No CAPS pude acompanhar e ainda acompanho alguns pacientes que são de certo modo muito parecidos com o estereótipo que foi criado pelo personagem Forrest Gump.
Esses pacientes, assim como o personagem, são, de modo marcante, pessoas muito diferentes, ou então estão conseguindo sobreviver a um mundo hostil, apesar de todas as suas dificuldades, muitas vezes inclusive relacionadas a uma capacidade intelectual significativamente abaixo da média.
Tive o primeiro contato com Alex (nome fictício) em 2011. Uma das colegas da enfermagem, a qual havia feito a primeira entrevista com ele (o chamado acolhimento) me comunicara que, pela observação da interação dele com sua tia (a qual era responsável por sua criação desde os 12 anos de idade), percebeu um nível de opressão muito intenso dela em relação a ele.
A tia fazia diversas reclamações em relação ao comportamento dele, e logo na primeira entrevista ficou claro para a enfermeira que ela fazia exigências diversas e muito e acima da capacidade dele em poder responder a elas.
Depois de vários encontros com ele, tanto individualmente quanto no grupo, assim como também depois de conversar com essa tia por algumas vezes, pude perceber que ele estava refém de uma interação com ela, a qual era marcada por dupla vinculação.
Ao mesmo tempo em que ela exigia que ele cumprisse com algumas obrigações também fazia de tudo, aparentemente sem perceber, para que ele não conseguisse realizá-las a contento.
Ela, por exemplo, se queixava bastante de que ele não a ajudava com os afazeres domésticos, porém também se queixava de que basicamente tudo o que ele fazia era mal feito.
Felizmente, em um esforço muito grande, ele conseguiu arranjar um emprego como servente de obras, em um canteiro de construção de um prédio com mais de dez andares. Era então o que muitos classificam como um "peão de obras".
Era impressionante observar como estava feliz em ser um peão de obras. Ele admirava a profissão que havia escolhido. Sentia que no trabalho braçal estava aumentando a sua capacidade física e sua musculatura, e isso de fato estava ocorrendo. Fazia questão de dizer às pessoas onde estava trabalhando, e tinha um orgulho grande de agora ser alguém que tinha uma carteira assinada e alguns direitos como trabalhador.
Sua tia, contudo, manifestava intensa contrariedade. Porque o desejo dela era de que ele continuasse seus estudos e pudesse, por exemplo, cursar uma faculdade. Ele porém não tinha capacidade intelectual para isso. Sua vida, no ensino fundamental e médio, já havia sido marcada por muito sofrimento, tanto em função de sua capacidade intelectual limitada, como também devido a um histórico de bullying, justamente porque havia sido uma criança e um adolescente muito diferente dos padrões dominantes.
Alex tinha uma curiosidade muito grande e pura. Tinha um desejo muito grande de ser uma pessoa melhor, mais produtiva e mais envolvida com tudo que há de saudável nessa vida. Sempre que falava de seus sonhos e desejos era possível perceber o brilho em seus olhos e todo o seu envolvimento. Sua próxima meta era se tornar um operador de betoneira. Tinha verdadeiro fascínio pela função dos operadores de betoneiras. Estava fascinado pela imensidão do mundo que agora estava descobrindo porque pôde adentrar o mercado de trabalho, e se sentir um pouco mais normal, um pouco mais parte do resto da humanidade.
Alex tinha 21 anos de idade e era possível perceber o volume de energia que tinha para tentar conquistar alguma coisa nesse mundo, como qualquer pessoa nessa idade assim o faz. Havia muita vida em seu olhar e no modo como se referia aos seus desejos e projetos.
Conseguimos estabelecer especificar algumas metas, e uma delas era a de ele conseguir sair da casa de sua tia, onde o nível de opressão fermentava constantemente alguma coisa patológica que poderia minar com qualquer tentativa inocente de ser feliz. Viver sob o mesmo teto que sua tia era o massacre constante de sua sanidade mental.
Em poucos meses ele já estava morando sozinho, e começou inclusive a se envolver afetiva e sexualmente com uma colega de trabalho. Lembro-me de seu relato de ter tido sua primeira noite de amor, a qual ele não classificava como amor, mas como um encontro com essa mulher, muitos anos mais velha, como sendo algo que havia sido bom e que ele queria continuar, queria que essa experiência continuasse se repetindo em sua vida.
Ao mesmo tempo em que muitas coisas avançavam outras eram uma batalha constante. Sua tia agora o deixava completamente em paz. Ressentida passava vários dias sem ao menos lhe telefonar ou manifestar interesse em saber como ele estava conseguindo sobreviver sozinho. Segundo ele, ela dizia que esse era o caminho que ele havia escolhido, e que agora deveria pagar o preço pela escolha que havia feito, como qualquer pessoa adulta.
Aos poucos foi conseguindo se organizar, e tinha também inclusive a ajuda de dois amigos de sua época de ensino médio. Esses dois amigos lhe doaram algumas roupas, conseguiram para ele alguns utensílios domésticos, assim como o ajudaram a fazer uma assinatura de internet, para que Alex conseguisse assistir aos seus desenhos animados preferidos. Porque Alex, apesar de todas as dificuldades, também tinha um gosto um pouco refinado: gostava de desenhos animados japoneses, de "animes", como ele dizia.
