também em função do sucesso que fazem. O que mais me assusta é o quanto conseguem reunir de pessoas em seu favor para, juntas, produzirem atrocidades. Nesse tipo de situação o que mais me fez sofrer foram os linchamentos. Os grupos, chefiados por Conkás, são moedores de gente. Conkás não seriam nada se não fossem esses grupos, formados por psicopatas de ocasião, cuja covardia impede-os de assumir sua própria psicopatia.

Thursday, February 18, 2021

"Ninguém vence na vida sozinho, dentro de casa".

A frase do título sintetiza, com um pouco de ênfase, o que penso há cerca de 30 anos. Não diz exatamente o que penso. Porque não dá para afirmar que é assim para absolutamente todas as pessoas. O que sinto, na verdade, é que para a maioria das pessoas é assim. 

Quando as pessoas estão isoladas, em sua casa, ou em seu território mais familiar, costumam ter menos oportunidades para crescer e se fortalecer. E ninguém faz nada sozinho, porque ninguém parte do nada. Sempre partimos de algumas coisas já dadas ou estabelecidas por outros que nos antecederam. Sempre partimos de coisas que estão no mundo. O que chamamos de "nós mesmos" é sempre resultado de alguma coisa do mundo que suscitou algo em nós.

Uma de minhas atividades profissionais é o trabalho com estudantes com problemas de aprendizagem. Essa é uma de minhas atribuições na instituição pública de ensino superior na qual atuo.

E um dos maiores problemas que sinto em relação aos estudantes com dificuldades de aprendizagem é a falta de mais monitoramento saudável. Porque não basta afirmar que os estudantes carecem de disciplina se nós não compreendemos como que o processo de aquisição da disciplina ocorre.

Acreditar que um estudante é o único responsável pelo processo de formação de sua própria disciplina é muito ingênuo. Militares costumam ser mais disciplinados porque são mais monitorados. E o problema da vida militar não é o monitoramento. Monitorar é necessário. O problema na vida militar é que esse monitoramento costuma ocorrer de forma muito aversiva. E não precisa ser assim.

O estudante brasileiro é de modo geral muito pouco monitorado. Se a escola não for em tempo integral a tendência é haver menos monitoramento. O estudante vai para casa e ali é que ele costuma se perder. 

Em casa, sozinho, não há geralmente a estimulação necessária para que o comportamento de estudar ocorra de modo mais efetivo. 

Reiterando, porém de outro modo: nossa vida, em grande medida, é movida pelos outros e não por nós mesmos. É o outro que nos indaga, cutuca, ordena, pede, lembra, ameaça, acompanha, atrai, seduz, elogia, agride, empurra, ouve, etc.

É claro que o mundo físico também faz isso. Mas quando estamos falando de compromissos sociais, a presença física ou imediata do outro pode desempenhar um papel fundamental.

É muitas vezes no diálogo que o movimento de conhecer o mundo, a si e aos outros, se atualiza da forma mais clara. 

Se me permitem, cito abaixo um trecho de meu último livro (Facioli, 2020):

"Os seres humanos, de modo geral, precisam de constante interação uns com os outros. Para alguns autores, tais como Michael Tomasello, professor e pesquisador da Duke University, não somos simplesmente uma espécie social. A intensidade da sociabilidade de nossa espécie teria um caráter especial. E talvez fosse mais apropriado sermos classificados como uma espécie ultrassocial (Tomasello, 2014). 

Da mesma forma que abelhas e formigas são especialmente cooperativas entre os insetos, nós humanos somos especialmente sociais, cooperativos, entre os mamíferos. E há evidências de que nossa intensa sociabilidade teve papel fundamental no surgimento das sofisticadas formas da cognição e moralidade humanas (Idem, 2014).

Vínculos afetivos sólidos e benéficos são fundamentais para nossa saúde e bem-estar. É fundamental o companheirismo, o diálogo, ou o jogo, a constante possibilidade de se sentir vivo, motivado, disposto, justamente a partir do que surge das interações geralmente mais próximas e imediatas entre as pessoas.

Quando estamos acompanhados por pessoas com as quais temos afinidade, cuja companhia nos faz bem, ou nos motiva, de modo saudável, a agir, trabalhar ou estudar, a tendência é que haja, de nossa parte, maior concentração e envolvimento na atividade realizada.

