No filme "Reine sobre mim", Adam Sandler faz o papel de um sujeito que enlouqueceu. Mas não se trata de loucura clássica, de psicose. Está mais para um transtorno dissociativo. É um filme muito interessante. Recomendo a todas as pessoas que se interessam por saúde mental e a questão da loucura.
O personagem padece desse transtorno de um modo muito sofrido e triste. Seu adoecimento é enigmático. Não é simplesmente uma loucura comum, como já disse, uma loucura clássica. Não é psicose.
Alguns especialistas talvez até mesmo classifiquem esta condição como uma pseudopsicose. E podem até alegar que o personagem do filme não enlouqueceu de verdade.
E é possível mesmo pensar que não é psicose, porque o risco autolesivo é bem mais baixo do que em um transtorno psicótico. Quem sofre de transtorno dissociativo se comporta de modo muito parecido com pessoas que estão em estado hipnótico.
É pouco provável que pessoas, nestas condições, se exponham a riscos extremos. Quando a situação fica de fato bastante perigosa os sintomas supostamente delirantes tendem a retroceder.
Há alguns anos acompanhamos um caso assim no CAPS, o qual possui nuances impressionantes, assim como o que pode ser observado no filme.
E esses aspectos impressionantes têm relação com o fato de serem paradoxais. Trata-se de um paciente que possui uma oratória e uma retórica muito acima da média dos outros pacientes que têm o mesmo nível de instrução formal que ele.
Ele sabe ler. Contudo é incapaz de lidar com dinheiro. Não consegue fazer o básico das operações de adição e subtração. E possui inclusive uma classificação diagnóstica de deficiência cognitiva.
Porém, faz discursos grandiloquentes, dizendo-se alguém de grande projeção social. Jamais se identifica com seu próprio nome. Sempre se identifica com um único codinome, cuja biografia remete a outra região do Brasil. A partir desse codinome que encarna, se apresenta como um homem de 30 a 40 anos mais velho, muito rico, poderoso e ocupando cargos políticos em nível nacional.
Em uma única conversa costuma se apresentar como deputado federal, candidato a governador, médico, advogado e quantas posições sociais de prestígio puder mencionar.
Sua retórica e oratória são articuladas e envolventes. Praticamente toda e qualquer interlocução com ele se transforma em uma espécie de discurso político, em ritmo que é sempre solene e vigoroso, com diversas menções a grandes projetos de infraestrutura, com os quais ele garante que tem envolvimento direto.
Quando fala de outros políticos ou celebridades, sempre fala em tom de intimidade, mencionando supostos detalhes da vida dessas pessoas, que não seriam divulgados na imprensa ou para o grande público.
Tem também uma capacidade muito grande para o improviso e construções verbais carregadas de ironia e humor, sempre com aparência de sofisticação e intensa linguagem simbólica. Quem geralmente ouve o que ele diz fica envolvido, e acha divertido, engraçado.
Durante uma determinada época ele comparecia às reuniões de meu grupo terapêutico no CAPS. Ele não havia sido inscrito no grupo, mas adentrava a sala como se assim tivesse ocorrido. E suas intervenções eram, na maioria das vezes, jocosas e hilárias. Mencionava, de modo bastante elegante, sua suposta vida amorosa com suas secretárias e seus problemas de ereção.
Isso fazia com que muitas pessoas ali no grupo dessem risadas, mesmo aquelas que estavam muito abatidas, com o humor bem rebaixado.
Sua participação era sempre um imenso desvio do tema, ou uma extrapolação cômica, que quebrava um pouco com o ritmo, ou fazia com que ficássemos todos um pouco mais alegres e relaxados.
Eu tinha sempre de limitá-lo, de contê-lo, de dizer que as coisas não eram assim, que aquilo não podia, que alguma outra coisa que ele tinha dito talvez fosse para um outro momento, ou então eu fazia isso também de um modo debochado, e aí todos se riam ainda mais.
Era realmente muito divertido, e eu confesso que sinto muita falta dele em meus grupos. Às vezes era tão engraçado e divertido que eu dizia a todos os presentes que tínhamos de montar um grupo de humor.
Um olhar mais superficial iria somente classificar a participação dele como perturbadora e ruim para a evolução do grupo. Mas hoje, relembrando tudo o que acontecia, sinto que ele era na verdade uma peça muito importante.
Há ainda uma série de eventos, provindos da interação com esse paciente, que são muito interessantes, sobre os quais talvez posso um dia fazer alguma narrativa mais reflexiva e pormenorizada.
Mas o que fica mesmo é minha saudade da participação dele em meus grupos.
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