E o que se transformava a cada dia em uma dificuldade maior eram as pressões no ambiente de trabalho. Relatava que seu chefe estava sempre a dificultar as coisas para ele, e logo fui percebendo que Alex não havia se adaptado a esse ambiente e às demandas para a função ao qual estava designado. Não conseguia desempenhar as atividades conforme o que era exigido por seu chefe, e parece que isso não era uma perseguição, mas a demonstração de sua dificuldade em realizar algumas tarefas conforme o que estava padronizado e era necessário para o andamento do trabalho em um canteiro de obras.
Chegou inclusive a me relatar que seu chefe o colocava para limpar um banheiro, com vários vasos sanitários, sem sequer usar qualquer tipo de detergente ou sabão, somente com vassoura, rodo e água. Intervi e fiz o que pude, mas seu sofrimento era crescente. Seu chefe estava fazendo de tudo para que ele pedisse demissão, e a empresa assim não viesse a ter de pagar por alguma indenização devido a uma demissão que não foi realizada por justa causa.
O mundo massacrava e Alex continuava lutando, com os recursos precários que tinha, mesmo assim sem desistir de alguns prazeres simples e da alegria que ele sempre podia cultivar em sua vida. Alex sempre assistia aos seus desenhos animados, e sempre comia uma ou outra coisa da qual gostava bastante, seja isso um sorvete ou uma melancia inteira.
Porém infelizmente sua vida foi se desorganizando, ao ponto de que sua tia comparecer ao CAPS, relatando como sua casa estava de cabeça para baixo, assim como os pagamentos dos aluguéis e sua própria alimentação desregrada, além de algumas faltas ao trabalho.
Alex agora apresentava disfunções intestinais, com início de evacuação na roupa no ambiente de trabalho, assim como queixas em relação ao desconforto que alguns novos medicamentos (antipsicóticos, que o médico havia lhe prescrito) estavam lhe provocando.
Todas as conquistas imensas de Alex nos últimos meses começaram a ser varridas para debaixo de um tapete grosso e empoeirado de perspectivas ruins para sua saúde mental.
Depois de mais ou menos um ano nessa batalha, entre continuar ou não no emprego e resistir em continuar morando sozinho, ficou sem comparecer ao CAPS durante uns dois meses e, quando retornou, seu comportamento já era muito similar ao de um psicótico em estágio residual. Sua tia resolvera levá-lo a um psiquiatra, da rede particular, o qual prescrevera uma quantidade e dosagem grandes de medicamentos. O Alex que conversava normalmente, como uma criança empolgada com o mundo, tinha sonhos e projetos, já não estava mais ali. Agora tinha alguns pequenos tremores, e estava dopado, lentificado e impregnado pela medicação antipsicótica.
Meses se passaram e agora a batalha já era outra. Uma das metas, discutidas e elaboradas com toda a equipe que o acompanhava, era fazer com que retornasse para o interior de Minas Gerais, junto de seus pais, dos quais havia sido separado aos 12 anos de idade, para vir morar com sua tia, no Distrito Federal. É segundo ela, no interior de Minas Gerais, na "roça", era onde ele estava completamente abandonado, possivelmente até mesmo com desnutrição.
Atualmente Alex, vem do interior de Minas Gerais, e visita o CAPS umas três vezes ao ano. Não é mais aquele menino franzino, de 21 anos de idade, com os olhos arregalados e siderados a sonhar com os horizontes que conseguia perceber, com a maturidade ou alguns pequenos paraísos, frutos das batalhas dessa vida, que antes lhe pareciam razoavelmente perto.
Hoje Alex é um homem com um pouco de sobrepeso, devido possivelmente às medicações antipsicóticas, a viver na zona rural, do interior de Minas Gerais, agora possivelmente com um pouco mais de fatura e dignidade, porque sabemos que a vida das pessoas abaixo da linha de pobreza teve uma melhora significativa nos últimos 15 anos, e foi esse o tempo em que Alex esteve a morar na cidade, no Distrito Federal, sob a tutela de sua tia.
Infelizmente não tenho mais informações detalhadas sobre seu cotidiano. Seu quadro adquiriu uma certa estabilidade e, diante das demandas crescentes e intensas às quais somos submetidos, não houve prioridade para que retornássemos ao seu caso.
E uma coisa da qual não consigo deixar de pensar é sobre algumas poucas palavras que escrevi há cerca de 7 anos, poucos meses depois de iniciar o acompanhamento de Alex, e que me foram inspiradas pela observação de seu caso:
"Se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente pobre, o mundo fará de você um esquizofrênico.
Contudo, se você é uma pessoa muito diferente, a qual nasceu e foi criada em um ambiente socioculturalmente rico, o mundo fará de você um artista."
E assim segue a vida de todos nós, em suas urgências e prioridades, com todo o peso real e natural das frustrações que lhe são inerentes, a esmagar inúmeros, ou talvez a maioria de nossos sonhos.
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