(...)

Muitos estudantes facilmente se distraem, perdem o foco, primeiramente porque o que predomina é a educação de massa e modelos tradicionais de ensino, os quais privilegiam a fala de um professor para um grupo grande de alunos. Nesse contexto praticamente não há diálogo. O que impera é a transmissão de um professor aos seus estudantes.

(...)

O diálogo é um elemento central na interação ensino-aprendizagem, no processo de aquisição e produção do conhecimento. E isso vale para qualquer metodologia de ensino. Independentemente da metodologia adotada, é fundamental que ocorra diálogo. Porque não existe vídeo de internet ou documentário, por exemplo, por mais espetacular que seja, que possa substituir a rica e saudável interação face-a-face, olho no olho, com liberdade e tranquilidade para se falar e se perguntar tudo o que for possível.

(...)

Em um diálogo, em que ambas as pessoas se alternam de modo equilibrado na fala, e que o tempo de cada um falando ininterruptamente não se estende muito, é bastante difícil que alguém se distraia ou perca o foco."

Lembro-me das diversas vezes em que eu estava com outras pessoas, estudando em grupo, durante finais de semana ou feriados, e que nós simplesmente não sentíamos o peso da passagem do tempo. Porque estávamos o tempo todo em interação intensa, dialogando e tentando completar uma tarefa, ou conhecer melhor um determinado objeto de estudo.

Porque o ser humano em boa medida é movido pelo outro, pela companhia necessária e constante de outras pessoas. Porque fazer junto costuma ser menos pesado do que fazer sozinho. 

Porque primeiro se vive, depois se pensa. A vida vivida é que gera o que pensamos dela. Ninguém pensa positivo para depois viver. As pessoas vivem, e dependendo do quê e como viveram, passam a ser mais otimistas. 

Sua casa ou o seu território mais familiar provavelmente serão muito pequenos diante do quanto o mergulho e a imersão no mundo poderão fazer por você.

E isso também é muito claro para mim ao lidar com pacientes que estão sofrendo de ansiedade. Muitos se trancam dentro de suas casas, e conseguem se manter assim indefinidamente, porque não há nada de mais pungente, que os faça de vez em quando sair e se expor. Muitos acabam sendo superprotegidos. Para muitas pessoas a comodidade e o conforto são a beira do precipício de seus próprios transtornos mentais. 

Muita facilidade e comodidade para tudo (até mesmo para evitar qualquer tipo de contato com outras pessoas) podem simplesmente fazer com que a pessoa não saia do lugar. Isso, com a passagem do tempo, se mostra como algo extremamente enfraquecedor.

Outras, por sua vez, se isolam completamente de outras pessoas (devido a diversas experiências traumáticas que tiveram), mas ainda são estimuladas por animais de estimação, ou uma vida mais simples, talvez perto da natureza, que faz com que se mexam, e em alguma medida tenham comportamentos saudáveis, fortalecedores.

O título desse texto contém a expressão "vencer na vida", já muito desgastada, por ser quase que exclusivamente atrelada a uma noção de sucesso social. Porém quero deixar claro que, na minha concepção, vencer seria somente conseguir ter mais saúde e bem-estar. Somente isso.

Então, diante do que já escrevi, para ficar claro e concluir este texto, refaço a expressão, de modo mais técnico e menos apelativo (porque o título era para isso mesmo, uma isca para chamar sua atenção): 

Ninguém (sabendo que ainda me utilizo do termo ninguém como força de expressão) obtém mais saúde e bem-estar sozinho, isolado, em sua casa, em seus confortos, comodidades e vícios, ao simplesmente se retirar das exigências e estimulações do mundo.


Referências:

Facioli, A.M. (2020). Agonia e sonho: memórias e reflexões de um psicólogo nos meandros do SUS. Publicado em formato Kindle (KDP) pela Amazon.

Tomasello M. (2014). The ultra-social animal. European journal of social psychology, 44(3), 187-194.

Sunday, January 10, 2021

A ilusão de eternidade

 As narrativas do passado, essa memória que construímos em função do que nos contam, talvez seja um dos principais motivos pelo qual boa parte de nós sente que tem uma alma eterna. Se nem o universo é eterno, o que sou eu para pensar que eu o seria?